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Os desafios do Fórum de Mídia Livre

A luta pela recuperação da palavra crítica é latino-americana e internacional. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação.

No dia 14 de maio deste ano, um grupo de mais de 750 intelectuais argentinos lançou uma carta aberta à sociedade alertando para o crescimento de um clima golpista no país, com participação ativa dos grandes meios de comunicação. Além disso, o documento advertiu os governos latino-americanos para uma batalha simbólica que não está sendo enfrentada. A manifestação dos intelectuais argentinos identifica bem um problema estratégico relacionado à atuação da mídia em toda a América Latina. O contexto político argentino fornece a moldura dessa advertência. Uma advertência que é pertinente à realidade política de toda a América Latina e que merece toda a nossa atenção. Os signatários do documento divulgado em Buenos Aires definiram do seguinte modo o contexto da crise política na Argentina, explicitada a partir da mobilização do setor ruralista contra o governo de Cristina Kirchner:

“Como em outras circunstâncias de nossa crônica contemporânea, hoje assistimos em nosso país a uma dura confrontação entre setores econômicos, políticos e ideológicos historicamente dominantes e um governo democrático que tenta implementar determinadas reformas na distribuição de renda e adotar estratégias de intervenção na economia. A oposição às retenções – compreensível objeto de litígio – deu lugar a alianças que chegaram a lançar a ameaça da fome para o resto da sociedade e lançaram questionamentos sobre o direito e o poder político constitucional do governo de Cristina Fernández para efetivar seus programas de ação, a quatro meses de sua eleição pela maioria da sociedade”.

O que essa realidade tem a ver conosco?

Tem a ver na medida que se refere a processos que nos são bastante familiares aqui no Brasil. Senão, vejamos as palavras seguintes do manifesto dos intelectuais argentinos sobre a natureza da ação da oposição ao governo de Cristina Kirchner:

“Instalou-se um clima de desconstituição que tem sido considerado com a categoria do golpismo. Não, talvez, no sentido mais clássico de incentivar alguma forma mais ou menos violenta de interrupção da ordem institucional. Mas não há dúvida de que muitos dos argumentos que se ouviram nestas semanas têm paralelos ostensivos com os que, no passado, justificaram esse tipo de intervenções e, sobretudo, um muito reconhecível desprezo pela legitimidade governamental”.

Essas palavras soam familiares. Elas falam da “barbárie política diária da mídia” e de uma “atmosfera política perigosa” alimentada pelos grandes meios de comunicação:

“Na atual confrontação em torno da política de retenções (impostos sobre produtos de exportação) desempenharam e desempenham um papel fundamental os meios massivos de comunicação mais concentrados, tanto audiovisuais como gráficos, de altíssimos níveis de audiência, que estruturam diariamente a realidade dos fatos, que geram ‘o sentido’ e as interpretações e definem ‘a verdade’ sobre atores sociais e políticos a partir de variáveis interessadas que excedem a busca de audiência. Meios que gestam a distorção do que ocorre, que difundem o preconceito e o racismo mais espontâneos, sem a responsabilidade por explicar, por informar adequadamente nem por refletir com ponderação as mesmas circunstâncias conflitivas e críticas sobre as quais operam”.

O documento prossegue:

“Esta prática de autêntica barbárie política diária, de desinformação e discriminação, consiste na gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária. Privatizam as consciências com um sentido comum cego, iletrado, impressionista, imediatista, parcial. Alimentam uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais. A reação dos grandes meios diante do Observatório da discriminação na rádio e na televisão mostra claramente um desprezo fundamental pelo debate público e pela efetiva liberdade de informação”.

Diante dessa prática de “barbárie política diária de desinformação e discriminação”, os intelectuais argentinos colocam como desafio para toda a América Latina, ou seja, para todos nós, “a recuperação da palavra crítica em todos os planos das práticas e no interior de uma cena social dominada pela retórica dos meios de comunicação e pela direita ideológica de mercado”. A recuperação de uma palavra crítica que “compreenda a dimensão dos conflitos nacionais e latino-americanos, que assinale as contradições centrais que estão em jogo, mas sobretudo que acredite ser imprescindível voltar a articular uma relação entre mundos intelectuais e sociais com a realidade política”.

