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Palestina e a batalha pela informação

Por Soraya Misleh*

A depender de como os jornalistas que estão cobrindo o massacre israelense em Gaza (Palestina ocupada) transmitam a informação, são demitidos ou transferidos para outras regiões. A denúncia consta de reportagem da jornalista Rita Freire, publicada em 18 de julho último no site da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada. Corrobora o que o movimento global pela democratização das comunicações tem apontado há tempos: a informação está longe de ser livre. O espectro público da mídia permanece ocupado e a serviço das grandes corporações transnacionais, que reproduzem e atendem aos interesses dos “donos do poder”. Nesse caso, Israel e seus aliados.

Fato é que, a despeito desse cerceamento à informação, o genocídio em Gaza assume proporções que têm abalado profundamente a imagem de Israel junto à opinião pública mundial. Não obstante as mais de 1.800 vítimas fatais, 9 mil feridos e 450 mil deslocados internamente de suas casas em menos de um mês, politicamente, sairá derrotado. Seu isolamento deve aumentar, e o Brasil é chave para intensificar esse movimento na América Latina. Assim, precisa urgentemente ouvir as vozes das ruas e romper relações comerciais, militares e diplomáticas com Israel. Não é mais possível, diante das novas tecnologias, omitir o massacre do povo palestino em andamento. Imagens chocantes são postadas diretamente de Gaza nas redes sociais, furando o tradicional bloqueio midiático.

Manuel Castells, em seu O poder da identidade (A era da informação: economia sociedade e cultura – Volume 2, Ed. Paz e Terra: 2008), elucida as transformações e influência advindas das novas tecnologias da informação sobre os meios hegemônicos. Para ele, “a mídia eletrônica (não só o rádio e a televisão, mas todas as formas de comunicação, tais como o jornal e a Internet) passou a se tornar o espaço privilegiado da política. Não que toda a política possa ser reduzida a imagens, sons ou manipulações simbólicas. Contudo, sem a mídia, não há meios de adquirir ou exercer poder”.

Os meios de comunicação hegemônicos buscam formas de noticiar o que é impossível de ser omitido, sem deixar de servir aos seus senhores. É o que vemos no Brasil inclusive. Aqui, as poucas famílias que controlam o espectro midiático iniciaram a cobertura de Gaza com um discurso simpático à ofensiva israelense, comprando a velha ideia de defesa. Haviam sido capturados e, 18 dias depois, em final de junho, mortos três jovens colonos judeus. A resposta israelense eram os ataques ao Hamas, que controla a faixa de Gaza. A costumeira forma fragmentada de noticiar deixou, como de praxe, a contextualização histórica de fora e passou longe dos cálculos políticos do governo israelense, diante de uma crise interna.

Embora as reportagens apontassem que o Hamas não havia assumido a autoria das mortes – que se deram em circunstâncias ainda hoje não esclarecidas –, em nenhum momento informaram que os colonos circulavam entre assentamentos ilegais na Cisjordânia (Palestina ocupada), ali colocados por Israel para dar cabo a sua política de colonização e apartheid. Também não noticiaram que, nessa ocupação, um dos instrumentos tem sido a cultura do ódio. Na área onde foram mortos os colonos, Hebron (Al Khalil), encontram-se extremistas israelenses que agridem cotidianamente os palestinos. Nas paredes, escrevem o que propagam aos quatro ventos: “Morte aos árabes!”. Portanto, a responsabilidade pelo que ocorreu com os três jovens é de Israel.

Além disso, como é regra, os meios de comunicação não reportaram que, em 15 de maio, nas manifestações pacíficas para lembrar a nakba – catástrofe, como os árabes se referem à criação do Estado de Israel, naquela data, há 66 anos – , dois jovens palestinos foram assassinados a sangue frio pelo exército de Israel. A opressão cotidiana, prisões políticas, demolição de casas, tudo isso ficou e continua ausente do noticiário.

