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Governo abandona Ginga, sistema de interatividade para TV digital

Por Gustavo Gindre*

O Decreto 4901/2003 permitiu que recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel) fossem usados para financiar consórcios de universidades brasileiras que fizessem pesquisas ligadas à digitalização da TV aberta. Foram listados temas como transmissão e recepção, modulação, interatividade, middleware, serviços, aplicações e conteúdo e investidos cerca de R$ 100 milhões.

Mas, quando o governo decidiu pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), através do Decreto 5820/2006, uma única tecnologia brasileira foi aproveitada: o middleware Ginga. No restante, a TV digital brasileira usaria as tecnologias do sistema japonês, o ISDB-T (Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial). A essa combinação, de uma única tecnologia brasileira com um sistema inteiro japonês, o governo chamou de nipo-brasileira (sic).

Middleware é um software base, que se posiciona entre o hardware e as diferentes aplicações que rodam naquela máquina. No caso do Ginga, ele nasceu vocacionado para lidar com interatividade, e sua parte principal (Ginga-NCL) foi escrita em código-fonte aberto. Ao longo dos anos, o Ginga se tornou um padrão da Associação Nacional de Normas Técnicas (ABNT) e da União Internacional de Telecomunicações (UIT).

Embora o decreto que decidiu por sua utilização na TV aberta seja de junho de 2006, o Ginga só se tornou obrigatório em 2013, mesmo assim para 75% das TVs fabricadas no Brasil. A instalação em todas as TVs está prevista apenas para 2015. Com isso, é possível dizer que o Ginga fracassou na TV aberta e com ele morreu a única tecnologia nacional de um sistema dito “nipo-brasileiro”.

Oracle

O primeiro problema enfrentado pelo Ginga foi a opção por usar a tecnologia Java, de propriedade da Oracle. Com isso, viveu-se uma longa batalha em torno da possibilidade de pagamento de royalties que tornariam proibitivo o uso do Ginga. Mas a Oracle não foi nem de perto o principal adversário do Ginga.

Radiodifusores

Ainda é possível lembrar de representantes dos radiodifusores no Conselho Consultivo do SBTVD-T afirmando que interatividade na TV não passava de ficção científica e que TV e internet sempre seriam coisas totalmente diferentes.

Obviamente não se trata de ignorância, mas da determinação política dos radiodifusores de evitar ao máximo possível qualquer mudança no modelo de negócios da TV aberta. E quanto maior a interatividade, maior o risco de evasão de audiência. Por isso, os radiodifusores tentaram evitar qualquer tecnologia que integrasse a TV com outras mídias. E entre elas estava o Ginga, combatido desde o início. Naquela altura, porém, mal sabiam os radiodifusores que a interatividade chegaria à TV e que seu maior problema não estava no Ginga.

Samsung, LG, Sony, Google e Apple

A venda de aparelhos de TV tem uma pequena margem de lucro. O negócio, portanto, só é sustentável para aqueles que operam em grande escala. É justamente por isso que fabricantes vêm abandonando o setor, que se concentra em poucas empresas, como Samsung, LG e Sony.

Nos últimos anos, essas empresas têm procurado agregar valor às TVs, através de novas e maiores telas (LED e Oled), do aumento da definição (com o novíssimo 4K), mas, principalmente, da introdução das smarTVs, integradas à internet. Esses aparelhos são a porta de entrada para os fabricantes criarem lojas de aplicativos. Também Google e Apple já perceberam o potencial de conectar as TVs à internet e apostam em seus próprios aparelhos e, claro, nas suas lojas de aplicativos.

Esse modelo de negócio contraria o interesse dos radiodufusores e faz do Ginga um concorrente indesejado. Qual fabricante gostaria de ter uma loja de aplicativos em código-fonte aberto concorrendo com sua própria loja de aplicativos?

Governo

Diante de tantos adversários, o Ginga teria, em tese, um único, mas poderoso, aliado: o governo. Justamente aí é que as coisas parecem não ter dado certo. O governo aceitou pressões para adiar ao máximo a obrigatoriedade do Ginga. Somente nove anos após a edição do decreto que criou o SBTVD-T todos os aparelhos terão que trazer o Ginga.