Esse é um dos principais desafios que está colocado diante de nós que estamos construindo esse movimento de Mídia Livre no Brasil. Não se trata de uma luta que se encerra nas fronteiras nacionais. Não se trata também de um debate que se limita à reivindicação por critérios democráticos na distribuição de verbas públicas para o setor de comunicação. Há uma dimensão política nesta disputa que envolve um enfrentamento com fortes estruturas de poder político e econômico ligadas ao grande capital financeiro. É disso que se trata.

A luta pela recuperação da palavra crítica é uma luta latino-americana e internacional. É importante ter isso em mente no momento em que realizamos o primeiro Fórum de Mídia Livre no Brasil. Nossos problemas não são exclusividade nossa. Fazem parte de uma realidade internacional onde a chamada grande mídia não é um feudo dissociado de outras estruturas de poder. Como já disse Bernard Cassen, os proprietários dos grandes sistemas midiáticos são empresários transnacionais que, na imensa maioria dos casos, têm negócios diversificados em outros setores para além da mídia. Ou seja, eles estão conectados ao mercado global e são atores centrais do processo de globalização. Enquanto tal, conclui Cassen, esse sistema é um vetor ideológico estratégico da globalização do capital.

Cabe a nós, portanto, trabalhar pela construção de uma articulação latino-americana e internacional em torno da proposta de uma mídia livre. Temos uma grande oportunidade histórica para fazer essa luta avançar. Em janeiro de 2009, Belém do Pará estará sediando mais uma edição do Fórum Social Mundial. A agenda da mídia e da comunicação mais uma vez estará presente nos debates do FSM. Podemos, de agora até o final do ano, trabalhar pelo fortalecimento dessa articulação e pela construção de uma agenda de debates que aponte para propostas concretas para a democratização da comunicação e da informação. Esse é um dos principais desafios que está em nossas mãos.

* Joaquim Ernesto Palhares é diretor da Agência Carta Maior

RS: O braço midiático da fraude no Detran

Há uma informação na denúncia produzida pelo Ministério Público Federal contra os acusados de integrar a quadrilha que agia no Detran/RS que não vem recebendo a menor atenção por parte da mídia gaúcha. É compreensível o silêncio. E lamentável também, colocando sob suspeita um serviço de interesse público (informar a população). Esse silêncio diz respeito a seguinte passagem da página 56 da denúncia:

“Ao lado disso, os denunciados integrantes da quadrilha não descuidavam da imagem dos grupos familiares e empresariais, bem assim da vinculação com a imprensa. O grupo investia não apenas na imagem de seus integrantes, mas também na própria formação de uma opinião pública favorável aos seus interesses, ou seja, aos projetos que objetivavam desenvolver. A busca de proximidade com jornais estaduais, aportes financeiros destinados a controlar jornais de interesse regional, freqüentes contratações de agências de publicidade e mesmo a formação de empresas destinadas à publicidade são comportamentos periféricos adotados pela quadrilha para enuviar a opinião pública, dificultar o controle social e lhes conferir aparente imagem de lisura e idoneidade”.

A denúncia cita como exemplo de investimento da quadrilha “na formação de uma opinião pública favorável aos seus interesses” as inserções de reportagens que visavam promover a idéia da implementação de usinas de casca de arroz no Rio Grande do Sul. O documento do Ministério Público Federal não cita em que data e veículo de comunicação tais reportagens teriam sido veiculadas.

O Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul divulgou nota oficial, citando o artigo n° 11 do Código de Ética do Jornalista, segundo o qual “o profissional não pode divulgar informações visando interesse pessoal ou vantagem econômica”. Repudiando esse tipo de prática, o sindicato encaminhou a nota à CPI do Detran defendendo que o assunto seja investigado e sejam nominados os profissionais envolvidos em ilegalidades, “pois não é justo que toda a categoria seja colocada sob suspeição em uma denúncia generalizada”.

