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O fator Murdoch, lá e cá

A edição de sábado (30/6) de O Globo (pág. 36) reproduz um veemente libelo do colunista do New York Times, Paul Krugman, contra a compra do Wall Street Journal pelo tubarão da mídia Rupert Murdoch ("O fator Murdoch na mídia americana", ver abaixo).

A matéria é triplamente meritória: a) pelo conteúdo; b) pela revelação de que o NYTimes manifesta-se ostensivamente sobre os negócios do concorrente e, c) pelo fato de levar um jornalão brasileiro a discutir em público a questão da propriedade de um veículo de comunicação. Ainda que em outro mercado, no hemisfério norte [ver remissões abaixo].

A imprensa brasileira deixou de se expor à opinião pública. Discute tudo, menos a vida íntima das empresas jornalísticas. A imprensa brasileira deixou de brigar pela integridade da imprensa brasileira. Mas o que se passa dentro de uma empresa jornalística é de interesse da sociedade.

Pacto de silêncio

Se Murdoch efetivamente comprar o poderoso Wall Street Journal, ficará em Nova York com dois jornais – o New York Post, que atua no segmento popular, e o jornalão de negócios, um dos mais influentes diários do mundo, o WSJ.

O NYTimes tem obrigação de discutir isso publicamente porque Murdoch, além de tubarão, é um dos maiores reacionários no mundo da mídia. Não respeita os princípios de isenção, não tem o menor apreço pelo equilíbrio dos veículos que coleciona e, além disso, tem o maior desprezo pelo que pensam os seus empregados. Mesmo os do primeiro escalão.

Os EUA estão discutindo a compra do WSJ e assim também a opinião pública inglesa, porque Murdoch já é dono do Times de Londres e ao acrescentar um jornalão americano ao seu formidável portfólio tornar-se-á imbatível.

Se o NYTimes não discutisse a compra do concorrente estaria traindo os interesses dos seus leitores e dos seus anunciantes. Se ficasse omisso, seria acusado de cúmplice e irresponsável. Sua biografia ficaria indelevelmente comprometida.

No Brasil, é diferente. A imprensa é um dos poucos tabus da nossa imprensa. Foi estabelecido um pacto de silêncio em torno da mídia em geral e dos jornais, em particular. A ANJ (Associação Nacional dos Jornais, que transcende ao segmento diário e em algumas questões abarca também os semanários, a despeito da existência da ANER, entidade revisteira) adota rigorosos códigos de conduta.

Primeira grandeza

O pluralismo e a diversidade da nossa mídia são condicionados pelo corporativismo desta mesma mídia. A pauta dos jornais brasileiros teoricamente tem poucas limitações – em princípio a grande imprensa trata de tudo. A realidade é outra: uma vaca sagrada verdadeiramente intocável foi instalada no âmago da nossa imprensa e impede que a sociedade seja informada do que se passa intramuros.

Significa que nosso jornalismo – por melhor e mais brilhante que seja nos seus aspectos formais, intelectuais e operacionais – está proibido de ser absolutamente transparente. Em certas disciplinas é assumidamente opaco. Não por culpa de poderosos governos ou delirantes caudilhos, mas por opção própria. Vocação suicida. Nossa imprensa transgride voluntariamente uma das suas principais funções e não consegue perceber que perde o direito de exigir transparência e limpidez nas diferentes esferas da sociedade.

Quando o jornalista-empresário Ary de Carvalho tomou O Dia do deputado-empresário Chagas Freitas (que, por sua vez, o havia tomado de Ademar de Barros), o assunto não vazou, circunscrito às conversas de bar. Chagas Freitas foi durante duas décadas o presidente do Sindicato das Empresas Proprietárias de Jornais do Rio de Janeiro, precursor da ANJ. Não obstante, foi atropelado pelo pragmatismo/corporativismo dos ex-parceiros – "o rei é morto, viva o rei". A imprensa americana ou inglesa ou alemã ou francesa ou espanhola, jamais manteria este assunto na gaveta. [Ver, neste Observatório, "O Rei está morto, viva o Rei")

Os procedimentos e negócios do empresário Nelson Tanure nunca foram examinados pelos seus pares. Mesmo o seu exótico hobby de colecionar ou alugar moribundos (Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, CNT, IstoÉ) não consegue despertar o interesse de uma imprensa geralmente tão sensível aos escândalos.