Iniciada a ofensiva em Gaza, o máximo que se ousava dizer era que a ação por parte de Israel era “desproporcional” – discurso que ainda prevalece, mas agora também aparece o termo “massacre”, quando é impossível negá-lo, frente a bombardeios até de escolas da Organização das Nações Unidas (ONU), repletas de crianças, e hospitais. Nos telejornais e na grande mídia impressa, contudo, insiste-se em falar em guerra entre Israel e Hamas, e não em genocídio do povo palestino. A afirmação, não raro, é que não se tem um cessar-fogo definitivo por intransigência mútua.

Mas guerra pressupõe dois lados iguais, o que é desmentido pelas baixas de um lado e de outro (em Israel, cerca de 60, quase a totalidade de soldados). Também ignora-se o fato de que o argumento israelense de defesa não se aplica, já que se trata de território ocupado ilegalmente – situação em que a resistência é legítima, inclusive face ao direito internacional.

Guerra sugere um evento isolado, quando na realidade trata-se de mais um capítulo da limpeza étnica do povo palestino. Essa se iniciou após a recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, de partilha da Palestina em um Estado judeu e um árabe, sem consulta aos habitantes locais. A recomendação dava sinal verde ao movimento sionista – que visava criar um estado homogêneo exclusivamente judeu em terras palestinas – para colocar em prática seu plano de limpeza étnica.

Ondas de imigração de judeus, sobretudo da Europa do leste, para a conquista da terra e do trabalho, não foram suficientes para garantir a colonização da Palestina. A maioria da população (70%) continuava sendo não judia, e a única maneira de se criar um Estado homogêneo, com essa característica, era promover a limpeza étnica. O resultado foi a expulsão de 800 mil palestinos de suas terras e propriedades e a destruição de cerca de 500 aldeias. Assim, na sua criação, em 15 de maio de 1948, Israel passava a ocupar 78% da Palestina histórica. Dava-se início a uma das maiores injustiças da era contemporânea, aprofundada em 1967, quando o restante do território foi ocupado (Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental).

A ausência de contextualização histórica na grande mídia mantém a questão palestina como ilustre desconhecida. Também quase não se fala da resistência heroica que tem se dado agora nas ruas da Cisjordânia e das mobilizações onde hoje é Israel, capitaneadas pelos palestinos que vivem ali – 1,5 milhão no total (20% da população).

Esse quadro mostra que é preciso fortalecer a batalha pela informação. A mídia hegemônica, alimentada pelas poucas agências de notícias internacionais, foi e continua sendo cúmplice da colonização e apartheid a que estão submetidos os palestinos. Democratizar as comunicações é parte crucial da luta pela transformação dessa realidade.

* Soraya Misleh, jornalista palestino-brasileira, da Ciranda Internacional de Comunicação Compartilhada e Frente em Defesa do Povo Palestino.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Por que a dívida da Globo não é manchete de jornal?

Por Bruno Marinoni*

“Siga o dinheiro”, aconselhava William Mark Felt, o “garganta profunda”, aos jovens jornalistas que, nos anos 70, revelaram todo um esquema de espionagem e corrupção no interior da Casa Branca. O que não descobriríamos então se os jornalistas da mídia brasileira investigassem, por exemplo, a denúncia de que a Globo deve mais de R$ 600 milhões aos cofres públicos porque sonegou o imposto decorrente da compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002?

O caso, que já vinha sendo anunciado há algum tempo, ganhou novo capítulo no último dia 17 de julho, quando 29 páginas do processo na Receita Federal contra a Globo foram divulgados em um blog na internet. A emissora teria usado 10 empresas criadas em paraísos fiscais para esconder a fraude. Com o esquema, o sistema Globo teria incorrido em simulação e evasão fiscal. O imposto sobre importâncias enviadas para o exterior para aquisição de direitos de transmissão no caso da empresa beneficiária estar sediada em paraísos fiscais seria de 25%, se fosse pago.

