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Mudança no fuso horário: o retrato de um poder sem limites

Até mesmo aqueles que conhecem a história da radiodifusão privada e sabem que na sua regulação – apesar de ser um serviço público concedido pelo Estado – sempre tem prevalecido o interesse dos radiodifusores, não deixaram de se surpreender.

O Congresso Nacional aprovou, na noite da sexta feira (11/4), projeto de lei que reduz de quatro para três os fusos horários no país e altera os efeitos da portaria da Classificação Indicativa no Acre e demais estados do Norte.

Como no Brasil os grandes grupos de comunicações são multimídia, isto é, abarcam empresas de radiodifusão (rádio e televisão), jornais e revistas, o lobby do setor se torna aqui mais robusto do que em outros países. E a cada nova vitória, naturalmente, esse lobby aumenta seu cacife para fazer pressão tanto junto ao Executivo quanto ao Legislativo.

Um pouco de história

O exemplo mais conhecido do poder dos radiodifusores talvez seja a derrubada, pelo Congresso Nacional, de todos os 52 vetos que o então presidente João Goulart impôs ao projeto de lei que viria a se transformar no CBT – Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/1962). A ampla articulação de empresários de radiodifusão e parlamentares que permitiu tamanha façanha foi liderada pelo então diretor-geral dos Diários e Emissoras Associados, João Calmon (já falecido), e dela resultou a criação da Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, da qual ele se tornou o primeiro presidente.

Decorridos mais de 45 anos, o CBT (excluída a regulação da Lei Geral de Telecomunicações – Lei 9.472/1997) continua sendo a norma básica que rege a radiodifusão no Brasil e alguns dos seus vetos derrubados e omissões tornam a radiodifusão brasileira singular em todo o mundo: a duração das concessões de 15 anos para emissoras de TV e 10 anos para emissoras de rádio; a renovação automática das concessões e a ausência de qualquer norma que proíba a propriedade cruzada dos meios de comunicação.

Desde a promulgação do CBT em 1962, no entanto, são inúmeras as ocasiões em que o poder dos radiodifusores prevaleceu.

Na Constituinte de 1987-88, por exemplo, a "bancada da comunicação" conseguiu incluir normas que diferenciam a radiodifusão de outras concessões de serviço público: as concessões e suas renovações têm que ser aprovadas pelo Congresso Nacional, onde os grupos de mídia têm expressiva representação; o cancelamento das concessões só pode ser feito por decisão judicial e a não-renovação exige votação nominal de, no mínimo, dois quintos dos deputados e senadores. O Conselho de Comunicação Social, que deveria ser um órgão regulador, tendo como referência a Comissão Federal de Comunicações americana (FCC), se transformou num mero auxiliar do Congresso Nacional que, aliás, há quase dois anos sequer se reúne.

Por outro lado, nunca lograram ser regulamentados – e, portanto, não são cumpridos – os dispositivos da Constituição de 1988 que rezam não poder os meios de comunicação, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio; e que determinam a regionalização da produção cultural, artística e jornalística, a promoção da produção independente e a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal.

A lista das "vitórias" dos radiodifusores é longa. Lembro outras: a implantação das TVs pagas via satélite (DTH) e MMDS antes da existência de qualquer regulação; a norma restritiva e excludente das rádios comunitárias (Lei 9.612/1998); a interrupção do processo de transformação da Ancine em Ancinav; a escolha do padrão japonês para a TV digital que frustrou o potencial de democratização das concessões; na Lei 11.652/2008, que criou a Empresa Brasileira de Comunicação, o veto do presidente da República ao artigo que obrigava as emissoras de TV comerciais a entregar à TV pública os sinais de jogos de seleções nacionais contratados com exclusividade e não transmitidos em seus canais; e as recentes modificações do relator no substitutivo do PL 29/2007 em tramitação na Câmara dos Deputados, em relação às cotas de programação do conteúdo nacional na TV paga.

É ainda o interesse dos radiodifusores que tem impedido a materialização de um projeto de Lei Geral da Comunicação Eletrônica de Massa para regular o setor de forma integrada e coerente, contemplando a revolução digital e a conseqüente convergência tecnológica entre telecomunicações, comunicação de massa e informática.