O Globo iniciou uma formidável série de reportagens sobre "Impunidade". Mais do que investigação, é uma magnífica exibição de um dos principais atributos e deveres da imprensa: sua capacidade de lembrar e referenciar. No domingo (1/7), à página 3, um quadro simples e aterrador: os dez escândalos dos últimos dez anos, todos impunes. Começa com os precatórios (1997) e termina com os sanguessugas (2006).

Ficou de fora o escândalo da compra do Dossiê Vedoin para ser publicado no semanário IstoÉ, um dos únicos casos em que a infalível Polícia Federal reconheceu a sua falibilidade. Crime eleitoral de primeira grandeza e cujo pivô era um veículo jornalístico. Sobrou. Escândalo na mídia não serve à nossa mídia.

Entrevista ignorada

No domingo 24/6, a Folha de S.Paulo publicou com enorme destaque uma entrevista com aquela que no dia seguinte ela própria classificaria como "Musa do Escândalo", Mônica Veloso, a ex-namorada do senador Renan Calheiros.

Com sutileza e alguma malícia, o jornal revelou o perfil da testemunha-chave da revista Veja sem contudo desqualificar o teor das graves acusações contra o senador. Como a moça quer aparecer, a Folha fez a sua vontade – mostrou-a.

Arrependeu-se: a entrevista passou uma semana inteira completamente ignorada pelos agilíssimos e atentos leitores da Folha de S.Paulo. Inacreditável: de segunda (25/6) a segunda (2/7), uma das seções de cartas mais dinâmicas da grande imprensa deixou de lado uma matéria superbadalada, picante, trepidante, politicamente incorreta porém muito reveladora sobre os bastidores do nosso jornalismo investigativo.

Rupert Murdoch, o rei da manipulação, não aprovaria este silêncio.

***

O fator Murdoch na mídia americana

Paulo Krugman # copyright The New York Times (29/6) e O Globo (30/6)

Em outubro de 2003, o Programa de Posturas Políticas Internacionais publicou um estudo chamado "Enganos, a mídia e a Guerra do Iraque". Ele mostrava que 60% dos americanos acreditavam em pelo menos uma das afirmações: havia provas da ligação entre Iraque e Al-Qaeda; foram encontradas armas de destruição em massa no Iraque; a opinião pública apoiava a guerra dos EUA contra o Iraque.

Esses enganos, porém, dependiam da fonte das notícias. Só 23% dos que assistiam os canais públicos PBS ou NPR acreditavam que alguma dessas afirmações fosse verdadeira, mas o percentual chegava a 80% nos que recorriam à Fox News. Dois terços dos fãs da Fox acreditavam que os EUA tinham provas de que Saddam Hussein cooperasse com a Al-Qaeda.

Então, alguém acha que está tudo bem a News Corp., de Rupert Murdoch, que controla a Fox News, comprar o Wall Street Journal? O problema com Murdoch não é que ele seja um ideólogo da direita. Se fosse apenas isso, ele seria menos perigoso. Ele é, antes, um oportunista que explora um ambiente de mídia desregulamentado por meio da distorção do noticiário para favorecer quem ele acredita que ajudará seus negócios.

Nos EUA, essa estratégia significou o favorecimento do governo Bush – mas ano passado ele se protegeu arrecadando fundos para a campanha de Hillary Clinton ao Senado. Na Grã-Bretanha, Murdoch apoiou Tony Blair em 1997 e deu-lhe uma cobertura favorável, "assegurando", diz o New York Times, "que o novo governo deixasse intactos seus ativos britânicos". E, na China, as organizações de Murdoch cuidaram de não ofender a ditadura.