E se os jornalistas da nossa mídia fossem, por outro exemplo, atrás do papel que a Igreja Universal, milionária e com isenção fiscal por se tratar de uma entidade religiosa, cumpre no financiamento da Record? Uma matéria intitulada “Macedo nega uso do dinheiro da igreja na compra de TV”, publicada na Folha de São Paulo, em setembro de 1998 (quando a emissora não era ainda uma competidora de peso), afirmou que investigações da Receita resultaram em uma multa de R$ 265 milhões ao grupo. A maior parte do pagamento, ou R$ 118 milhões, coube à Record; outros R$ 98 milhões, à própria Igreja Universal, e mais R$ 6 milhões, a Edir Macedo. Esses valores se refeririam a autuações e multas por sonegação fiscal e outras irregularidades.

Além disso, a imprensa já veiculou algumas vezes que a Igreja Universal compraria a faixa da madrugada da TV Record, que tem baixíssima audiência, por um preço muito acima do mercado. Todavia, até onde sabemos, nada foi feito para resolver essa questão.

Em 2010, foi a vez de Sílvio Santos, dono do SBT, se envolver em um escândalo de fraude fiscal, uma dívida de R$ 3,8 bilhões. O evento não se relacionava diretamente com os meios de comunicação, e sim com seu banco, o “Panamericano”. O dono da empresa, porém, empenhou todo o seu patrimônio, inclusive seus canais de TV, como garantia de que a dívida seria sanada.

Quando poucos grupos controlam os meios de comunicação, quando há concentração do poder midiático é fácil criar um bloqueio a informações desfavoráveis aos donos da mídia por meio de uma estratégia “positiva”: preenchendo-se a agenda de temas discutidos pela sociedade com uma série de assuntos que não atinjam os interesses daqueles que controlam os canais de comunicação.

Escândalos de corrupção e desvio de dinheiro público são sempre matérias na nossa imprensa, mas qual a seleção de casos que é feita? O que fica de fora? Quem fica de fora dessas páginas? Se há um grande número e diversidade de atores dirigindo os meios de comunicação, maior a possibilidade de nos relacionarmos com canais suficientemente independentes para nos fornecer informações de interesse público. Mas isso é algo em falta no Brasil.

* Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Racismo na mídia: entre a negação e o reconhecimento

Por Cecília Bizerra Sousa*

“Sempre que venho ao Brasil, assisto à TV para ver como o país se representa. Pela TV brasileira, nunca seria possível imaginar que sua população é majoritariamente negra”. Esta observação, entre tantas outras acerca dos desafios que ainda cabem à luta pela igualdade racial no Brasil e no mundo, foi feita pela ativista estadunidense Angela Davis, em conferência em Brasília na noite de 25 de julho, na 7ª edição do Latinidades – Festival da Mulher Afro Latino Americana e Caribenha. “Não posso falar com autoridade no Brasil, mas às vezes não é preciso ser especialista para perceber que alguma coisa está errada se a cara pública deste país, majoritariamente negro, é branca”, acrescentou.

Referência mundial na luta contra o racismo e autora de vários livros e pesquisas na área, Angela Davis, hoje com 70 anos de idade e mais de 40 dedicados à militância e à pesquisa da temática, fala com a autoridade de quem tem uma vida dedicada ao tema. E acerta em cheio. Para além da invisibilidade dos negros e negras na mídia brasileira, o racismo midiático se evidencia pela própria negação do racismo (recordemos o livro do diretor de jornalismo da Rede Globo, Ali Kamel, Não somos racistas, lançado em 2006) e pela afirmação de estereótipos a partir do ponto de vista hegemônico, que colaboram para reforçar uma atitude e um sentimento de auto-desvalorização nos negros e negras, assim como o desinteresse dos veículos de comunicação por suas causas e ações.

Como bem cita o pesquisador brasileiro Muniz Sodré, no livro Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil, “a mídia funciona, no nível macro, como um gênero discursivo capaz de catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações inter-raciais, (…) que, de uma maneira ou de outra, legitima a desigualdade social pela cor da pele.” (SODRÉ, 1999, p.243). Ou seja, é no espaço midiático que ocorrem grande parte das relações étnico-raciais brasileiras.