Já os representantes dos “jornais estaduais”, “jornais de interesse regional”, “agências de publicidade e empresas destinadas à publicidade” não se manifestaram até agora sobre o tema. A rigor, existem dois jornais de circulação estadual no Estado, Zero Hora e Correio do Povo. Os demais jornais de Porto Alegre, O Sul, Jornal do Comércio e Diário Gaúcho não circulam em todo o Estado.

Lobista tucano diz que esquema pagava colunistas

Além da referência a um braço midiático da quadrilha acusada de roubar o Detran, feita na denúncia do Ministério Público Federal, há uma outra menção ao pagamento de jornalistas para produzir matérias de interesse do grupo. Ela aparece na carta que o empresário e lobista tucano Lair Ferst escreveu à governadora Yeda Crusius para “denunciar” que estava sendo vítima de uma campanha difamatória por parte da quadrilha. Segundo as investigações da Polícia Federal e do MP federal tratava-se de uma disputa interna no grupo pelo controle das verbas do Detran. Na carta, Lair Ferst escreve:

“Este grupo é liderado pelo ex-professor da Universidade Federal de Santa Maria, José Antonio Fernandes, e dos seus sócios Barrionuevo e do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Sr. João Luiz Vargas. Conta também com uma série de colunistas de vários jornais que tem remuneração paga pelo Sr. José Fernandes para plantar notícias de seu interesse particular. Usam diversas pessoas para servir aos seus propósitos escusos sem aparecer e ficar impune e livre de qualquer acusação”.

Barrionuevo é José Barrionuevo, ex-colunista político do jornal Zero Hora. Após deixar o jornal, Barrionuevo passou a trabalhar como “consultor de imagem” e marqueteiro em campanhas políticas. Em 2006, Barrionuevo trabalhou como consultor para o Pacto pelo Rio Grande, uma iniciativa do então presidente da Assembléia Legislativa do RS, Luiz Fernando Zachia (PMDB).

O principal resultado concreto do Pacto foi o lançamento do livro “Pacto – Compromisso de todos – Jogo da Verdade – Crise estrutural e governabilidade do Rio Grande”, assinado pelo próprio Barrionuevo e por Cezar Busatto (do PPS, ex-chefe da Casa Civil do governo Yeda Crusius, demitido após a revelação de uma conversa explosiva com o vice-governador Paulo Feijó (DEM), onde admitia o uso de empresas públicas para financiar campanhas eleitorais do PMDB e do PP).

Na noite do lançamento do livro (13 de novembro de 2006), Barrionuevo deu o seguinte autógrafo para José Fernandes, dono da empresa Pensant, acusado de ser um dos chefes da quadrilha que roubou o Detran:

“Prezado José Fernandes, meu bruxo: este livro e o Pacto não existiriam sem o teu apoio e as tuas luzes. Vamos juntos nesta caminhada. Viva a Pensant”.

O autógrafo de Busatto para Fernandes não foi menos entusiasmado:

“Caríssimo José Fernandes, o Pacto tem uma marca indelével da tua competência, sabedoria, compromisso público! Obrigado por tudo! Vamos continuar trabalhando juntos pelas boas causas!”.

Barrionuevo repudiou as acusações de Lair Ferst, que trabalhou na campanha de Yeda Crusius em 2006 como “captador de recursos”, conforme confirmou dias atrás o vice-governador Paulo Feijó. O hoje “consultor de imagem” afirmou:

“No final da campanha do segundo turno de Yeda Crusius (em outubro de 2006), quando atuei como consultor, chamei atenção para os problemas do senhor Lair Ferst. Um coordenador, braço direito da candidata, me pediu informações sobre o empresário, em decorrência de nota publicada na Página 10 (coluna do jornal Zero Hora) naqueles dias. Mandei a ficha policial, que dispensa comentários. Soube que, a partir do meu relatório, foi solicitado que Lair não freqüentasse mais o comitê. Desconfio que atrapalhei seus planos”.