O pessoal de Murdoch não faz afirmações falsas: eles induzem ao engano por indiretas. Nos primeiros meses da ocupação do Iraque, a Fox cobriu exaustivamente cada relatório de possíveis armas de destruição em massa, com pouco ou nenhum espaço para a posterior descoberta de que fora um alarme falso.

Quando tudo falha, as empresas jornalísticas de Murdoch simplesmente param de cobrir assuntos inconvenientes. O Projeto para Excelência no Jornalismo apurou que, no primeiro trimestre de 2007, os programas diurnos da Fox News dedicaram apenas 6% de seu tempo à Guerra no Iraque, contra 18% na MSNBC e 20% na CNN. O que tomou o lugar do Iraque?

Anna Nicole Smith, com 17% do espaço da Fox.

Os defensores da oferta de Murdoch pelo Journal afirmam que não devemos julgá-lo pela Fox News, mas por sua condução do venerável Times de Londres, que ele comprou em 1981. Realmente, o viés político do Times é muito menos óbvio que o da Fox News. Mas vários funcionários do Times disseram ter havido pressões para manipular a cobertura – e todos que vi defenderem a administração de Murdoch ainda estão em sua folha de pagamento.

Não há obstáculos legais à compra do Journal pela News Corp. Mas a pressão da sociedade poderia evitar isso. Talvez o Congresso pudesse fazer audiências.

Se Murdoch comprar o Journal, será um dia triste para a mídia e a democracia americanas. Se houvesse justiça, Murdoch, que fez mais que qualquer um no jornalismo para levar os EUA a uma guerra injustificável e desastrosa, seria um pária desacreditado. Em vez disso, ele está expandindo seu império. [Paul Krugman é colunista do New York Times]

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Vitória da imprensa alternativa

No dia 15 de junho passado foram encerradas as votações da segunda edição do “Troféu Dia da Imprensa”, computando-se os quase 20 mil votos, organizada pela revista Imprensa. Os finalistas haviam sido indicados por um colégio eleitoral com composição profissional diversificada, e de amplo espectro ideológico, contando com personalidades como Zilda Arns, Cristovam Buarque, Aldo Rebelo, o deputado estadual de Minas Gerais Carlos Mosconi, o prof. Wilson da Costa Bueno, Yara Perez, Eduardo Pugnali, Ricardo Viveiros.

Na categoria “Melhor página de hard news”, Carta Maior triunfou por ampla maioria, tendo obtido 64,05% dos votos. Em segundo lugar ficou a Agência Estado, com 21,56%, em terceiro, G1, com 5,66%, em quarto Uol News, com 4,96% e em quinto, Último Segundo, 3,75%. Uma vitória que dá reconhecimento ao trabalho sério, independente, crítico, da Carta Maior, competindo com sites com grande circulação comercial, sendo boicotado pela mídia oligárquica, que trata de desconhecer e mesmo sabotar o papel que a mídia alternativa tem desempenhado, cada vez mais, como espaço de construção democrática de uma informação rigorosa e pautada pela defesa ampla dos direitos da cidadania.

Animados por nosso mote inspirador, o verso do poeta espanhol Antonio Machado, “Se hace camino al andar”, e movidos pelo senso de participação de nossas leitoras e nossos leitores, que são “companheiros de caminho” ao invés de passivos receptores, nós, da Carta Maior, sabemos da contribuição relevante que a construção de uma imprensa alternativa e de fato plural tem dado para a democracia no Brasil e no conjunto da América Latina. Também agradecemos a nossos colaboradores, que têm dado todo o seu esforço para manter viva a chama de um pensamento crítico e independente em nossa página e outros veículos de comunicação.