Mas, se este espaço é um dos principais reprodutores da lógica racista, pode também servir para promover a igualdade racial num país plural como o Brasil. Apesar de ainda haver muito por se construir até que a “cara pública” do nosso país – sobretudo aquela que se apresenta na televisão aberta – seja de fato a representação da nossa diversidade, há que se considerar alguns aspectos positivos e mudanças neste sentido. E dois exemplos recentes puderam ser vistos, em menos de 15 dias, na Rede Globo. A emissora dispensou, em dois momentos de sua programação (o programa Na Moral e a novela Geração Brasil), espaços significativos para a abordagem do racismo. E, no que se refere à terminologia, por exemplo, o assunto foi tratado sem eufemismos ou poréns, com este nome mesmo: racismo.

No programa Na Moral do dia 17 de julho, artistas e estudiosos negros falaram sobre o racismo na TV e suas experiências, a maioria dolorosas. Entre eles estava o cantor Thiaguinho, as atrizes Taís Araújo e Zezé Mota, o ator Aílton Graça e o cineasta e pesquisador Joel Zito Araújo. Negros e negras falando sobre o racismo na TV. A única exceção foi o diretor Daniel Filho, que estava lá porque, no final da década de 1960, dirigiu a novela A Cabana do Pai Tomás, cujo protagonista era um escravo negro vivido por um ator branco (Sérgio Cardoso), que pintava o corpo, usava peruca e rolhas no nariz para compor o personagem. Daniel foi ao programa explicar esta escolha absurda que, obviamente, gerou polêmica, pois havia bons atores negros consagrados na época (a esposa de Pai Tomás, inclusive, era a atriz negra Ruth de Souza).

Outro exemplo recente e que merece destaque foi a cena da novela Geração Brasil, exibida ao final do capítulo do dia 22 de julho, exatamente antes do início do Jornal Nacional. Foi uma cena longa (pouco mais de 12 minutos de duração), que teve como centro uma conversa entre o personagem Brian Benson (vivido por Lázaro Ramos) e Matias (vivido pelo jovem ator Danilo Santos Ferreira). A cena se passa em um reality show chamado “Geração Nem-Nem” e trata do racismo que o jovem Matias sofreu na infância, o que contribuiu significativamente para que ele se tornasse mais um jovem nem-nem (nem trabalha, nem estuda).

Nesse momento, a novela falou abertamente sobre o racismo sofrido por crianças negras na infância, sendo qualificado nitidamente como violência. No palco do programa de auditório que exibe a cena do reality show, onde estão a namorada e os pais de Matias (ele negro, ela branca), a mãe de Matias (a pedagoga Rita de Cássia), ao recebê-lo, pede desculpas ao filho por não ter observado isso, apesar da sua profissão. E a apresentadora, Pamela Parker-Marra (vivida pela atriz Cláudia Abreu), apresenta estatísticas sobre a desmotivação escolar de crianças negras, expondo o papel do racismo nesses índices e relacionando a questão ao seu sucesso nos estudos.

É positivo perceber, em 2014, a luta pela igualdade racial nos meios de comunicação, que vem sendo travada com mais intensidade a partir de meados década de 90, dando retornos positivos. A visibilidade dada às discussões sobre o racismo, sem a utilização de termos para “suavizar” a expressão, e seu reconhecimento como violência pela principal emissora do país não são pouca coisa. Isso nos inspira e nos faz sentir que a luta é válida porque, como já disse o dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht, “nada deve parecer impossível de mudar”. Muito menos o racismo.

* Cecília Bizerra Sousa é jornalista negra, mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), integrante do Coletivo Intervozes e do Coletivo de Mulheres Negras Pretas Candangas.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Propagandas de cerveja: a ressaca da Copa

Por Renato Godoy*

As marcas de cerveja contracenaram com os protagonistas do maior evento esportivo do mundo sob o olhar atento de crianças e jovens. Lojas da Budweiser, abertas a todas as idades, ostentavam um amplo telão nos aeroportos das cidades-sede da Copa do Mundo da Fifa. O solo da Granja Comary, centro de treinamento da seleção brasileira, também foi utilizado para plantar cevada de uma edição especial da Brahma, anunciada pelo então popular Luiz Felipe Scolari.