Mas o principal problema é a incapacidade de gerar uma loja de aplicativos. E sem aplicativos, nenhum sistema operacional (ou middleware) consegue sobreviver. Poucas instituições públicas desenvolveram aplicativos, e a quantidade é ainda menor na iniciativa privada. Com o Ginga, morre a ideia de termos uma TV com software livre, com aplicativos de interesse social, feitos a partir de tecnologia brasileira. No seu lugar fica uma TV conectada à internet através de “jardins murados”, fortemente controlados pelos interesses comerciais de fabricantes estrangeiros, com tecnologia importada.

Sem o Ginga, a TV digital brasileira é a primeira do mundo a ser “nipo-japonesa”.

*Gustavo Gindre é jornalista formado pela UFF, pós-graduado em Teoria e Práxis do Meio Ambiente (ISER) e mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ). Foi membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) por dois mandatos (2004-2007 e 2007-2010). Integrante do Coletivo Intervozes. Fellow da Ashoka Society. É servidor público concursado, especialista em regulação da atividade cinematográfica e audiovisual. 

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Hora de ocuparmos a TV aberta

A possibilidade de que os movimentos sociais tenham liberdade para falar diretamente à população por meio da TV aberta pode ser uma realidade a médio prazo, no Brasil. Na última segunda-feira (20), o Ministério das Comunicações aprovou o pedido do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb) para operar o Canal da Cidadania. Com a medida, a cidade de Salvador terá reservado, na TV aberta, espaço para duas emissoras não-comerciais dirigidas pela sociedade civil.

O desafio para a concretização dessas emissoras, no entanto, é ainda muito grande. Embora esteja previsto na norma regulamentar do Canal da Cidadania que “o Ministério das Comunicações selecionará para este fim (operar duas faixas de programação) duas associações comunitárias por município e três no Distrito Federal”, montar uma emissora de televisão aberta e garantir sua gestão democrática é algo que pode ser considerado inédito no país, apesar dos esforços que já foram feito nesse sentido.

No Brasil, as TVs comunitárias foram relegadas ao ostracismo (para utilizar um eufemismo) pelos interesses comerciais que pressionaram as tentativas de regulamentação desse segmento. Sem condições para se financiar razoavelmente, em um cenário em que a produção audiovisual independente sempre andou mal das pernas, capturadas por interesses individuais ou eleitoreiros que sufocam a democracia em suas gestões e restritas às transmissões por meio de TV por assinatura, dificilmente essas TVs puderam exercer sua dimensão comunitária de fato.

Agora, o Canal da Cidadania abre espaço para que as emissoras comunitárias possam ser sintonizadas na TV aberta e para que sejam formados conselhos participativos que discutam o conteúdo e a gestão dessas TVs. Além disso, a produção audiovisual independente tem crescido no país e as novas tecnologias têm favorecido a ampliação do número de produtores, alguns fundos públicos já prevêem recursos a serem aplicados no setor direta ou indiretamente (como a Condecine, por exemplo).

O papel da sociedade civil

Apesar das possibilidades inscritas na implementação do Canal da Cidadania, duas questões precisam ser enfrentadas: a grande dependência da iniciativa do poder público e a necessidade de que a sociedade civil compreenda a importância do espaço e se mobiliza para ocupá-lo.

A outorga para que o serviço seja operado é dada a órgãos das prefeituras ou dos governos estaduais, que devem ocupar uma das quatro ou cinco faixas de programação suportadas pelo canal (grosso modo, cada faixa de programação equivale a uma emissora). As duas emissoras comunitárias, para operarem no Canal da Cidadania, dependem do pedido de concessão pelo poder público, da instalação dos conselhos locais de comunicação (costumeiramente rejeitados pelas forças políticas influenciadas pelos empresários de mídia), da instalação dos equipamentos de transmissão pelo órgão responsável e dos avisos de habilitação publicados pelo Ministério das Comunicações.

No caso de Salvador, por exemplo, o pedido foi feito pela TV Educativa do governo do estado e não houve conversa com a sociedade civil. Já no Rio de Janeiro, o processo todo tem acontecido por pressão da Frente Ampla pela Liberdade de Expressão (Fale-Rio), que tem levantado a bandeira da importância de ocupar esse espaço. No dia 13 de janeiro, a Câmara dos Vereadores autorizou a prefeitura (que já fez a solicitação da outorga) a dispor do orçamento para instalar o Canal da Cidadania e o conselho municipal.