Carta Maior está em excelente companhia: Carta Capital triunfou como a melhor revista semanal de informação, com 75,01% dos votos. Veja vem num longinquo segundo lugar, com 18,69%, Época em terceiro, com 3,79% e Isto É em quarto, com 2,51%.

Como melhor blogue jornalístico, venceu outro espaço alternativo: Luis Nassif, com 65,85% dos votos, seguido de longe por Noblat, com 21,07%, Josias de Souza, 8,54%, Alon, com 3,74% e Fernando Rodrigues, com 0,80%.

Em outra demonstração da busca de alternativas, Leitura Dinâmica, com 33,72%, e o Jornal da Band praticamente dividiram o primeiro lugar de melhor telejornal, com 33,72% e 33,21% dos votos, respectivamente. O Jornal da Record veio a seguir com 14,05%. Em quarto ficou o Jornal Nacional, com 10,96%, depois o Jornal da Globo, com 4,08% e a seguir o Jornal das Dez, da Globo News, com 3,98%. O Bom Dia Brasil sequer entrou na seleção.

Na melhor página de notícias, o IG triunfou, deixando bem para trás o Uol, vindo depois o Folha Online, o Terra e a Globo.com. O resultado completo pode ser visto em www.portalimprensa.com.br.

Esta é uma vitória do conjunto da imprensa alternativa, que é preciso difundir. É necessário levar a notícia de que há algo de novo no ar, de saudável, de crítico, de vibrante, com capacidade de expressar o indispensável movimento de democratização do processo de formação e de expressão da opinião pública, em sua variedade, sem o que nunca teremos um Brasil democrático.

Parabéns Carta Capital, parabéns Luis Nassif, parabéns Carta Maior, parabéns a todos nós que estamos juntos nessa luta. A luta é de todos, a vitória também é. E agradecemos, sobretudo, aos nossos “companheiros de caminho”, leitoras e leitores que nos honram com suas solicitações, suas contribuições, suas críticas e sua presença. Continuaremos honrando nosso compromisso com a luta por liberdade e justiça social conjugadas com um desenvolvimento sustentável que potencie e não destrua as qualidades da nossa natureza

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Política de comunicações: balanço provisório de um semestre inusitado

O primeiro semestre de 2007 chega ao fim e, para o bem ou para o mal, o setor de comunicações está vivendo um período de certa forma inusitado. Algo de novo parece estar acontecendo num setor historicamente dominado por uns poucos atores e interesses. 

Sem a pretensão de fazer um balanço amplo e completo, mas apenas de registrar iniciativas/eventos importantes, aqui vão meia dúzia de sinais desse tempo que se espera seja um tempo de mudanças.

1. A mídia e seu papel numa sociedade democrática entraram definitivamente na agenda pública de discussão. Apesar da resistência da grande mídia, desde as eleições de 2006 pipocam por todos os cantos iniciativas neste sentido. A condenação unânime do governo da Venezuela, no caso da não-renovação da concessão da RCTV, contribuiu para "esquentar" o debate. E ele está vivo na internet, nas escolas (de todos os graus), no Congresso, nas igrejas, nos sindicatos, na mídia alternativa etc., etc.

Debater a mídia – como se debate outras instituições de caráter público – é necessário e fundamental.

2. O governo do presidente Lula chamou a si a responsabilidade de incentivar a criação de um sistema público de comunicação. Depois da bem-sucedida iniciativa, liderada pelo Ministério da Cultura, de realizar um Fórum Nacional de TVs Públicas, um novo ministro assumiu a Secretaria de Comunicação Social, vários grupos de trabalho estão funcionando e a Rede Pública de Televisão, priorizada, começa a se concretizar. Espera-se que já em agosto uma Medida Provisória neste sentido será enviada ao Congresso Nacional.

Num país que praticamente só conhece o sistema privado comercial, um sistema público de televisão é mais do que bem vindo. É necessário.