O estádio com a maior média de gols da Copa foi o da Arena Itaipava, em Salvador. A cervejaria carioca também dá nome ao estádio que recebeu os jogos em Recife. A cada seleção em campo, diferentes marcas de cerveja despontavam nas placas ao redor do gramado. Quilmes para os argentinos, Beck’s para os alemães, Brahma para os brasileiros, Jupiler para belgas e holandeses e Budweiser para as demais praças. Todas pertencentes ao grupo AB Inbev, maior conglomerado do setor de bebidas do mundo, que controla 14% do mercado global de cerveja.

Ao serem filmados nas arquibancadas das arenas da Copa, torcedores exibiam copos de Budweiser ou Brahma, customizados para cada um dos 64 duelos da Copa do Mundo. A venda da bebida no interior dos estádios foi uma das exceções concedidas à Fifa por meio da Lei Geral da Copa.

Nos intervalos das partidas e ao longo de toda a programação televisiva, as demais cervejarias associavam suas marcas à paixão pelo futebol, disseminando valores, no mínimo, questionáveis, como já foi muito bem debatido neste mesmo blog.

Esse esforço publicitário que visa relacionar o esporte preferido dos brasileiros ao consumo de cerveja parece ser bem sucedido: um levantamento recente do Ibope mostrou que, entre aqueles que se declaram “superfãs” do esporte, 62% haviam consumido a bebida nos sete dias que antecederam a pesquisa, aplicada durante o torneio.

Regulamentação

O debate relacionando Copa e cerveja teve destaque durante o torneio. Mas o cerne da discussão se deu em torno de eventuais restrições à venda da bebida no interior dos estádios, como forma de prevenir a violência. Antes do torneio, o secretário-geral da Fifa Jerome Valcke defendeu a comercialização da bebida com a argumentação de que “cerveja não é vodca”. Com o temor de que as rivalidades misturadas com álcool ocasionassem brigas, o mesmo Valcke chegou a admitir a possibilidade de suspender a venda durante os jogos.

Porém, mais do que discutir se o consumo de álcool dentro dos estádios provoca violência, é necessário voltar a debater a liberalidade da qual as empresas do setor gozam no Brasil para anunciar seus produtos em qualquer local e horário. As altas doses diárias de comerciais de cerveja na programação televisiva e em demais comunicações mercadológicas não são uma exceção aberta ao torneio promovido pela Fifa, mas algo permitido pela legislação brasileira, que, incrivelmente, não inclui a cerveja no rol de bebidas alcoólicas.

Fruto de um pesado lobby do setor, a legislação brasileira determina que, para fins de propaganda comercial, somente são consideradas bebidas alcoólicas aquelas com graduação superior a 13 graus Gay Lussac. Assim, não há restrição horária para a veiculação de cervejas e bebidas “ice”, com seus 4,5 graus em média, que são anunciadas sem maiores restrições – enquanto as demais, que excedem a graduação, só podem ser veiculadas entre 21h e 6h. A lei 9294/1996 também determina que bebidas alcoólicas não podem ser associadas à prática esportiva. Mas, ficando abaixo dos 13 graus, as cervejarias escapam das restrições legais para anunciar seus produtos em eventos esportivos.

Cerveja também é álcool

Pesquisas nacionais e internacionais apontam que a exposição à publicidade de cerveja estimula o consumo precoce da bebida por crianças e adolescentes. A pesquisadora da Unifesp Ilana Pinsky cruzou 128 pesquisas internacionais em seu artigo “O impacto da publicidade de bebidas alcoólicas sobre o consumo entre jovens: revisão da literatura internacional”, de 2008. As conclusões do levantamento mostram a forte influência da publicidade no padrão de consumo do álcool por jovens. A publicidade reforça atitudes pró-álcool, pode aumentar o consumo de quem já bebe, influencia a percepção de jovens sobre álcool e as normas para beber e, portanto, estimula os jovens ao consumo antes dos 18 anos.

