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Mídia, preconceito e o escândalo de Ronaldo

Lendo artigos sobre o caso Andréia Albertine e Ronaldo, uma coisa nos chamou a atenção: a grande maioria dos textos tratava Andréia de o travesti, ao invés de a travesti. Afinal de contas, ela utiliza um nome feminino.

Esse detalhe nos motivou a ler vários jornais e sites sobre o caso. Em uma pesquisa mais detalhada na Folha Online e no Estadão, de uns 20 artigos, somente um, no Estadão online, tratava Andréia por ela.

Começamos a prestar atenção nos detalhes das matérias, especificamente na linguagem e no conteúdo.

Como Ronaldo é a estrela, seu nome sempre aparece primeiro: o escândalo de Ronaldo com travestis. Andréia sempre é coadjuvante, sempre ocupa o segundo lugar. Quando ele é apresentado, pois dispensa apresentações, é o atacante do Milan, tem uma profissão de prestígio. Andréia sempre é apresentada e classificada: ela é um travesti (sic) e prostituta, ambos socialmente estigmatizados, inclusive tratados como sinônimos.

Desrespeito e desqualificação

O nome social Ronaldo fala por si só. É Ronaldo e ponto. Nenhum artigo menciona seu nome completo. Andréia quase nunca é citada como Andréia: primeiramente, é apresentada equivocadamente como o travesti, depois os artigos se referem ao nome (masculino) de registro, para depois dizer que "ele é conhecido por" (sic) Andréia Albertine.

Ao invés de utilizarem o nome pelo qual Andréia se apresenta em seu convívio social, as matérias utilizam o seu nome de registro. Além disso, seu nome quase sempre vem precedido do artigo o travesti, dobradinha que é reforçada ao longo das notícias.

Muitos artigos têm tratado dos problemas que Ronaldo pode ter por conta do escândalo, mas até agora não vi nenhum falando sobre as escandalosas mazelas que afetam Andréia Albertine:

– A exposição pessoal de Andréia, por meio da exploração de seu nome de registro completo;

– O desrespeito à identidade de Andréia por utilizar o seu nome de nascimento ou constantemente referir-se a ela pelos pronomes ou artigos masculinos; e

– A agressão da mídia que repetitivamente utiliza o travesti junto ao seu nome de registro, categorizando Andréia, tentando desqualificá-la e ao seu discurso por ser travesti.

Identidade de gênero distinta

O termo travesti é carregado de conotações sociais negativas e a mídia, ao utilizar a expressão de modo preconceituoso e ao estereotipar Andréia Albertine, limita-se a reproduzir estigmas e preconceitos.

Além de todo o oba-oba, não vimos sequer um artigo esclarecendo o que é ser travesti, explicando a necessidade da utilização do artigo feminino por se tratar de uma questão de respeito a uma identidade, e ainda pior: não se questionam os preconceitos, discriminações, violências que as travestis passam ao longo de suas vidas, que muitas vezes são fatores que determinam a prostituição como principal saída.

A prostituição é uma profissão e as prostitutas são pessoas dignas. O que questionamos aqui é que cidadania temos quando a principal possibilidade de sobrevivência de uma pessoa se restringe sobretudo a uma única profissão. A nossa sociedade fecha as portas e oportunidades para as travestis, simplesmente por viverem uma identidade de gênero distinta do que é considerado "socialmente correto".

Estigmas sociais

Neste ano comemoramos 20 anos da Constituição Federal de 1988 e 60 anos da Declaração dos Direitos Universal dos Direitos Humanos. Estamos passando por um processo democrático de conferências GLBTT nos âmbitos municipal, estadual e federal, com o tema: o caminho para garantir a cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

Acreditamos que neste momento de discussão sobre cidadania, esse tipo de exposição pessoal e desqualificação social a que Andréia está sendo submetida não pode passar batido, pois além de afetar diretamente esta pessoa, demonstra o quanto a sociedade está despreparada para lidar com as questões e reivindicações GLBTT.

Andréia Albertine é uma pessoa, um ser humano que tem uma história e, como todas as travestis, sofre com estigmas sociais e tem sua cidadania desrespeitada. Isso, sim, deveria ser notícia. 