"Não-atores" organizados

3. O Congresso Nacional tem promovido nas suas comissões específicas, tanto da Câmara quanto no Senado, audiências públicas sobre os impasses atuais do setor. Na Câmara, uma subcomissão da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), recriada ao início dessa legislatura, aprovou um novo Ato Normativo que regula a tramitação na Comissão dos processos de concessão e renovação de concessões de radiodifusão. Além disso, a Subcomissão continua trabalhando para apresentar propostas de regulamentação e alteração da legislação do setor.

Esse é um avanço importante, sobretudo se considerarmos que, desde 1988, o Congresso Nacional compartilha com o Executivo o poder de outorga das concessões de radiodifusão e que membros da CCTCI são, direta e/ou indiretamente, vinculados à radiodifusão.

4. Um Encontro Nacional de Comunicação foi realizado em Brasília, como o apoio das Comissões de Direitos Humanos e de CCTCI da Câmara dos Deputados. Com a participação de dezenas de representantes de entidades da sociedade civil, foi aprovada uma carta dirigida ao presidente Lula. O texto pede a convocação de uma Conferência Nacional de Comunicação a ser realizada nos mesmos moldes de outras já convocadas e bem-sucedidas. Vale dizer, uma conferência nacional democrática, plural e participativa, organizada de "baixo para cima" e com poderes deliberativos.

O Encontro mostrou que os "não-atores" estão organizados e tem articulação e força para participar da construção das políticas públicas do setor.

Esforço histórico

5. O debate gerado pela Portaria 264 do Ministério da Justiça em torno da classificação indicativa dos programas de televisão, apesar da instrumentalização da liberdade de imprensa no discurso público dos radiodifusores privados, tem revelado não só os verdadeiros interesses em jogo, mas também qual é a noção de interesse público com a qual esses grupos operam.

Embora pareça ter havido um recuo do governo para atender os interesses dos radiodifusores privados, a questão ainda não está resolvida.

6. Continuam em debate as potencialidades que a transição para o sistema digital de rádio e televisão oferece para a democratização das comunicações e a elaboração de um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa. Parece não estar encerrada a disputa entre aqueles que querem aumentar a pluralidade dos emissores na radiodifusão e os que pretendem perpetuar o poder dos atuais concessionários.

A entrada das empresas de telefonia "no jogo" e os projetos de lei representando os interesses dos diferentes atores que foram apresentados na Câmara dos Deputados são indícios de que "a partida ainda não acabou".

Muito do que só agora aparece é resultado de anos de lutas de pessoas e instituições no sentido de trazer o campo da mídia para o debate público e aumentar a consciência da população em torno da comunicação como direito humano fundamental. Essa é uma tarefa indispensável para o avanço da democracia entre nós.

Será que os primeiros resultados desse esforço histórico estão finalmente começando a aparecer?

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A TV digital e a cópia da programação

Uma decisão importante está para ser tomada pelo governo federal. Ela irá definir se a TV digital brasileira adotará ou não o sistema de restrição anticópia. Parece questão menor, mas não é. Se esse sistema (chamado DRM) for implementado no Brasil, o direito de decidir como usar o sinal da televisão sai da mão do consumidor e passa a ser das emissoras. Em outras palavras, caberá às emissoras decidir se o consumidor tem ou não o direito de gravar os programas que passam na TV. Elimina, na prática, uma liberdade que sempre existiu.

A medida tem um impacto negativo que não pode ser ignorado. O primeiro é econômico. Para incorporar a tecnologia anticópia, os fabricantes dos conversores da TV digital deverão pagar anualmente para usar a tecnologia, que pertence a um consórcio internacional de empresas. Esse valor é repassado para os consumidores ou contribuintes na forma de subsídios fiscais concedidos aos fabricantes.

No entanto, o custo não se reverte em benefício. O consumidor ou contribuinte acaba financiando um sistema que não lhe interessa, que, na verdade, reduz a utilidade da TV digital. Paga para levar menos. Mesmo que os fornecedores do produto se disponham a subsidiar os custos da medida, estão comprando uma liberdade que não foi negociada e que não está à venda.