As afirmações de Barrionuevo comprometem a governadora Yeda Crusius que considera Lair Ferst um “companheiro” e “militante” do PSDB. Se ela teve acesso à “ficha policial” de Ferst durante a campanha, como permitiu que ele trabalhasse como captador de recursos para sua campanha? O ex-vice-governador do RS, Antonio Hohlfeldt (ex-PSDB, hoje no PMDB) também se referiu a Ferst de maneira nada elogiosa, dizendo que conhecia sua reputação e, por isso, jamais permitiu que ele entrasse em sua sala.

Por outro lado, o relato que o lobista tucano fez à governadora guarda grande semelhança com o que a denúncia do Ministério Público Federal afirma sobre as conexões midiáticas da quadrilha que roubou o Detran. Apesar de todas essas informações, a mídia gaúcha decidiu silenciar sobre o tema. Acusados, de forma generalizada, de ter recebido verbas publicitárias de integrantes da quadrilha, os jornais do Estado não publicam uma linha sequer sobre esse assunto espinhoso.

Por que realizar a Conferência Nacional de Comunicação?

Todos os movimentos sociais ligados às lutas pela democratização da Comunicação têm defendido a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, convocada pelo poder Executivo. É uma unanimidade que congrega entidades como o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), a CUT, o Conselho Nacional de Psicologia, o Coletivo Intervozes, o PT, a Fenaj, os Sindicatos dos Jornalistas de todo Brasil, a Fitert (Radialistas), Abraço (Rádios Comunitárias), etc.

As conferências nacionais são espaços de participação popular e controle social, utilizados pelo governo federal para formular políticas públicas para áreas diversas, como saúde, cidades e juventude. Participam das conferências delegados representantes da sociedade civil, empresários e governos, de forma proporcional. Convocadas pelo poder Executivo, têm etapas municipais, estaduais, além da etapa nacional. São financiadas com recursos da União e presididas, normalmente, pelo ministério da área correlata.

Constituem, assim, um espaço público onde os diversos interesses, inclusive contraditórios, de uma área são discutidos para estabelecer políticas de Estado. Um espaço para a construção coletiva do interesse público.

As conferências são, em suma, espaços de exercício democrático, de conversão em discussão pública de temas que, no Estado brasileiro, normalmente são tratados na esfera privada. Radicalizam a democracia, aprofundam um caminho que começou a ser trilhado no Brasil pela instituição de conselhos municipais, estaduais e nacionais das mais diversas áreas e pelas políticas de democracia diretas, como o Orçamento Participativo e as audiências públicas dos poderes legislativos. Só isto bastaria para que a Conferência fosse considerada um ganho para a democratização da comunicação.

Os empresários da área sempre foram os mais arredios a qualquer debate público sobre o tema. Senhores dos instrumentos que, numa sociedade moldada pelos meios eletrônicos de comunicação, lançam luzes ou trevas sobre os temas de interesse da sociedade, ocultaram, por anos, os debate sobre a área. Ou, tanto pior, distorceram acintosamente o debate quando o tema lhes interessava. O resultado é uma regulação precária da comunicação no Brasil. Nenhuma outra área é tão impenetrável à regulação pública, tão avessa às regras do próprio capitalismo contra oligopólio e monopólio.

Isso não bastasse, o momento demanda que a área seja debatida e os próprios radiodifusores se vêem na premência de participar do debate, pelas investidas das empresas de telefonia na área. A convergência engendrou a TV Digital, eliminou as diferenças entre redes (telefonia, TV a Cabo, sinal de TV, etc.) e trouxe novos agentes para o jogo. O momento é propício; os interesses empresariais na área estão cindidos; as novas tecnologias demandam um debate sobre como a sociedade deve se apropriar delas.