A lista de pedidos de outorga do Canal da Cidadania disponibilizada pelo site do Ministério das Comunicações, ainda que incompleta (Salvador não consta na lista), contabiliza apenas 149 de um total de 5.570 municípios brasileiros. É muito pouco. Talvez por desconhecimento, talvez por descrença. O fato é que os movimentos sociais ainda não abraçaram a ideia do Canal da Cidadania e, com isso, poderemos perder a chance de ter um veículo de comunicação com a população que não seja orientado pela busca do lucro ou pelo discurso oficial.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

O jornalismo também precisa de ações afirmativas

Por Aida Feitosa e Isabela Vieira*

Em novembro passado, o governo brasileiro enviou ao Congresso Nacional a proposta de cotas para negros e negras nos concursos públicos promovidos pelo poder Executivo. A proposta, pauta antiga de reivindicação do movimento negro, também possibilita a reflexão do quadro organizativo dos órgãos federais no que se refere à representação de negros e mulheres. O artigo de Aida Feitosa e Isabela Vieira, integrantes da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF e do RJ, respectivamente, mostra que os empregados e empregadas da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) saíram na frente. Com a proposição de que os cargos de chefia e direção sejam preenchidos a partir de critérios de gênero e raça, a EBC (caso a sua atual diretoria tivesse absorvido a proposta) poderia ser exemplo para os demais órgãos públicos e até mesmo para as empresas jornalísticas do Brasil, cujo cenário de exclusão de mulheres e negros é assustador.

Confira o artigo:

Para Combater a desigualdade: ações afirmativas na EBC

Em diálogo constante com a sociedade brasileira, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) encontra-se frente ao desafio de incorporar a diversidade brasileira à sua estrutura organizacional. No momento em que o governo federal propõe a reserva de vagas em concursos públicos para pretos e pardos (negros), empregadas e empregados da EBC vão além: querem todos os cargos de chefia e direção preenchidos de acordo com critérios de gênero e raça, proporcional ao verificado no país.

A proposta – rejeitada pela diretoria da empresa – constava da pauta de reivindicações do Acordo Coletivo de Trabalho 2013/2014 e foi tema de debates nos piquetes de greve, com apoio de representantes do movimento negro.

A EBC aguarda a tramitação do Projeto de Lei 6738 que reserva a pretos e pardos (negros) 20% das vagas oferecidas nos concursos do executivo federal, e enquanto o projeto tramita, a diretoria se comprometeu a implementar o Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, da Secretaria de Políticas para as Mulheres. A adesão – defendida nas duas últimas pautas de reivindicações do acordo coletivo – ocorreu em setembro deste ano.

No momento, a atual estrutura da empresa é excludente. A EBC tem apenas uma mulher entre os seus oito cargos de diretoria. A presidência, ocupada nos primeiros anos pela jornalista Tereza Cruvinel agora está sob a responsabilidade do jornalista Nelson Breve. Os seis superintendententes, vinculados à Diretoria-geral, são homens, assim como os principais gestores da vice-presidência. No Rio, levantamento feito com dados do Portal da Transparência, mostra que dos 57 cargos de chefia, somente 15 são ocupados por mulheres (sendo três do quadro funcional). Em São Paulo, de 20 cargos de gestão na TV Brasil, 16 estão preenchidos por homens.

O problema na estrutura organizacional das empresas de comunicação e no jornalismo não é exclusividade da EBC. Levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mostrou que, embora a maioria dos jornalistas seja mulheres, brancas e jovens (64%), elas ocupam posições hierárquicas mais baixas e recebem salários menores que os homens. Já os negros e negras jornalistas somam 23% desses profissionais, o que não corresponde nem de perto ao percentual de 50,74% de pretos e pardos (negros) na sociedade brasileira, segundo o IBGE.

No bojo da criação da EBC, em 2008, o pesquisador PHD em Comunicação e cineasta Joel Zito Araújo já alertava para o problema. Estudo coordenado por ele constatou que apenas 8,6% dos apresentadores das emissoras públicas de televisão eram negros/negras. Do total de repórteres de vídeo desses mesmos canais, somente 5,5% eram considerados pretos ou pardos.