Isso leva ao segundo impacto, que é jurídico. Nos Estados Unidos, país no qual a TV digital se encontra mais disseminada, a adoção do sistema anticópia foi firmemente repelida, inclusive judicialmente, sob o argumento de inconstitucionalidade.

No Brasil, a inconstitucionalidade é a mesma. A televisão aberta é um serviço que compete à União. A nossa Constituição Federal utiliza as palavras "livre e gratuita" para qualificá-la, concedendo inclusive isenção fiscal quanto ao imposto sobre comunicações. Dessa forma, com a instalação do sistema anticópia, a televisão pode até continuar a ser gratuita, mas deixa de ser "livre".

Além disso, a lei de direitos autorais permite expressamente modalidades de utilização legítima da programação de TV. Com o sistema anticópia, a tecnologia não tem como distinguir a natureza da utilização a ser feita dos programas. Os bons e os maus usos são tratados da mesma forma: são igualmente impedidos.

O terceiro e talvez mais importante impacto é político. Mecanismos de restrição tecnológica, como esse que se propõe adotar para a TV digital no país, são sabidamente ineficazes. O sistema que impede a cópia de DVDs é resultado de um consórcio de empresas que investiu vários anos e vultosos recursos em sua criação. Foi eliminado por um garoto de 16 anos. E a história se repete agora com a nova geração de discos de alta definição (Blu-ray e HD DVD), cuja proteção também já foi quebrada.

Por isso, empresas de todo o mundo estão abandonando a utilização desses mecanismos, por perceberem que se trata de dinheiro jogado fora. Em outras palavras, quem de fato deseja distribuir conteúdo ilegalmente com fins comerciais continua a poder fazê-lo. O consumidor de boa-fé acaba sendo o único afetado.

No Brasil, o serviço de televisão é regido pelo interesse público. Um sistema político que permite a adoção de um sistema sabidamente ineficaz, que implica custos para o consumidor e nenhum benefício a ele é um sistema político defeituoso. Ou, ao menos, está dando importância demasiada a poucos interlocutores.

Em tal situação, caberá ao Poder Judiciário decidir sobre a legalidade da medida em eventuais ações propostas por consumidores e contribuintes.

* RONALDO LEMOS, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em direito pela USP, é professor da Escola de Direito da FGV-RJ, onde é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade. É autor, entre outras obras, de "Direito, Tecnologia e Cultura".

A reforma política e a comunicação no Brasil

Ao falarmos de reforma política – tema que definitivamente entrou na agenda do país quando o Congresso decidiu que ela seria votada em regime de urgência – e comunicação no Brasil, as possibilidades de conexão entre os temas são muitas e dizem respeito a basicamente dois pontos de vista: o dos conteúdos e o das políticas.

Quando o assunto é conteúdo, a relação se dá na abordagem da grande imprensa comercial e conservadora sobre o tema: a ênfase – quando não a redução exclusiva do debate – numa reforma da legislação eleitoral e dos partidos. Não é por acaso que a reforma político-eleitoral que está tramitando no Congresso é limitada ao debate da democracia em sua vertente representativa, deixando de lado questões reivindicadas por organizações da sociedade civil que vem construindo um movimento de discussão sobre a reforma política necessária para o país.

O projeto que estava em votação é restrito ao aspecto político-eleitoral e contempla apenas quatro pontos: fidelidade partidária, lista fechada, financiamento público de campanha e fim das coligações para eleições proporcionais. Com a votação, na semana passada, do item da lista fechada e a rejeição das listas preordenadas, sequer é possível chamar o processo em curso de reforma política (veja a nota pública da Mobilização por uma Reforma Política Ampla, Democrática e Participativa clicando aqui).

No Congresso e na mídia, desde que o tema começou a ser pautado, ficaram de fora a democracia direta e participativa e os debates sobre a democratização das comunicações e a transparência do judiciário.