O Executivo reluta. É capaz de aplicar a lógica das conferências nas mais diversas áreas, mas refuga quando se trata da comunicação, área em que a atuação do governo Lula é, ao menos até agora, sofrível e decepcionante. Por isso, a pressão dos movimentos sociais deve se voltar sobre o Executivo, para que convoque ainda este ano a Conferência Nacional de Comunicação. É necessário, em benefício da sociedade; é possível, pois nunca antes os empresários da área cogitaram ter que discutir seus interesses em espaço público e talvez não tenham mais como fugir disso.

* Mário Messagi Júnior é jornalista, professor da UFPR e diretor do Sindijor-PR
* Fernando César Oliveira é jornalista, membro do Coletivo PT de Comunicação

Caso O Dia: O jornalismo na medida do possível

O episódio de seqüestro e tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia por milicianos que controlam uma favela em Realengo, no Rio, deveria servir para desencadear um debate – tão urgente quanto ausente nos meios profissional e acadêmico – sobre os limites e os procedimentos adequados para a atuação dos jornalistas. É um debate difícil, e não só pela própria dificuldade do tema, mas porque a predisposição, nessas ocasiões – como ocorreu quando do assassinato de Tim Lopes – é a reação emocional e intempestiva, empenhada na justa condenação da violência mas também na reiteração de certos mitos que envolvem tanto a atividade jornalística quanto, nesses casos específicos, a natureza dos conflitos nas favelas do Rio. E mitos devem ser desfeitos, para o bem de todos nós.

O estabelecimento de limites é uma questão elementar de ética, mas costuma ser mal visto por quem exerce o jornalismo, provavelmente em razão de uma concepção equivocada sobre o papel que esse profissional desempenha: o jornalista é um mediador entre os fatos e o público, e por isso se credencia a estar onde esse público não pode estar para obter e divulgar as informações de que esse público necessita.

Freqüentemente, porém, o acesso à informação é obstruído, seja por interesses escusos, seja porque, de fato, é preciso resguardar o sigilo: aliás, como José Paulo Cavalcanti Filho demonstrou em artigo publicado neste Observatório [ver "O drama da verdade (ou discurso sobre alguns mitos da informação)"), não há uma relação automática entre democracia e informação (ou "transparência", como está na moda dizer). Pelo contrário – diz ele, com os argumentos que podem ser verificados no texto original –, democracia é, frequentemente, não informar.

"Guerra do Rio"

Raramente os jornalistas entram nessas considerações: diante do acesso negado, acham-se no direito de utilizar outros procedimentos que não os convencionais, sempre aludindo ao argumento de que estão agindo no interesse da sociedade. O que pode ser resumido num comentário de Armando Nogueira, em entrevista à Playboy, ainda nos anos 1980: "O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira".

Junte-se a isso a mística de sacerdócio que ainda hoje envolve a profissão – a idéia de "missão", provavelmente decorrente do original compromisso com a "verdade" –, acrescente-se ao quadro a figura-síntese do herói dos quadrinhos, o jornalista como o Super-Homem, e teremos aí, nos mais distintos níveis do imaginário social, uma profissão muito particular, que não poderia ser submetida a qualquer tipo de constrangimento. Na prática, isso significa que ora o jornalista se anuncia como tal – reiterando a conquista de uma legalidade que remonta ao tempo de consolidação do conceito de "quarto poder" –, ora se disfarça em qualquer outra identidade conveniente, afirmando-se assim como um profissional que não pode conhecer limites para atuar.

Esse poder auto-atribuído representa, é claro, a maximização dos riscos inerentes ao trabalho, na medida em que o jornalista se oferece como agente capaz de substituir os representantes das instituições públicas, sobretudo se essas instituições são vistas como inoperantes ou corruptas. É bem o que ocorre na cobertura do que, equivocadamente, se convencionou chamar de "guerra do Rio" – os conflitos entre policiais, traficantes (que se tornaram o símbolo dos transgressores e criminosos em geral) e a população marginalizada.