Fusão Oi/BrT, um silêncio ensurdecedor

Depois de quase quatro meses de reportagens em off, balões de ensaio plantados até em colunas sociais e uma desenfreada especulação na bolsa de valores foi finalmente revelada a engenharia necessária para a criação da megatele nacional – a chamada BrOi, resultado da reestruturação societária da Oi, seguida da compra do controle da Brasil Telecom.

Atendidos os interesses dos acionistas que querem sair do negócio e dos outros que pretendem ampliar sua participação no controle, passa-se agora a discutir as mudanças no Plano Geral de Outorgas (PGO) e as novas políticas públicas de telecomunicações necessárias para a viabilização do acordo que, pelas regras vigentes, é irregular. Ou seja, só agora vai se definir qual é o interesse público a ser atendido. É uma inversão completa de procedimentos. Mas governo, órgãos reguladores, partidos políticos, grande imprensa, os supostos concorrentes da BrOi e até os sindicatos das categorias sujeitas aos inevitáveis cortes de empregos decorrentes da incorporação acham tudo normal, salvo uma tímida iniciativa do DEM junto ao TCU.

E no meio desse megaprojeto, para o qual serão alocados recursos superiores a R$ 12 bilhões sem que se conheça ainda o plano de negócios, emerge uma informação que não provoca nenhum impacto entre os denominados formadores de opinião de nosso curioso País: o Opportunity, de Daniel Dantas, receberá um total de US$ 1,1 bilhão. É isso mesmo. Serão cerca de US$ 900 milhões pelas participações na Oi e BrT e outros US$ 200 milhões pela parte na Telemig Celular, recentemente vendida para a Vivo.

As acusações que pesaram contra o Opportunity (na Justiça do Brasil e de outros países) por fraude, desvio de recursos, enriquecimento ilícito, espionagem, corrupção serão esquecidas em troca de um acordo que viabilize uma grande empresa nacional. Os prejuízos totais, ao longo dos sete anos de administração "opportunista" só na BrT eram estimados pelos fundos de pensão e pelo Citi, que defenestraram Dantas em 2005, em valores acima de US$ 1 bilhão, podendo chegar a até US$ 2 bilhões. É incrível. O Opportunity entrou no processo de privatizações como administrador de recursos de terceiros. Investiu nada ou quase nada de dinheiro próprio e amealhou em dez anos só nas telecomunicações (sem falar de outros negócios como Metrô do Rio, Santos Brasil e Sanepar) uma fortuna que se estima entre US$ 2 bilhões e US$ 3 bilhões.

De onde sairão os recursos para premiar Daniel Dantas e apagar todo um período da História do Brasil? Pelo que foi explicado, quem bancará esse supernegócio serão o BNDES, os fundos de pensão e os minoritários da Oi. A explicação de dois presidentes de fundos de pensão a TELETIME News é estarrecedora. "Nós não somos a Justiça nem a Polícia. O que podíamos levar às autoridades nós levamos e até hoje não existe uma decisão judicial que nos respalde", disse um deles. Outro chegou a comparar a situação à do instalador de torre para telefonia móvel que se vê obrigado a fazer acordo com o traficante para subir o morro e fazer seu serviço. E é muito provável que esses gestores se sintam desamparados e inseguros, na pessoa física, temendo eventuais processos milionários promovidos pelo batalhão de advogados dos principais escritórios de advocacia do País contratados pelo Opportunity.

A explicação do BNDES, que como instituição de fomento do governo para o desenvolvimento de projetos nacionais está bancando um arranjo societário privado na Oi para a compra de outra empresa (a BrT), chega a ser bisonha. "O apoio à reestruturação societária da Oi/Telemar utilizará recursos provenientes do giro da carteira de ações da BNDESPar, o que não envolve recursos do Tesouro ou do Fat", afirmou a assessoria de imprensa do banco em resposta a artigo do jornalista Elio Gaspari, na Folha. Como se carteira de ações da BNDESPar resultasse de um processo de geração espontânea sem ser patrimônio público.

O Citi, por sua vez, não explica nada. Fez acordo com Dantas no processo que corria na Justiça de Nova York depois dos advogados do Opportunity recorrerem à documentação obtida pela bisbilhotice da Kroll, a e-mails internos do Citi e acusou o banco e os fundos por conspiração política, corrupção, alianças com a Andrade Gutierrez (que dividirá com a La Fonte o controle da BrOi), envolvendo até o nome do presidente Lula.