A mudança nos fusos horários

Não creio, todavia, que o poder dos radiodifusores jamais tenha se manifestado de forma mais contundente e acintosa do que na recente aprovação do projeto do senador Tião Viana (PT-AC), apenas quatro dias após a entrada em vigor da Portaria 1.220/07 determinando que as emissoras de TV adaptem suas transmissões aos diferentes fusos horários do país em função da Classificação Indicativa. Note-se que, por pressão dos radiodifusores, houve cinco adiamentos da data para a entrada em vigor da portaria no período de 9 meses.

Quando se convenceram que não seria mais possível alterar a própria portaria, os radiodifusores passaram a trabalhar pela aprovação do projeto que muda os fusos horários.

O projeto de lei, apresentado em 2006, foi aprovado no Senado no início de 2007 e encaminhado à Câmara dos Deputados. Durante a tramitação na Câmara houve forte pressão da Abert, expressa pela deputada Rebecca Garcia (PP-AM), vinculada à TV Rio Negro Ltda. (afiliada da Rede Bandeirantes), que defendia a existência de um único fuso horário em todo o país. Foi da deputada Elcione Barbalho (PMDB-PA) – esposa do deputado Jader Barbalho (PMDB-PA), ambos vinculados à Rede Brasil Amazônia de Televisão Ltda. (RBA, afiliada da Rede Bandeirantes) – a alteração determinando que o estado do Pará tenha somente um fuso horário (hoje tem dois). Com essa modificação o projeto voltou para o Senado, onde foi novamente aprovado.

A jornalista Laura Mattos, em matéria publicada na Folha de S.Paulo ("Lobby das TVs está por trás da mudança", 15/4) relata que "o lobby [das emissoras de TV] era tão claro que, na segunda passada [7/4], quando a obrigatoriedade de respeito aos fusos entrou em vigor, a Record, questionada pela Folha sobre quais alterações faria, disse aguardar `a tramitação do projeto de lei que iguala o fuso horário do Acre ao do Amazonas´".

Vale ainda registrar que um dos argumentos que têm sido usado pelos defensores da mudança do fuso horário no Congresso – e, de forma velada, pelos próprios radiodifusores – é que a Portaria 1.220/07 impediria a população do Norte de assistir ao vivo os jogos de futebol realizados no Sul do país. Obviamente esse argumento é falso porque a classificação indicativa do futebol é livre e não impede, portanto, sua transmissão ao vivo.

Interesse privado vs. interesse público

O projeto de lei que altera os fusos horários ainda terá que ser sancionado pelo presidente da República, o que o líder do governo no Senado garante acontecerá nos próximos dias.

Será que o interesse dos radiodifusores privados sempre coincide com o interesse público e, portanto, não há qualquer problema que prevaleça?

Será que é assim mesmo que funciona nas democracias: os grupos que reúnem mais força política devem sempre decidir o rumo das políticas públicas?

Ou será que a anedota "no Brasil, a televisão não é uma concessão do Estado, o Estado que é uma concessão da televisão" tem um fundo de verdade?

Ou será que o interesse público, mais uma vez, deixará de ser atendido para que prevaleçam os interesses privados dos radiodifusores, concessionários do serviço público de rádio e televisão?

A Lei Rouanet e o negócio da cultura

O debate sobre a extinção da Lei Rouanet tem mobilizado setores importantes da sociedade brasileira. Parte da classe artística, secretários de governo e jornalistas têm assumido o ponto de vista "reformar, sim, acabar, nunca!".

De fato, a Lei Rouanet tem se mostrado uma força miraculosa em seus 17 anos de vida. Basta dizer que mudou a paisagem da avenida Paulista, em São Paulo, ao fazer surgir uma dezena de centros culturais. Curiosamente, instituições com nomes de bancos, que elogiam o espírito abnegado da instituição financeira. Seu nascimento está ligado à caneta do presidente Collor de Mello, em 1991. Tinha, então, um nobre objetivo pré-iluminista: incentivar o mecenato. Só que a aristocracia do passado contratava diversão com recursos do próprio bolso. Já a Lei Rouanet está mais afinada com a cartilha liberal-conservadora de sua época: "O Estado deve intervir o mínimo, a sociedade deve se autogerir, mas, para isso, é preciso uma ajudazinha".