A falaciosa metáfora da guerra

Fala-se em guerra como metáfora, mas é uma metáfora eloqüente: se pensamos em guerra, pensamos em inimigos e numa forma bélica de combatê-los. É precisamente esta a política adotada pelos sucessivos governos do Rio de Janeiro nas últimas décadas. O saldo de mortos "em confronto com a polícia", que só faz crescer, e a extração social desses mortos demonstram por si o sentido dessa política, reiteradamente denunciada por organizações dedicadas à defesa dos direitos humanos, no Brasil e no exterior. Mas não é disso que devemos tratar aqui, e sim das conseqüências da adoção dessa metáfora pelo discurso jornalístico.

"Guerra" é uma coisa um pouco diferente e ligeiramente mais grave do que os conflitos que grandes cidades como o Rio de Janeiro enfrentam, em decorrência de tantos fatores que seria excessivo nomear – desigualdade social, apelos consumistas, desemprego, excessos demográficos e tantos outros. Porém, se aceitássemos assumir que estamos em guerra, como a maioria das reportagens e alguns articulistas reiteram agora, deveríamos considerar os cuidados que os jornalistas destacados para essa cobertura precisariam tomar. A começar pela identificação: pois, numa situação de guerra – como ocorreu no passado recente no Iraque –, o jornalista que não tem credencial assina sua sentença de morte.

Em contrapartida, e com referência ao mesmo contexto, é só por estarem claramente identificados que os jornalistas podem protestar quando são atacados. Assim foi também na capital do Iraque, quando um tanque americano repentinamente voltou seu canhão e disparou contra o hotel em que se concentravam jornalistas do mundo inteiro, matando dois repórteres e ferindo outros. Da mesma forma, em tempo de guerra, a punição para um espião, de acordo com o Código Penal Militar, pode chegar à pena de morte.

Os riscos da infiltração

Então, ao entrarem incógnitos "em território inimigo" – como afirma uma das reportagens de O Dia na edição que denunciou o episódio, em 1º de junho – ou se infiltrarem no "reino dos bandidos" – como definiu uma prestigiada comentarista de economia, naturalmente esquecendo que a bandidagem não se restringe às favelas –, os jornalistas não podem ignorar o risco que correm. Sobretudo, não podem – nem eles, nem as entidades que os representam – denunciar a violência que sofreram como um atentado à liberdade de imprensa. Porque não há sentido em fazer essa cobrança a quem não tem, nem poderia ter, o menor compromisso com esses valores. Seria um contra-senso pedir a um traficante ou a um "miliciano" que respeitasse a lei.

A propósito, o jornalista Fritz Utzeri, uma das raras vozes críticas à época do caso Tim Lopes, escreveu no Jornal do Brasil (5/6/2002) um artigo intitulado justamente "Os limites do jornalismo" num momento em que, pelo menos em tese, ainda se cultivava a esperança de que o repórter não tivesse sido assassinado. Dizia o seguinte:

"Morrem anualmente dezenas de coleguinhas em guerras, revoluções e acidentes. Faz parte do risco da profissão, mas daí a transformar cada um de nós numa cópia de 007 vai uma distância enorme. Nós somos testemunhas, não temos licença para matar e nossa atividade só pode ser exercida dentro da ética e da legalidade. Essa noção de que jornalista é jornalista é a única proteção que temos ao entrar em zonas de conflito para sairmos vivos e contar a nossa história. Se nos confundirmos com espiões ou policiais com eles seremos confundidos, e nesse caso é melhor mudar logo de profissão. O debate está aberto."

O debate, entretanto, jamais foi realizado a sério. E agora estamos diante de uma situação em tudo e por tudo semelhante, que por sorte não teve desfecho idêntico. Então repetimos os mesmos protestos de antes e nos espantamos diante da violência contra a imprensa. O secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro chega a indagar: se esse pessoal da milícia é capaz de seqüestrar e espancar repórteres de um jornal de grande circulação, o que não haverá de fazer com moradores anônimos?