Mas nessa história toda o que mais surpreende é praticamente uma unanimidade nacional: a grande imprensa e todos os partidos atuantes no Congresso ignoram o capítulo Opportunity quando informam ou comentam a BrOi. Suspeitam, se tanto, da lisura do negócio por conta da Gamecorp, empresa que tem o filho do presidente Lula como sócio na qual a Oi investiu R$ 10 milhões. Ou da contribuição declarada de R$ 4,6 milhões da Andrade Gutierrez à campanha presidencial de Lula em 2006. O valor envolvido no caso Daniel Dantas é 700 a mil vezes maior do que o dinheiro injetado na Gamecorp. Isso, porém, não é considerado escândalo.

Liberdade de imprensa ou direito à comunicação

Um observador internacional que, desconhecendo a nossa realidade, assistisse à III Conferência Legislativa Sobre a Liberdade de Imprensa, não só acreditaria que a grande mídia tem sido obrigada a pagar descabidas indenizações milionárias, como também está submetida à censura prévia e a restrições da "liberdade de expressão comercial" (leia-se publicidade).

Esta é a posição dos principais palestrantes da conferência, promovida pela Associação Nacional de Jornais e pela Unesco, realizada na Câmara dos Deputados, no último dia 29 de abril: os empresários dos maiores grupos de mídia em operação no país – Globo, Estado de S.Paulo, Folha e Abril. Essa é também a percepção da OAB, da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e de alguns parlamentares. Predominou a opinião de que a imprensa não deve estar submetida a qualquer tipo de legislação e que a auto-regulação e a livre concorrência no mercado constituem a única forma de se evitar as distorções e os abusos.

O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), todavia, foi além. Ele propôs que agentes públicos – no exercício de mandatos eletivos, concursados e também líderes religiosos e classistas – sejam proibidos de iniciar procedimentos judiciais contra jornalistas, inclusive em casos de calúnia, injúria e difamação. Ele defendeu que aqueles que exercem a profissão de jornalista se tornem legalmente inimputáveis. Vista de outro ângulo, a proposta do nobre deputado – inédita em todo o planeta – significa que os agentes públicos passariam a gozar de uma cidadania-parcial, de vez que impedidos de exercer o direito fundamental de defesa nos crimes contra a honra.

Disputa pelo poder político

E mais: para o deputado, quem se julgar ofendido pela cobertura jornalística não deve ter o direito de resposta. Ao contrário, deveria convocar uma entrevista coletiva e disputar espaço no noticiário da grande mídia para se defender (parece uma brincadeira, mas não é).

O nosso observador internacional haveria de notar também a ausência de jornalistas, observadores da mídia, pesquisadores e representantes diretos da sociedade civil organizada na conferência. Para a ANJ e para a Unesco, subentende-se, a participação deles não é relevante. Eles não foram convidados a expressar sua posição sobre a liberdade de imprensa.

Na verdade, a III Conferência Legislativa Sobre a Liberdade de Imprensa é um exemplo emblemático dos equívocos que têm orientado a discussão sobre o tema, comandada pela grande mídia.

Nunca será demais insistir que o conceito de liberdade de imprensa tem uma história que começa com a liberdade individual de expressão e o direito de imprimir na Inglaterra do século XVII, muito antes de existirem jornais como os de hoje.

Ao longo do tempo, a questão central que define o significado da liberdade de imprensa tem sido exatamente quem ameaça a sua existência. A identificação desse quem faz parte da construção histórica do conceito e, considerando a importância que a mídia adquiriu, constitui elemento determinante da própria disputa pelo poder político nas democracias contemporâneas.

Direito soberano

Inicialmente, a ameaça vinha do Estado absoluto, onde o poder do monarca era considerado de origem divina. Religião e poder temporal se confundiam. Com o passar dos séculos e o surgimento da democracia, o poder absoluto foi sendo substituído pelo Estado democrático de Direito. Mesmo assim, o poder do Estado "autoritário" continuava a ser a grande ameaça à liberdade de imprensa. A imprensa, no entanto, acabou por se transformar em mídia – um grande negócio. A partir daí, a origem da ameaça à liberdade de imprensa deixou de ser somente o Estado.

Os grandes jornais passaram a fazer parte de conglomerados empresariais multimídia com amplos interesses econômicos e políticos e eles próprios se constituíram em atores importantes na disputa pelo poder nas sociedades democráticas. A ameaça à liberdade de expressão passou a vir não somente do Estado, mas também desses grandes conglomerados.