Todo o poder miraculoso da lei tem a ver com seu mecanismo simples: ela autoriza que empresas direcionem valores que seriam pagos como impostos para a produção cultural.

A idéia parece boa, mas contém um movimento nefasto: verbas públicas passam a ser regidas pela vontade privada das corporações, aquelas com lucro suficiente para se valer da renúncia fiscal e investir na área.

Assim, os diretores de marketing dos conglomerados adquirem mais poder de interferir na paisagem cultural do que o próprio ministro da Cultura. E exercem tal poder segundo os critérios do marketing empresarial. O estímulo aos agentes privados resulta em privatismo.

Diante da grandeza do fundo social mobilizado desde 1991 (da ordem de R$ 1 bilhão só no ano de 2007), é possível compreender a gritaria das últimas semanas. Por trás da defesa da Lei Rouanet, há maciços interesses. Não só os das instituições patrocinadoras, que aprenderam a produzir seus eventos culturais, mas os da arte de índole comercial (feita para o agrado fácil), que ganha duas vezes -na produção e na circulação-, na medida em que os ingressos seguem caríssimos.

Os maiores lucros, contudo, ficam com os intermediários. De um lado, as empresas de comunicação, cujos anúncios pagos constituem gigantesca fonte de renda, em média 30% dos orçamentos. De outro, a casta dos "captadores de recursos", gente que embolsou de 10% a 20% do bilhão do ano passado apenas por ter acesso ao cafezinho das diretorias de empresas.

Como não há julgamento da relevância cultural na atribuição dos certificados que habilitam o patrocínio, a lei miraculosa abriu as portas dos nossos teatros às megaproduções internacionais, que ganham mais aqui do que em seus países de origem.

O caso do Cirque du Soleil, com seus R$ 9 milhões de dinheiro público e ingressos a R$ 200, está longe de ser exceção. Ao contrário, é a norma de um sistema em que o Estado se exime de julgar a qualidade em nome do ideal liberal de tratar os agentes desiguais como iguais e "conter o aparelhamento político da cultura".

O pressuposto filosófico do debate foi revelado pelo secretário da Cultura de São Paulo, João Sayad: "Antigamente, numa era religiosa, o natural era a coisa criada por Deus. Hoje, o natural é o que dá lucro".

Ao defender o subsídio contra o mercado excludente, assume a impotência do Estado e endossa a idéia de naturalidade (portanto, imutabilidade) do império do capital sobre qualquer coisa que já se chamou "vida".  Uma reforma da Lei Rouanet incapaz de impedir o controle privado de recursos públicos não faz sentido.

O Estado pode estimular a generosidade humanista dos empresários com renúncia fiscal, mas não pode deixar de regular a distribuição do fundo social com regras claras de concorrência pública. Não parece óbvio? Então, por que não enfrentar o debate sobre valores culturais?

Por que contribuir para a universalização da lógica mercantil? O "aparelhamento político da cultura" pode ser questionado em público. O desejo unilateral de um gerente de marketing, não.

Num passado recente, o governo Lula sacrificou seus membros para não enfrentar a tropa de elite da mídia eletrônica. Estava em questão a exigência de "contrapartida social" no patrocínio das estatais.

Sua disposição conciliatória pode, de novo, impedir uma transformação maior, rumo a uma cultura livre, pensada como direito de todos. Mas qualquer mudança exige, no mínimo, considerar a hipótese de que a realidade e o mercado não são uma coisa só.

* Sérgio de Carvalho é diretor da Companhia do Latão e professor de dramaturgia da USP.
** Marco Antonio Rodrigues é diretor e um dos fundadores do Folias, companhia teatral.

Poder da mídia e contrapoder cidadão

É conhecido o argumento de Ignácio Ramonet sobre a mídia nas sociedades contemporâneas (ver, neste Observatório, "O quinto poder"). Segundo ele os atuais grupos de mídia possuem duas características: primeiro, "encarregam-se de tudo o que envolve texto, imagem e som e o divulgam por meio dos canais mais variados (jornais, rádios, televisões abertas, a cabo ou por satélite, internet e por todo tipo de rede digital)." Segundo, "são mundiais, planetários e globais – e não apenas nacionais e locais." Isto faz com esses "grupos (deixem) de ter como objetivo cívico o de ser um `quarto poder´, assim como (deixem) de denunciar os abusos contra os direitos ou corrigir as disfunções da democracia (…)."