O racismo institucional deve ser enfrentado desde os processos seletivos aos programas de progressão de carreira, passando pelas regras de acesso à empresa, que ainda proíbe a entrada de empregados ou entrevistados trajando chinelo ou bermuda.

Pesquisas censitárias sobre a composição do quadro de funcionários e campanhas de esclarecimentos devem acompanhar as práticas de combate ao racismo e valorização da diversidade. Dessa forma, a EBC cumprirá sua função constitucional de produzir conteúdos que promovam os direitos humanos, desconstruam estereótipos e garantam a pluralidade.

*Aida Feitosa jornalista integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-DF) e Isabela Vieira jornalista da EBC e integrante da Cojira-RJ.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

A corrupção está no ar

Por Pedro Ekman*

A privatização dos recursos públicos e comuns a todos os cidadãos é uma proposta sempre presente em programas políticos de direita. A alegação é de que um gerente que precise obter lucro em suas operações naturalmente vai manejar os recursos de toda a sociedade da forma mas eficiente. A suposta eficiência inerente ao processo de acúmulo de capital impediria a corrupção, pois diminuiria o lucro.

Essa forma de ver a sociedade estabelece comodamente a corrupção no setor da gestão pública e a eficiência no setor da gestão privada como se fossem coisas naturais e intrínsecas a cada forma de atuação. No Brasil, esse pensamento se tornou hegemônico, criando um sistema onde a notícia de formação de cartel bilionário de empresas privadas em obras de públicas não levam o nome de corrupção. O que não se diz é que elas estão corrompendo regras e violando o interesse público para obter vantagens privadas.

As ondas eletromagnéticas que carregam consigo os canais de rádio e TV aberta são recursos naturais finitos e, por isso, são geridas pelo Estado, em nome da sociedade brasileira, e não por uma corporação privada que representa apenas seus acionistas. Entretanto, a comunicação social de nosso país está absolutamente tomada pelo setor privado, o que é mantido com o argumento de que essa seria a forma mais eficiente de oferecer a melhor programação e conteúdos para a sociedade.

Você diria que a maneira mais eficiente de oferecer conteúdo de qualidade para uma cidade seria a de informar, ao longo de todo o dia, sobre o trânsito de veículos de outra cidade? O Ministério Público Federal também percebeu alguns furos nessa lógica e recomendou que o Ministério das Comunicações e a Anatel fiscalizassem 16 rádios comerciais localizadas na cidade de São Paulo, dentre elas a Sulamérica Trânsito. Esta, apesar de ser uma rádio da cidade de Mogi das Cruzes, transmite exclusivamente conteúdos sobre o trânsito da cidade de São Paulo.

De acordo com a lei, o deslocamento de antenas de uma cidade para outra só é permitido quando isso for necessário para munir a cidade de origem de um melhor sinal de rádio. O que ocorre, por exemplo, no caso do pico do morro mais alto da região estar em cidades vizinhas. Para que esse deslocamento seja autorizado, a empresa tem que garantir alguns requisitos básicos, como ter um estúdio principal e a maior parte de funcionários na cidade de origem; produzir a maior parte da programação nesse mesmo município; e, é claro, garantir que o sinal de fato chegue aos moradores da cidade para qual a empresa recebeu licença para funcionar.

Mas a lógica incorruptível de se obter lucro levou os empresários da comunicação a deslocar a não apenas as antenas, mas também a programação, o estúdio e os funcionários para as cidades vizinhas, roubando dezenas de canais de rádios de municípios que não foram agraciadas com mercados tão robustos. Esses empresários “incorruptíveis” participam de licitações a baixo custo em cidades menores e acabam recebendo canais que custariam bem mais nos lugares onde de fato as rádios estão instaladas.

Em relatório da Anatel produzido, a partir da recomendação feita pelo MPF, sobre as rádios fiscalizadas que deslocaram suas antenas na grande São Paulo, apenas 16 não cumpriam os requisitos básicos para tal. São elas: Bandeirantes (FM 90,9) de Itanhaém, Sulamérica Trânsito (FM 92,1) de Mogi das Cruzes, Nativa (FM 95,3) e Mix (FM 106,3) de Diadema, Tupi (FM 104,1) de Guarulhos, Terra (FM 97,3) de Atibaia, Sê tu uma benção (FM 98,1) de Itatiba, Expressão (FM 106,9) e Scalla (FM 102,1) do Arujá, 89 (FM 89,1) e Alpha (FM 101,7) de Osasco, 106 Love (FM 105,7) e Tropical (FM 107,9) de Itapecerica da Serra, Energia 97 (FM 97,7) e Rede Aleluia de rádio (FM 99,5) de Santo André e Vida (FM 96,5) de São José dos Campos.