Neste novo contexto, vale lembrar a célebre decisão da Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos em 1969. Apesar de referida apenas à radiodifusão, a interpretação do significado da Primeira Emenda da Constituição norte-americana é clara: "It is the right of the viewers and listeners, not the right of the broadcasters, which is paramount." ("É o direito dos espectadores e ouvintes, não o direito dos radiodifusores, que é soberano"; 395 U. S. 367; June 9, 1969).

Posição do cidadão

Nas democracias contemporâneas, portanto, a liberdade de imprensa se justifica pela obediência aos princípios da pluralidade e da diversidade, tanto no jornalismo como no entretenimento. São estes princípios que vão permitir ao cidadão acesso à informação equilibrada, que por sua vez é a garantia da formação de uma opinião pública independente capaz de legitimar o "governo por consentimento" (G. Sartori).

No Brasil, opera-se uma inversão conceitual que tem substituído o cidadão pelas empresas de mídia. Estas deveriam ser o instrumento da liberdade de expressão individual de cada cidadão, e não o meio e o fim da liberdade de imprensa.

Precisamos dar um passo à frente e discutir o papel da mídia em termos do "direito à comunicação" de cada cidadão. Este é um direito de "mão dupla" que supera conceitualmente a unidirecionalidade do conceito de direito à informação. E é um direito universal do Homem, como, por exemplo, os direitos à saúde ou à educação.

Dessa nova perspectiva, talvez na próxima celebração do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (3/05) já possam estar corrigidas as rotineiras distorções no debate que a grande mídia tem promovido entre nós e o cidadão – leitor, ouvinte ou telespectador – volte a ocupar a posição que é sua, de único sujeito do direito à comunicação nas democracias.

Regulação dos sistemas e mercados de comunicação

O Brasil de hoje possui instituições modernas em vários setores da economia e da administração pública. Dos anos 1990 para cá, cada vez mais surgem órgãos de fiscalização, acompanhamento e controle, como as agências reguladoras, que nos levam a crer que o País foi definitivamente varrido pelos ventos da transparência e das boas práticas de gestão. Em alguns setores, entretanto, persiste a manutenção de áreas de sombras onde o amadurecimento das relações institucionais não faz eco. Quem os acompanha mais de perto percebe nitidamente a forma como convivem em igualdade de condições o Brasil cartorialista, patrimonialista e corporativista, detectado por Raymundo Faoro, com a Nação que vem construindo uma social democracia a duras penas. No caso específico da área das Comunicações [entendemos como área das comunicações a que compreende os processos de produção, circulação e recepção de mensagens e conteúdos informacionais nas mais diferentes plataformas e suportes tecnológicos. O que inclui não somente a radiodifusão e a imprensa, mas as atividades relacionadas aos serviços de telecomunicações e à indústria cinematográfica], o Brasil do passado mantém a cabresto os atores e práticas sociais que ousam imaginar um futuro onde o interesse público se imponha sobre o privado.

Ao mesmo tempo, se descortina uma ruptura de paradigmas diagnosticada no Brasil por entidades que defendem a democratização da comunicação:

"Diante do processo de convergência entre diferentes tecnologias de informação e comunicação e do surgimento de novas formas de produção e distribuição de mensagens, o Brasil precisa implantar políticas públicas de comunicação a partir de um marco regulatório mínimo que distinga as diferentes tecnologias, linguagens, agentes produtores, agentes mediadores e tipos de infra-estrutura da área das comunicações e submeta a exploração de serviços semelhantes a regras semelhantes.

"Neste momento histórico, as políticas públicas para a área das comunicações exigirão flexibilidade para abarcar tanto as emergentes tecnologias de informação e comunicação quanto garantir a adequada transição dos serviços analógicos para o ambiente digital. O novo cenário também exigirá políticas de regulamentação e de regulação que consigam ser universais o suficiente para manterem-se em vigor mesmo com o veloz surgimento de novas tecnologias e suportes". (XIII Plenária Nacional do FNDC, 2006)

Tendo estes dois Brasis em mente, a proposta do artigo "Apontamentos sobre a regulação dos sistemas e mercados de comunicação no Brasil" (do qual este texto é um estrato sintético) é fazer uma breve visita a alguns de nossos marcos históricos, informar como estão estruturados os sistemas e mercados de comunicação no Brasil e apresentar os desafios que se colocam aos administradores públicos e aos cidadãos interessados em intensificar o processo de regulação e regulamentação dos chamados meios de comunicação de social.