Passada a Copa do Mundo, a sociedade tem uma boa oportunidade para retomar a discussão em torno dos limites da veiculação da publicidade de cerveja no Brasil. Um passo importante para difundir esse debate é o fortalecimento da campanha “Cerveja Também é Álcool”, encampada pelo Ministério Público de São Paulo. Com mais de 75 mil assinaturas, a petição propõe a alteração do parágrafo único do artigo 1º da Lei Federal 9.294/96, para que as restrições à publicidade passem a abranger toda e qualquer bebida com graduação alcoólica igual ou superior a 0,5 grau Gay-Lussac.

No momento em que se discute o legado do megaevento, também é importante fazer valer a proteção da criança e do adolescente em detrimento de interesses mercadológicos que se utilizam, sem moderação, de estratégias que levam crianças e jovens ao consumo precoce de álcool.

* Renato Godoy é jornalista, sociólogo e pesquisador do Instituto Alana.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Culpados, até que se prove o contrário

Por Mônica Mourão*

A negação do pedido de habeas corpus para 23 manifestantes que tiveram sua prisão preventiva decretada a partir de investigação do Ministério Público traz novamente à tona a atuação da mídia na criminalização das lutas sociais.

Apesar das manifestações contrárias às prisões por parte de mandatos parlamentares e instituições como sindicatos, federações profissionais, além de organizações como a Anistia Internacional, Tortura Nunca Mais e a Ordem dos Advogados do Brasil, que chamam atenção principalmente para a falta de respaldo legal e as evidências de perseguição política nas ações, o enquadramento das matérias produzidas pela mídia conservadora prioriza a versão do Judiciário.

O tom da cobertura dos jornais da TV Globo e do diário impresso O Globo reforça a visão de que, quando se tratam de manifestantes, todos são culpados até que se prove o contrário. Obviamente, isso é feito de forma a pontuar “o outro lado”, jargão usado para manter, na prática, um ideal de objetividade e neutralidade que serve bem ao discurso de autoridade jornalístico, mas pouco a uma cobertura efetivamente equilibrada. “O outro lado” está, nesse caso, sempre se defendendo de acusações já colocadas anteriormente como verdadeiras. “O outro lado” está acuado, está se defendendo no tribunal midiático e no de justiça.

A matéria do Bom Dia Brasil desta terça-feira (22/7), que repetia trechos também veiculados na noite anterior no Jornal Nacional e domingo no Fantástico, foi aberta com a apresentadora afirmando que, das pessoas acusadas de praticar atos violentos nas manifestações de rua no último ano, cinco já estão presas. As demais são consideradas, pelo Judiciário e pela mídia, “foragidas”.

O “já” de alívio pela garantia da ordem pública conduzia o restante da matéria. Logo depois de apresentar o trecho de um vídeo em que a advogada Eloísa Samy, que teve a prisão preventiva decretada e pediu asilo político ao Uruguai, nega qualquer envolvimento com atos violentos, a edição da matéria é cortante. Um “mas” abre a sequência de acusações feitas contra ela em inquérito policial. O jogo textual e de imagens forma um discurso lógico: a culpa recai sobre aqueles ombros, sem sombra de dúvidas.

Além da falsa neutralidade, as matérias têm mostrado uma tendência antiga no jornalismo brasileiro: a relação de subserviência com fontes que são autoridades, como a policial. Faz parte de tal relação tanto o uso acrítico de informações oriundas da polícia como a cessão, muitas vezes com exclusividade para certos meios de comunicação, de materiais sigilosos da investigação. (Paradoxalmente, os próprios acusados e seus advogados não conseguem ter acesso aos autos dos processos). Para não restar dúvidas da isenção das informações policiais, o tempo de investigação para se chegar às prisões preventivas, de sete meses, foi repetido como mais uma ferramenta de respaldo da dupla autoridade imprensa-polícia.