Nenhuma dessas rádios atende plenamente aos requisitos mínimos estabelecidos pela lei. Nem mesmo o suposto objetivo fim do deslocamento da antena se verifica, pois apenas duas rádios fazem seu sinal chegar ao local de origem da licença e, mesmo assim, com programas inteiramente produzidos em outra cidade. E como essas empresas conseguiram burlar por tanto tempo a lei? Algum funcionário público recebeu propina para não ver as irregularidades? Não, desta vez a corrupção está centralmente no setor privado. O Estado, por sua vez, omite-se completamente de fiscalizar o cumprimento das regras que visam a preservar o interesse público, pois uma única fiscalização revelou todo o problema.

O Ministério das Comunicações e a Anatel simplesmente não se sentem na obrigação de fiscalizar as empresas privadas. Eles só o fazem se provocados pelo MPF ou por outro organismo independente. Segundo a coordenadora do Grupo de Trabalho de Radiodifusão Comercial do Ministério das Comunicações, Denise de Oliveira, isso acontece para evitar a caracterização de perseguição política. Em outras palavras, para evitar constrangimentos entre os donos da mídia e o governo. Com essa postura, cidades inteiras passam décadas sem usufruir de um recurso natural que lhes é de direito.

O relatório da Anatel recomenda um prazo de 270 dias para correção das irregularidades sob pena de suspensão do serviço. Um prazo generoso e bem diferente ao dado para as rádios comunitárias irregulares, que têm seus equipamentos apreendidos e seus integrantes presos por tentar se comunicar. Para elas, não há qualquer prazo para defesa ou adequações. Duas das rádios comerciais citadas no relatório da Anatel obstruíam a fiscalização impedindo sua conclusão. Até agora, não se tem notícia de que a Polícia Federal tenha sido acionada para intervir.

O governo precisa fazer a sua parte e deixar de ser omisso. O MPF já enviou nova recomendação pedindo que a fiscalização realizada em São Paulo se repita em todo o país, a começar pelas capitais. Cabe ao Ministério das Comunicações a decisão de defender o interesse público ou de se juntar aos demais, no banco dos réus.

Pedro Ekman é integrante da Coordenação Executiva do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Programa policial exibe vídeo com estupro de criança de 9 anos

Por Raquel Dantas*

É hora do almoço quando a vinheta anuncia a abertura de mais um Cidade 190. Dentre as narrativas de crimes que se desenrolam, uma reportagem de 17 minutos exibe vídeo de flagrante de estupro de criança de nove anos de idade dentro da própria casa. A equipe de reportagem da emissora cearense TV Cidade, afiliada da Rede Record, foi até Pacatuba, município da região metropolitana de Fortaleza, para relatar o crime. A repórter começa a matéria identificando rua e número das residências onde moram vítima e agressor. Familiares são entrevistados sobre o caso, enquanto seguidas vezes são repetidas as cenas do abuso sexual. A imagem é embaçada somente na altura dos genitais, deixando visível ao telespectador toda a cena de violência.

O caso foi repercutido nas redes sociais e, no site oficial da emissora, o vídeo com a reportagem chegou a ter 30 mil visualizações até às 17h da quarta-feira (08/01), dia seguinte à exibição da matéria. Após reação do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e do procurador regional da República do Estado do Ceará, Francisco Macedo Filho, o vídeo foi retirado do ar. Não obstante, a emissora voltou a veicular o caso na tarde do mesmo dia e outros programas policiais também o fizeram, como o Rota 22, da TV Diário. Esta emissora, por sua vez, explorou tentativa de linchamento da população ao agressor e situação de extrema vulnerabilidade do pai da criança, que é mostrado desmaiado no chão em frente à delegacia do município de Maracanaú, para onde o agressor havia sido encaminhado.