A lembrança de Ramonet vem a propósito de fatos recentes, tanto no Brasil como na América Latina, que revelam, ainda mais uma vez, o enorme poder dos grupos de mídia, sobretudo na construção da agenda pública e na conseqüente definição dos temas de interesse e debate por parte da maioria da população.

CPI do Detran-RS

Um desses fatos é o impressionante desinteresse da grande mídia pelos trabalhos da CPI do Detran que se desenvolvem na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em torno do desvio de cerca de 45 milhões de reais de dinheiro público. Resultado de uma investigação da Polícia Federal que começa com contratos do Detran-RS com uma fundação – a Fatec – ligada à Universidade Federal de Santa Maria, as investigações apontam para o envolvimento de partidos políticos através da formação de um caixa 2 destinado a financiar campanhas eleitorais.

Os fatos investigados no Rio Grande do Sul não deveriam merecer a mesma atenção dedicada pela grande mídia, por exemplo, aos graves problemas envolvendo a Universidade de Brasília e a fundação Finatec ou a outras investigações de financiamento ilegal de campanhas eleitorais por partidos políticos?

Governo Kirchner vs. Clarín

Fora do Brasil, chama a atenção a recorrência de problemas entre governos democraticamente eleitos e os principais grupos privados de mídia na América Latina.

Discutir com isenção, por exemplo, o que ocorre na Venezuela, na Bolívia e no Equador tornou-se praticamente impossível tendo em vista a permanente cobertura "adversária" que vem sendo feita pela grande mídia aos seus presidentes.

Ganha nova dimensão, agora, um antigo "mal-estar" entre o governo da presidente Cristina Kirchner e os principais grupos privados de mídia da Argentina, sobretudo, o Grupo Clarín.

O Grupo Clarín, como se sabe, é associado a multinacionais como Goldman Sachs, Buena Vista-Disney e Telefônica; controla o jornal – Clarín – mais vendido, as emissoras de rádio de maior audiência em Buenos Aires, uma das principais redes de TV aberta, canais a cabo, sites de internet, produtoras de cinema e TV e operadoras de telefonia celular, entre outros negócios (ver neste OI "Grupo Clarín: O dono da boca").

O enfretamento recrudesceu com a intenção declarada pelo governo argentino de criar, em parceria com a Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires, um "Observatorio dos Medios" que teria por objetivo promover "a liberdade de que todas as vozes, plurais e democráticas, possam ter acesso aos meios de comunicação". Para o governo argentino, a cobertura que a mídia argentina faz é "discriminatória" e não oferece uma "visão imparcial da realidade".

Inclusão digital

Ao lado da confirmação do poder de agenda dos grandes grupos de mídia, aqui e alhures, continuam surgindo também informações sobre o acelerado avanço da inclusão digital entre nós.

Foi publicado no Diário Oficial da União (7/4/2008) o decreto nº 6424, assinado pelo presidente da República no dia 4 de abril. Esse decreto determina que as operadoras de telefonia fixa criem as condições técnicas (vale dizer, instalem os backhaul) para que a banda larga alcance todos os municípios brasileiros.

Junto à publicação do decreto o governo anunciou também (em 8/4) um acordo com as teles que prevê a instalação de conexão de banda larga – sem custos para os governos (federal, estaduais e municipais) – em cada uma das 56 mil escolas públicas urbanas até o vencimento dos atuais contratos de concessão, em 2025. Todas as escolas públicas deverão ter a banda larga instalada e funcionando até 2010.

Apesar das críticas de que, na forma como ficou, o decreto favorece as teles e sufoca os provedores regionais e comunitários, e de que o acordo para instalação da banda larga nas escolas esconde a entrega da exploração privada do acesso à internet às teles, ele é, mesmo assim, um avanço no sentido da inclusão digital.

Esperança

Ao observador de mídia resta apostar que a universalização da inclusão digital possa um dia permitir que o espaço virtual da internet se constitua no espaço público democrático onde o debate plural e diverso da maioria dos cidadãos possa acontecer. É exatamente isso o que a grande mídia privada não tem conseguido oferecer, não só do Brasil, mas também em outras sociedades democráticas.