De alguma forma, podemos concluir que o sistema, minimamente alterado, seguirá servindo aos interesses dos grandes grupos e corporações de comunicação no Brasil. Não é à toa que os meios de comunicação não fazem questão de ampliar o debate e de ouvir as vozes da sociedade civil, que sustentam que esta reforma mínima não nos interessa e é insuficiente. Mais do que a possibilidade de a reforma não dar conta de reivindicações históricas, corre-se o risco de criar ainda mais barreiras para uma real reforma que acabe com o patriarcado, o patrimonialismo, as oligarquias, o nepotismo, o clientelismo, o personalismo e a corrupção em nosso país.

Entendemos que a construção de uma sociedade democrática está inserida em um contexto mais amplo, que diz respeito a mudanças no sistema político, na cultura política e no próprio Estado. Por isso, uma reforma política que amplie a democracia e fortaleça a participação popular em nosso país deve necessariamente abranger a democracia também em suas vertentes participativa e direta, além da democratização das comunicações e a transparência do Judiciário.

Esses quatro eixos somados ao da democracia representativa estão reunidos na plataforma construída por organizações, redes, fóruns e movimentos da sociedade civil reunidos na mobilização por uma reforma política ampla, democrática e participativa.

O quarto eixo da plataforma versa pelo segundo enfoque possível do debate sobre comunicação e reforma: o das políticas. Não há como pensar em democracia hoje no país sem pensar na constituição de um sistema de comunicações, setor hoje completamente desguarnecido de políticas e regulamentação.

É preciso que discutamos um marco institucional para a comunicação, com a realização de uma conferência nacional do setor nos moldes das demais (ampla, democrática e participativa) e a constituição de um sistema público de comunicações para o Brasil com controle social sobre as políticas.

Desde as eleições do ano passado, a população como um todo vem se dando conta da força da mídia e sua influência na agenda política do país. É pena que esta influência se de por meio de uma ofensiva impiedosa em relação a alguns avanços e lutas históricas dos movimentos sociais, como a classificação indicativa, por exemplo. Isso sem falar nas capas de revista contra as cotas raciais, nas matérias nas televisões contra as comunidades quilombolas, nas reportagens criminalizando as rádios comunitárias, entre outras violações que assistimos, lemos e ouvimos cotidianamente.

Reforçando a sensação causada por este processo que vem desde as eleições, o debate sobre a constituição de uma TV Pública para o Brasil colocou na agenda pública as políticas de comunicação e também suscitou uma série de manifestações. Outro tema que deveria ocupar os noticiários em breve é o das concessões. Este ano, serão renovadas diversas outorgas de televisões e seria o momento de a população saber que elas são concessões públicas, passíveis de não renovação, o que provavelmente não vai acontecer, por falta de regras.

É neste ponto que os debates sobre política e conteúdo de comunicação se cruzam: as vozes que lutam pela implementação de políticas para o setor, pela democratização da comunicação, para que regulem a concessão e uso dos meios no Brasil, para que haja controle público dos meios, são excluídas do debate público quando não dispõem de espaço para expor seus pontos de vista no ambiente tendencioso realizado pela mídia, que deixa de cumprir seu papel de zelar pelo interesse público e de promover o debate plural.

A reforma política se configura em uma oportunidade de mostrarmos que uma real reforma do sistema não poderia ser feita sem a democratização dos meios de comunicação, pois não existe sociedade democrática sem uma comunicação igualmente democrática. Carecendo de um debate sobre o sistema de comunicações, qualquer reforma será insuficiente.

*José Antônio Moroni é filósofo, membro do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), diretor da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e secretário nacional do FNPP.
* Michelle Prazeres é jornalista, mestre em comunicação e semiótica, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, editora do Observatório do Direito à Comunicação e integrante do Fórum Nacional de Participação Popular – FNPP.

 

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