Por Gustavo Gindre*
O Decreto 4901/2003 permitiu que recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel) fossem usados para financiar consórcios de universidades brasileiras que fizessem pesquisas ligadas à digitalização da TV aberta. Foram listados temas como transmissão e recepção, modulação, interatividade, middleware, serviços, aplicações e conteúdo e investidos cerca de R$ 100 milhões.
Mas, quando o governo decidiu pela implantação do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T), através do Decreto 5820/2006, uma única tecnologia brasileira foi aproveitada: o middleware Ginga. No restante, a TV digital brasileira usaria as tecnologias do sistema japonês, o ISDB-T (Integrated Services Digital Broadcasting Terrestrial). A essa combinação, de uma única tecnologia brasileira com um sistema inteiro japonês, o governo chamou de nipo-brasileira (sic).
Middleware é um software base, que se posiciona entre o hardware e as diferentes aplicações que rodam naquela máquina. No caso do Ginga, ele nasceu vocacionado para lidar com interatividade, e sua parte principal (Ginga-NCL) foi escrita em código-fonte aberto. Ao longo dos anos, o Ginga se tornou um padrão da Associação Nacional de Normas Técnicas (ABNT) e da União Internacional de Telecomunicações (UIT).
Embora o decreto que decidiu por sua utilização na TV aberta seja de junho de 2006, o Ginga só se tornou obrigatório em 2013, mesmo assim para 75% das TVs fabricadas no Brasil. A instalação em todas as TVs está prevista apenas para 2015. Com isso, é possível dizer que o Ginga fracassou na TV aberta e com ele morreu a única tecnologia nacional de um sistema dito “nipo-brasileiro”.
Oracle
O primeiro problema enfrentado pelo Ginga foi a opção por usar a tecnologia Java, de propriedade da Oracle. Com isso, viveu-se uma longa batalha em torno da possibilidade de pagamento de royalties que tornariam proibitivo o uso do Ginga. Mas a Oracle não foi nem de perto o principal adversário do Ginga.
Radiodifusores
Ainda é possível lembrar de representantes dos radiodifusores no Conselho Consultivo do SBTVD-T afirmando que interatividade na TV não passava de ficção científica e que TV e internet sempre seriam coisas totalmente diferentes.
Obviamente não se trata de ignorância, mas da determinação política dos radiodifusores de evitar ao máximo possível qualquer mudança no modelo de negócios da TV aberta. E quanto maior a interatividade, maior o risco de evasão de audiência. Por isso, os radiodifusores tentaram evitar qualquer tecnologia que integrasse a TV com outras mídias. E entre elas estava o Ginga, combatido desde o início. Naquela altura, porém, mal sabiam os radiodifusores que a interatividade chegaria à TV e que seu maior problema não estava no Ginga.
Samsung, LG, Sony, Google e Apple
A venda de aparelhos de TV tem uma pequena margem de lucro. O negócio, portanto, só é sustentável para aqueles que operam em grande escala. É justamente por isso que fabricantes vêm abandonando o setor, que se concentra em poucas empresas, como Samsung, LG e Sony.
Nos últimos anos, essas empresas têm procurado agregar valor às TVs, através de novas e maiores telas (LED e Oled), do aumento da definição (com o novíssimo 4K), mas, principalmente, da introdução das smarTVs, integradas à internet. Esses aparelhos são a porta de entrada para os fabricantes criarem lojas de aplicativos. Também Google e Apple já perceberam o potencial de conectar as TVs à internet e apostam em seus próprios aparelhos e, claro, nas suas lojas de aplicativos.
Esse modelo de negócio contraria o interesse dos radiodufusores e faz do Ginga um concorrente indesejado. Qual fabricante gostaria de ter uma loja de aplicativos em código-fonte aberto concorrendo com sua própria loja de aplicativos?
Governo
Diante de tantos adversários, o Ginga teria, em tese, um único, mas poderoso, aliado: o governo. Justamente aí é que as coisas parecem não ter dado certo. O governo aceitou pressões para adiar ao máximo a obrigatoriedade do Ginga. Somente nove anos após a edição do decreto que criou o SBTVD-T todos os aparelhos terão que trazer o Ginga.
Mas o principal problema é a incapacidade de gerar uma loja de aplicativos. E sem aplicativos, nenhum sistema operacional (ou middleware) consegue sobreviver. Poucas instituições públicas desenvolveram aplicativos, e a quantidade é ainda menor na iniciativa privada. Com o Ginga, morre a ideia de termos uma TV com software livre, com aplicativos de interesse social, feitos a partir de tecnologia brasileira. No seu lugar fica uma TV conectada à internet através de “jardins murados”, fortemente controlados pelos interesses comerciais de fabricantes estrangeiros, com tecnologia importada.
Sem o Ginga, a TV digital brasileira é a primeira do mundo a ser “nipo-japonesa”.
*Gustavo Gindre é jornalista formado pela UFF, pós-graduado em Teoria e Práxis do Meio Ambiente (ISER) e mestre em Comunicação e Cultura (UFRJ). Foi membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) por dois mandatos (2004-2007 e 2007-2010). Integrante do Coletivo Intervozes. Fellow da Ashoka Society. É servidor público concursado, especialista em regulação da atividade cinematográfica e audiovisual.
Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.