Debate público

Nesta espécie de auto-resenha, não se reproduzirá a periodicização da evolução do setor desde o século 19 no Brasil, como está no livro, mas elenca-se algumas questões colocadas no momento em que Estado e sociedade passaram a discutir abertamente a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação e a necessidade de revisão das normas que regem a área. Saliente-se que em seis anos de governo Lula, a elaboração e implementação de políticas públicas de comunicação tem sido uma agenda permanentemente adiada apesar de estar na ordem do dia não apenas do Congresso Nacional como de partidos e setores organizados da sociedade.

Fora a pressão cotidiana dos atores particularmente interessados na política da não-política de comunicação, o atual qüiproquó da comunicação torna a tarefa um desafio para o Estado e não apenas para o governo. Em resumo, o trabalho dos gestores públicos consiste no reordenamento dos sistemas e mercados de forma que a sociedade possa equilibrar o prato da balança do direito a comunicar e de ser informado com o da liberdade econômica sem que a mesma penda para este último lado. Como vários autores já constataram, vivemos um período de multiplicidade de oferta, obsolescência programada e circulação de informações e capitais em ciclos tão acelerados que nossa capacidade de absorção e domínio da realidade sempre estará aquém da velocidade com que a mesma se transforma.

Temos que aceitar a idéia de que essa defasagem também será uma constante no ambiente jurídico-institucional das comunicações, uma vez que essas categorias são concebidas e gerenciadas pela mente humana. Os instrumentos a serem criados precisam atuar como gatilhos regulatórios, onde a atualização da norma ou a ação do regulador sejam acionadas cada vez que a sociedade encontre um conflito ou uma tensão a ser resolvida.

De uma forma resumida, esse pode ser o pressuposto para estabelecer o controle público nas comunicações sem resvalar em questões de cerceamento de direitos e liberdades. A intervenção do Estado, mediante seus agentes ou instituições, deve sempre se dar como uma forma de conciliar pluralidade com inovação tecnológica, social com econômico, interesse público com privado. Para isso, podemos nos valer de um ferramental de que as sociais democracias já dispõem: conselhos, ouvidorias, consultas públicas, metas de qualidade, órgãos de fiscalização, acompanhamento e controle etc. O importante é que estes canais funcionem efetivamente e, aos poucos, possamos saltar do nível das relações incestuosas entre empresas e Estado para um grau de transparência, no qual o particular não se sobreponha ao público.

Sociedade fragmentada

Para os demais casos em que a velocidade das situações de "fato" não se impõe sobre as de "direito" é possível valer-se do planejamento de médio e longo prazo. Aqui a tarefa é mais árdua, porque, com tantos gargalos e déficits, se tornou difícil listar os desafios impostos ao legislador e à sociedade. Os nós a serem desatados estão tanto na esfera conceitual, quanto na institucional, seja econômica, política ou cultural.

Antes de mais nada, é necessário saber de qual comunicação estamos falando. É oneroso e improdutivo continuarmos vivenciando o vazio conceitual no qual um conteúdo é encarado como comunicação social pela manhã e interpessoal à tarde. [É o que acontece hoje com alguns produtos como telejornais, transmitidos em determinados horários por uma emissora de TV (radiodifusão) e em seguida retransmitidos por uma operadora de TV paga (telecomunicações)].

Para efeitos de definição legal, podemos enxergar comunicação social naqueles conteúdos eletrônicos ou impressos processados e distribuídos para um público indeterminado a partir de qualquer plataforma técnica de comunicações. Aplicando este conceito a cada caso, saberíamos como enquadrar tanto um e-mail enviado a partir de uma aplicação de TV digital, quanto uma novela distribuída pela internet ou para telefones celulares. Quando a troca de mensagens, por qualquer plataforma técnica de comunicações, se desse entre agentes individualmente identificáveis, estaríamos no terreno da comunicação interpessoal, protegida pelos direitos individuais. Conceitos guarda-chuva como estes ajudam a aumentar a longevidade de uma norma jurídica na área das comunicações.