A veiculação midiática de gravações feitas para inquéritos policiais está banalizada e foi fartamente utilizada nas matérias de TV dos últimos três dias. Uma delas, em que a ativista Elisa Quadros, conhecida como Sininho, pede ajuda de seu padrasto para ficar longe de cidades onde pode ser perseguida, prova muito mais o seu temor por uma punição do que qualquer ação criminosa praticada por ela.

Sininho, inclusive, é um caso emblemático na cobertura criminalizante, feita desde 2013, sobre os atos de massa. A moça foi catapultada à condição de líder pela própria mídia, desde matéria no jornal O Globo, cuja capa tratava da prisão de “70 vândalos”, em outubro de 2013. A condição de liderança sempre foi negada por ela e por movimentos sociais e, até hoje, quase um ano depois, nenhuma prova contundente foi apresentada. Desde então, o jornalismo se retroalimenta de sua própria cobertura. E Sininho se vê presa – também – num emaranhado de narrativas que se sustentam umas nas outras.

E os demais casos? O casal que comemora o lançamento de um coquetel molotov e as amigas que combinam uma oficina de fabricação de “drinks” (código para o coquetel)? Mesmo aqui cabe uma reflexão básica: estão sendo presas ou procuradas pessoas que ainda não tiveram seu julgamento concluído. Não se sabe ainda se são ou não culpadas. E, se forem, não se sabe qual pena terão de cumprir. A ação, contrária às normas democráticas, de punir primeiro para averiguar depois é feita pelo Judiciário com a aclamação e o reforço de parte da grande mídia. Prática corriqueira com presos comuns em programas policialescos, com a repercussão política das atuais prisões preventivas, o modus operandi ganha mais fortes contornos de absurdo.

Outra reflexão simples que parece ter faltado ao setor de jornalismo das Organizações Globo é sobre como são feitas as coberturas quando a violência está do lado de lá. O que seus jornais tiveram a dizer quando, no ano passado, milhares de pessoas – muitas que simplesmente tentavam ir embora das manifestações – foram encurraladas pelas ruas do Centro da cidade e da Lapa, no Rio de Janeiro, com bombas de gás lacrimogêneo? O que disseram quando, no dia da final da Copa do Mundo, policiais mantiveram pessoas em cárcere a céu aberto no entorno da praça Saens Peña, na Tijuca, em meio a bombas de gás e chuvas de cassetetes? O silêncio pode ser tão revelador quanto as palavras.

Enquanto isso, longe (de uma distância outra, nem sempre geográfica) das grandes avenidas e praças da cidade, quantas vezes Cláudias e Amarildos precisam provar o que estão fazendo naquele lugar e naquela hora, são sempre aquele “outro lado” que se defende de não ser traficante, de não ser criminoso?

No jornal impresso O Globo, pouco espaço para brechas, sutilezas, não ditos. Na edição de hoje (22/7), a matéria com o título “Conexão sindical” associa sindicatos de professores, da saúde e de petroleiros (Sepe, Sindprev e Sindpetro) do Rio de Janeiro a “protestos violentos”, conforme escrito pelo jornal e mostrado em foto com jovem provocando um incêndio na rua. Boxes com a retranca “Opinião” deixam muito evidente: para o veículo, tratar as prisões como casos de repressão política é “balela”, conforme edição de 15 de julho. Dois dias depois, manifestantes em geral e uma professora (Camila Jourdan) foram comparados a grupos que “desembocaram no terrorismo” na Alemanha, na Itália e no Peru. Também no último dia 15, o jornal alertou: “O Estado apenas cumpre sua função de defender a sociedade da ação de grupos violentos”.

E quem nos defende do Estado? Quem nos defende do discurso criminalizante do maior conglomerado de mídia do país? Melhor buscar rapidamente uma defesa, pois do crime de livre pensamento, manifestação e expressão, do crime de teimar em viver numa democracia, também somos culpados.

*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.