Uma série de violações se configuram no caso descrito. Em primeiro lugar, a transmissão por si só do estupro pela TV Cidade, que fere os princípios constitucionais referentes à responsabilidade de concessionários de serviços de radiodifusão para com a imagem e a dignidade das pessoas, com o agravante por se tratar de uma criança. Em segundo – e com peso e consequências psicológicas irremediáveis, a extrema exposição da criança em situação de violência e a sua identificação, pelas imagens do rosto e do corpo inteiro, pela divulgação do seu endereço de moradia e da exploração de depoimentos de seus familiares, permitindo que qualquer morador da comunidade possa identificá-la. A situação em que a emissora colocou a criança também abriu margem para o julgamento popular, o qual se caracterizou muitas vezes na culpabilização da menina, como pôde ser visto nos comentários na reportagem disponibilizada no portal da emissora na internet.

Mesmo após ser informada de que a veiculação das imagens configurava crime, a TV voltou a exibir matérias na edição da tarde de quarta-feira, revelando parte do diálogo do agressor com a vítima. A atitude demonstra total falta de responsabilidade do veículo e do corpo editorial, além de deixar claro que a busca pela audiência é colocada em primeiro plano mesmo que para isso mais violações sejam cometidas.

Cabe aqui uma reflexão a respeito da relação da população com os programas policiais em geral. Eles normalmente são o único meio pelo qual moradores de bairros desassistidos pelo poder público conseguem atenção e visibilidade para os problemas que vivenciam. A relação é tão estreita que é comum que a população acione a produção desses programas policiais ao invés da própria polícia quando algum crime acontece. O caso que tratamos é emblemático porque o pai da criança julgou que solicitar ajuda do programa policial seria talvez a melhor ou mesmo a única medida a seu alcance para fazer justiça. Tanto que o caso só se tornou público porque os pais entregaram cópia do vídeo para a produção do Cidade 190.

Em nota de esclarecimento lançada nesta quinta-feira, o Departamento de Jornalismo da TV Cidade declara que as imagens foram divulgadas “a pedido expresso de seu pai, que, em desespero, solicitou essa providência por entender que tal procedimento ajudaria a punir o criminoso”, e que conseguiram fazê-lo sem que houvessem dados identificatórios, assegurando a proteção da criança. O que, conforme descrito aqui, não ocorreu.

O caso deixa claro até onde pode chegar o abuso e a irresponsabilidade de um canal de TV por meio de seus programas policiais, ditos jornalísticos. Uma grave e séria conduta que deve ser avaliada pela sociedade e pela qual a emissora deve ser responsabilizada. Também é importante trazer à tona as inúmeras violações contra os direitos humanos que são cometidas diariamente, há muito tempo, por todo e qualquer programa policial exibido no estado do Ceará. O espetáculo da violência foi adotado pelas emissoras de TV locais a partir do programa Barra Pesada, da TV Jangadeiro – hoje afiliada da Rede Bandeirantes – exibido pela primeira vez em julho de 1990. Ainda hoje no ar, disputa telespectadores com Cidade 190, da TV Cidade, e com os veiculados pela TV Diário – Comando 22, Rota 22 e Os Malas e a Lei.

A gravidade do fato vem gerando grande repercussão e comoção. Sociedade civil organizada já se articula para programar medidas de publicização do fato e responsabilização da emissora pelo crime cometido. Mais de trinta entidades locais se reuniram nesta quinta-feira, na sede do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará, para organizar ações e cobrar que a assistência psicológica à família seja garantida.

Não será o último caso, mas pode deixar marcas mais profundas de sensibilização da sociedade e de mobilização de entidades e movimentos sociais para que se construa uma relação crítica da população com esses programas. É também necessário e urgente que se crie mecanismos de fiscalização dos meios de comunicação para que os cidadãos tenham a quem recorrer diante dos abusos e violações cometidas. Além disso, é primordial a criação de um órgão regulador que garanta o cumprimento das leis vigentes, já que a responsabilidade dos meios de comunicação está inscrita na Constituição Federal e no Código de Ética dos Jornalistas. Todas essas medidas só serão possíveis no dia em que governo e sociedade cobrem os meios de comunicação para que sejam promotores de direitos, pois hoje esse serviço público tem sido norteado por interesses econômicos, tão bem entranhados nessa relação de poder, polícia e política que envolve a mídia.

* Raquel Dantas é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes no Ceará.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.