A idéia de se distanciar de uma lei geral das comunicações por uma questão de correlação de forças políticas no Congresso Nacional, cujo forte lobby privado contamina qualquer tentativa de legislação equilibrada para o setor, pode ajudar a fortalecer o novo papel do Estado brasileiro, menos patrimonialista e cartorial e mais promotor e regulador de políticas públicas de comunicação. E vacinar nosso arcabouço normativo contra as epidemias regulatórias, oriundas tanto das constantes alterações tecnológicas quanto da oportunista reacomodação de interesses particulares de agentes de mercado.

Não se trata de fugir da necessária re-regulamentação das comunicações. Trata-se de encará-la como um processo, passível de permanente planejamento e avaliação de resultados, podendo ser desenvolvido em paralelo ou individualmente. Pensando este processo regulatório integrado, poderíamos dividi-lo em quatro estratos, fases ou blocos temáticos:

** Conteúdo – os objetos de interesse da elaboração de regulamentação e implementação de políticas públicas girariam em torno de temas como a formulação de uma novo conceito de comunicação social e interpessoal, liberdade de expressão, qualidade do serviço, mecanismos que assegurassem o controle público dos produtos simbólicos, direitos autorais, etc.

** Economia – definição de poder de mercado, modelo de financiamento, políticas de preços, limite de propriedade, direitos do consumidor, fomento à produção.

** Estrutura – desverticalização da cadeia econômica, desagregação de redes, rede pública e única, cidades digitais.

** Regulação – criação de mecanismos de controle público, definição de indicadores de metas de qualidade e universalização, plano geral de outorgas, regulamentação, política de fiscalização.

Esse elenco aleatório de prioridades, aberto a vários outros tópicos aqui não listados, nos mostra quanto trabalho dará atualizar o marco regulatório da área das comunicações. Talvez por isso, existam interpretações diferentes conforme as perdas e ganhos imediatos de cada ator. A preservação do status quo pelo maior prazo possível é o jogo preferido das empresas de comunicação e de telecomunicações nesse momento. Não entrar em rota de colisão com o setor privado, que constrói e sustenta a imagem pública dos governantes, é a tática permanente de qualquer político, vide o recente caso da regulamentação da TV por assinatura que ainda se desenrola na Câmara dos Deputados. 

Maior interessada nesse processo de democratização e estabelecimento da pluralidade na área das comunicações, a sociedade está fragmentada entre uma maioria que vê na mídia um monopólio natural do setor privado, onde qualquer política pública se revela uma tentativa de controle estatal, e uma elite que sabe da importância de regulá-la, mas, por diversas razões, se mantém refém deste primeiro raciocínio.

Instituição mediadora

É hora das principais empresas de mídia do país olharem para o seu passado e compreender que a legitimidade que conquistaram ao longo das últimas três décadas – traduzida sob a forma de índices de audiência ou de vendas – lhes foi consignada pela sociedade brasileira por cumprirem seu papel social durante a primeira década de redemocratização do Brasil. E que tentativas de atuar como grupo político em nada contribuem para a evolução do patamar das relações sociais construídas em nosso país.

É hora do Estado e seus agentes compreenderem que não lhes cabe tutelar, coagir ou cooptar a imprensa e a sociedade civil. Uma nova postura neste sentido pode contribuir para o fim da prática de uso das verbas publicitárias oficiais como moeda de troca por condições de governabilidade, possibilitando o surgimento de uma mídia não comprometida com correntes políticas ou projetos de poder.

É hora do mercado se acostumar com a idéia de que sua busca incessante pelo lucro não está acima do interesse público e que o estado democrático de direito pressupõe pluralidade, concorrência leal, responsabilidade social e uma ordem econômica vigorosa, onde investidores não comandem governos nem submetam o Estado às suas necessidades de expansão comercial.

É hora de a classe política enxergar a comunicação social não apenas como um instrumento para conquista de poder ou um palco para performances pessoais. Esta simples mudança de conduta permitiria aos homens públicos abandonar a posição de refém das pesquisas de opinião e do noticiário, retomando seu diálogo direto com o cidadão. Mais do que isso, poderia assegurar a criação de veículos de comunicação com caráter efetivamente público, desatrelados do mandatário de plantão.

É hora de os jornalistas e demais produtores de informação entenderem que sua função profissional não os isenta de respeitar os mesmos códigos sociais seguidos pelos demais cidadãos – e que a liberdade de imprensa não é um valor absoluto. Em qualquer sociedade democrática, ela deve se encontrar no mesmo patamar dos demais direitos civis, subordinada a um ordenamento jurídico específico e ao controle público de uma forma geral.