Renúncia fiscal: por que insistir em um modelo insustentável?

A cultura e as artes movimentam parte cada vez mais significativa da economia planetária. As indústrias criativas não param de crescer para alimentar a demanda, que parece inesgotável, por estética, símbolos, lazer e entretenimento. Porém, os recursos gerados por este vasto mercado de consumo não suprem a diversidade e complexidade cultural, tornando necessárias outras três fontes de financiamento, distintas e complementares. São elas:

– o Estado, que tem a responsabilidade de fomentar a criação artística e intelectual, e a distribuição de conhecimento, bases do progresso humano

– o investimento social privado, evolução histórica do mecenato, meio pelo qual cidadãos e instituições privadas se tornam agentes do desenvolvimento da sociedade

– o patrocínio empresarial, estratégia de construção de marcas e de relacionamento com seus públicos de interesse, feita por associação com ações de interesse público.

No Brasil, o sistema de apoio à cultura e às artes baseado em dedução fiscal emaranhou estas fontes, subvertendo suas lógicas, inibindo seus fluxos, retardando suas expansões e, de quebra, confundindo a opinião pública.

Em março, mais uma vez, diferentes setores do teatro foram até Brasília para demonstrar sua insatisfação com o funcionamento das leis de incentivo à cultura. Mais uma vez a questão central, propositadamente, passou ao largo dos holofotes: o modelo de financiamento público por dedução fiscal é insustentável econômica e socialmente.

Vamos imaginar que os médicos também reivindiquem lugar à mesa para investir um naco do imposto na saúde pública, a seu critério; os educadores, para manter abertas escolas públicas; as empresas de transporte, para criar estradas exclusivas; e -por que não? -, cada cidadão, para reter outro tanto do imposto para montar o próprio esquema de segurança? Quem sabe, até fazer justiça com as próprias mãos.

Antes que a mesa estivesse cheia, não haveria mais imposto a recolher. Por conseqüência, poderíamos suprimir o Estado e dispensar os governos.

Tomar posse de recursos públicos sem contrapartida e destiná-los por critérios individuais e privados é um ato anti-republicano. Desinformados e iludidos pela justa perspectiva de injetar recursos no seu campo de atividade, artistas lutam para propagar o câncer do incentivo fiscal, em vez de exigir políticas e fundos de financiamento direto do Estado, regidos por critérios técnicos e públicos.

Esse modelo do incentivo fiscal, único no mundo, foi criado pela Lei Sarney, em 1986 – substituída depois pela Lei Rouanet por Collor, em 1991-, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e Estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS. As leis de incentivo mobilizarão, neste ano, cerca de R$ 1 bilhão. Recursos públicos que financiam somente a parcela da produção cultural que desperta o interesse das empresas.

A dedução fiscal gera produção cultural porque distribui dinheiro, mas não é lógica nem justa. É uma forma prática de obter recursos sem enfrentar disputas no orçamento. Nada tem a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. Empresas promovem ações sociais, ambientais, culturais, esportivas, de entretenimento e comportamento por serem uma estratégia eficaz, saudável e rentável de valorizar marcas e fortalecer relacionamentos. Por isso, em todo mundo, investem os próprios recursos de marketing e comunicação.

No Brasil, a Lei do Audiovisual permite dedução integral no imposto a pagar e, ainda, o abatimento como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. O resultado é um ganho real de mais de 130% ao ‘investidor’, sem risco. Em vez de exigirem a correção das evidentes distorções do incentivo fiscal aos filmes, agentes culturais passam a reivindicar equiparação de benefícios. A Lei do Audiovisual contaminou outras leis de incentivo fiscal, a começar pela Lei Rouanet, que, desde 1997, permite 100% de dedução.

Importante saber: em outros países, incentivo fiscal é somente lançar as contribuições à cultura como despesa na declaração de renda. Ou seja, é poder doar dinheiro do próprio bolso sem ter de pagar imposto por isso.

É certo que o Estado brasileiro consome 50% do PIB, e pouco do que devolve tem valor reconhecido pela sociedade; é compreensível que os brasileiros desconfiem que os nossos governos sejam regidos pela corrupção. Mas, atenção, não corrigiremos mazelas históricas subtraindo recursos e responsabilidade públicas para distribuí-las a interesses privados.