É hora de o Brasil fazer as pazes com seu passado de recaídas arbitrárias e buscar um futuro mais tranqüilo onde o preço pago pela eterna vigilância dos princípios democráticos não seja a hegemonia da "lei do mais forte" – seja por parte do Estado ou do setor privado. Enterrar de vez o "esqueleto" da censura significa também deixar de tirá-lo do armário cada vez que seja cogitado o estabelecimento de mecanismos de regulação dos meios de comunicação. Ao acordar com a sociedade novas normas de conduta e segui-las de forma responsável, a mídia brasileira não estará se sujeitando a qualquer espécie de autoritarismo ou intervencionismo. Ao contrário, estará abrindo mão de exercer o papel de censora das vontades de toda uma Nação e retomando seu lugar como instituição mediadora da esfera pública.

* James Görgen é jornalista, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Epcom – Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação

A necessária regulação do exercício da imprensa

A idéia de que a liberdade de imprensa depende da inexistência de regulamentação legal específica, seja ou não voltada só para a imprensa, foi levada por seu mais ativo defensor atual, deputado Miro Teixeira, a uma inovação conceitual que nada tem, ou teve, sequer de parecido aqui ou mundo afora.

Já autor da ação que provocou a recente e temporária suspensão de parte da Lei de Imprensa em vigor (o julgamento final da ação ainda não tem data no Supremo Tribunal Federal), Miro Teixeira apresentou sua nova proposta na 3ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa: além da ausência plena de dispositivo legal sobre exercício da imprensa, devem ficar impedidos de processar jornalistas, sob alegação de dano moral e outros, todos os que exercem função pública. Sejam autoridades governamentais, parlamentares, servidores concursados ou não, lideranças religiosas ou classistas, entre tantos.

A inovação não se encerra aí. Também os procedimentos de defesa, por quem se considere atingido, deixariam de conter o direito de resposta e a eventual publicação da sentença condenatória. Ao pretenso ofendido caberia, se quisesse, oferecer-se a uma entrevista e, por esse ou por modos equivalentes, disputar com o noticiário a publicação de sua defesa.

Estou entre os que acham, mais do que necessária, indispensável a existência de legislação reguladora do exercício da imprensa e, portanto, da sua contraparte, que são os objetos (pessoas e atividades) do publicado. A preservação da liberdade de imprensa e dos direitos democráticos não está na existência de regulamentação, mas no seu sentido e nos propósitos e nas abrangências que estabeleça. Dá uma idéia desse princípio a lembrança de que, assim como os objetos da imprensa têm direitos, o jornalismo também os tem e, acima deles, tem ainda os seus típicos e onerosos deveres sociais, cívicos e morais. Direitos e propósitos contrapostos requerem regulação e, às vezes, a mediação que é o Judiciário.

O impedimento de procedimentos judiciais de defesa, justificada ou não, por parte de "agentes da vida pública" começa por estabelecer uma diferenciação antidemocrática nos direitos gerais da cidadania, com a criação da subclasse dos indefesos morais. Em nome da liberdade, introduz a discriminação no acesso aos direitos civis. É, na relação entre imprensa, direitos e sociedade, o regime totalitário às avessas mas tão totalitário quanto em sua modalidade convencional.

Mais para não ser faltoso, do que por necessidade, fica aqui o registro de que, a deixar a pretensa defesa na disputa por espaço no noticiário, ou seja, à vontade da imprensa, todos sabem que a regra mais adotada seria a de mais ataque e nada de defesa. Originário da imprensa, que foi sua rampa de acesso aos primeiros mandatos, o deputado Miro Teixeira talvez esquecesse, mas sabe que seria assim.

É constrangedor dizer isto, mas aí vai: o problema para ter-se imprensa séria e democrática é a contenção das tantas irresponsabilidades. Não é o caso, aqui, de considerar suas diferentes procedências ou possíveis motivações. Mas impedir o direito de defesa de "agentes da vida pública", a título de impedi-los de "ocultar, intimidar e impedir investigações", seria liberar todas as irresponsabilidades. E, em alguma medida, seria mesmo abrir as portas para chantagens e negócios sujos.

O assunto imprensa é mais complicado, sob todos os ângulos, do que parece. Mais complicado para dentro e para fora da imprensa.