Melhor seria lutar para reduzir a carga tributária, para benefício da sociedade civil, e ajudar a construir um Estado mais eficaz, com capacidade de formular e implementar políticas públicas, financiando diretamente as ações por princípios republicanos.

* Yacoff Sarkovas, especialista em atitudes de marca, é diretor-geral da Significa e da Articultura

Política educacional: esquizofrenias entre debate público e debate midiático

Quando os gestores públicos se retiram do debate frente a frente com a sociedade, a relação entre Estado e organizações, movimentos, universidades e sindicatos – no limite – passa a ser mediada pela mídia, que, por sua vez, não dá voz a estes últimos. O diálogo vira uma guerra de monólogos.

A história é simples, mas o debate é complexo e tem uma série de implicações. Na última semana, nos dias 10 e 11 de abril, a Ação Educativa realizou um seminário para discutir as recentes mudanças na educação paulista, anunciadas pela Secretaria Estadual de Educação no âmbito da gestão, do currículo e da profissão docente e contidas no documento chamado “Uma nova agenda para a educação pública”. O documento afirma que os últimos censos escolares e avaliações de aprendizagem apontam que “o desempenho insuficiente do sistema” é o principal problema da educação pública de São Paulo.

A intenção do encontro era reunir gestores públicos da SEE, pesquisadores, profissionais da educação, jornalistas que cobrem o campo da educação e dos direitos humanos em jornais paulistas e representantes de ONGs, movimentos e sindicatos para possibilitar que a Secretaria apresentasse o Plano, expondo objetivos, princípios e ações, para que se pudesse entender a reforma no seu conjunto; e provocar o debate sobre as reformas, envolvendo atores estratégicos na formulação, implantação e controle das políticas educacionais, como a universidade, profissionais da educação, organizações da sociedade civil e trabalhadores da imprensa.

Contatada com um mês de antecedência e tendo confirmado presença no seminário, a SEE já havia informado que a secretária Maria Helena Guimarães de Castro não poderia estar no evento, mas enviaria uma representante para a abertura e representantes para as demais mesas de debate, o que seria fundamental para a informação dos participantes do encontro, que desejavam, entre outras coisas, conhecer as propostas da secretaria e como seria sua implementação na prática.

Tal foi a surpresa dos cerca de 100 participantes do evento na manhã de abertura na última quinta, a secretaria não apareceu por meio de nenhum dos seus representantes. Alguns integrantes da mesa de abertura questionaram a ausência do órgão e lamentaram a perda da visão da SEE no debate, que prosseguiu a despeito da sua ausência e num grau elevado de qualidade e pertinência.

É, no mínimo, de se entranhar. Por um lado, a SEE teve, recentemente, destaque em veículos de grande circulação nacional depois da entrevista da secretária Maria Helena às páginas amarelas da Veja e tem, cotidianamente, espaços fixos como fonte da grande mídia. Por outro, abriu mão do debate corpo a corpo com uma pluralidade de acadêmicos, pesquisadores e trabalhadores da educação. Por quê? No limite, atribuiu à mídia (a grande mídia, privada) o papel de mediar a relação do Estado com a sociedade.

Ora, sabemos que este tem sido, cada vez mais, o papel da comunicação (legitimado, geralmente, pelos governos, que sabem que a grande mídia tem e defende, no limite, os seus interesses). Neste caso, ficou clara a retirada da secretaria do debate público e o deslocamento para o debate midiático, que é “terreno seguro”.

Mas quando o debate público se recente da presença dos gestores e o debate midiático se recente da presença da sociedade civil e dos movimentos, como fica o diálogo? Que mídia é esta que promove a mediação, já que não estamos falando de veículos alternativos e comunitários? Como se dá esta mediação? De fato, em defesa do interesse público? Promovendo o debate? Por que sem pluralidade de vozes, sabemos que este debate é, na verdade, um monólogo. Monólogo que as organizações e movimentos tentam combater com seus veículos próprios e estratégias de ocupação do espaço midiático que, sabemos, são bem menos eficientes que as ações do poder público em relação à mídia.

* Michelle Prazeres é jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica e integra a coordenação do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.