Pergunta ociosa, porque o que "esse pessoal" faz é bem sabido e já foi sobejamente documentado pela nossa imprensa em passado recente. Bastaria, por exemplo, lembrar a série que O Globo publicou em agosto de 2007 sobre "os brasileiros que ainda vivem na ditadura". Sem entrar em considerações sobre o enfoque adotado – e haveria várias críticas a fazer, a começar pela comparação superficial e enganosa do significado da repressão generalizada naquele tempo e a situação em que vivem os marginalizados ao longo de nossa história, em tempos de ditadura ou democracia –, a série explicita o terrível cotidiano de quem mora em áreas submetidas a uma lei particular e não escrita.

Basta recordar a segunda matéria da série, em 20/8/2007, na qual o jornal anuncia, na primeira página, "Tráfico, milícia e polícia do Rio torturam nas favelas", para logo a seguir entrar nos detalhes sórdidos: "Suplícios como espancamento, empalação, choques elétricos e queimaduras severas por plástico derretido são utilizados por traficantes, milicianos e policiais para impor suas leis a 1,5 milhão de pessoas que vivem nessas comunidades". Na reportagem de 22/8/2007, o título da chamada de capa é "Pena de morte sem lei – favelas têm 7 vezes mais assassinatos".

Do ponto de vista da denúncia da violência a que está submetida essa parcela da população, foi uma série muito esclarecedora, e ninguém precisou se infiltrar nas "comunidades": pelo que informa o jornal, a apuração se deu da maneira tradicional, por meio de "mais de 200 entrevistas".

O apelo ao risco

Portanto, se "a idéia da reportagem era mostrar como vivem as pessoas em um local onde um grupo clandestino tem lucro fantástico com a venda do gás de cozinha, do sinal pirata de TV a cabo e da segurança forçada, além do curral eleitoral", a equipe de O Dia não revelaria muita coisa: a realidade era conhecida, mudariam apenas os nomes – ou, no caso, as iniciais, ou os codinomes – dos "personagens". A novidade, ou o chamariz, seria o método: os repórteres infiltrados que correm risco para mostrar a história "por dentro".

Mas nem isso seria novidade, pois a prática de se disfarçar para penetrar em ambientes fechados, proibidos ou que oferecem, legitimamente ou não, alguma restrição de acesso, é bem antiga: remonta pelo menos às últimas décadas do século 19, quando se estabeleceu a imprensa de massa e com ela a amplificação do apelo a relatos capazes de causar sensação a partir da "experiência vivida" do repórter que "aparece" – e faz seu jornal aparecer – como guardião dos fracos e oprimidos. Quanto mais riscos, maior o valor do "testemunho".

A fórmula faz sucesso e costuma render prêmios. Os exemplos se sucedem. Recentemente a Folha de S.Paulo ofereceu três deles: um repórter se inscreveu e foi aprovado num concurso para policial para contar "por dentro" como funciona a polícia carioca, "a polícia que mais mata" – isso depois da publicação do Elite da tropa, livro que serviu de base ao famoso filme com o título invertido, escrito com a colaboração um ex-integrante da corporação, justamente alguém que viveu aquela realidade; outro repórter se disfarçou de catador de papelão para mostrar como é essa vida; outro, ainda, chegou a viajar à Bolívia para passar por boliviano (!!!) e entrar no submundo da exploração de trabalhadores de confecções de porão na capital paulista – não bastassem as várias reportagens, algumas publicadas pela própria Folha, sobre a situação dramática de quem não tem muitas alternativas para ganhar a vida.

Isso sem contar os inúmeros casos em que os repórteres se sujeitam a viver nas ruas, a internar-se em manicômios, presídios e clínicas para tratamento de dependentes de drogas, para mostrar "como é" a vida nesses lugares, ignorando ou substituindo o trabalho de pesquisadores que, eventualmente utilizando os mesmos procedimentos – mas com objetivos e prazos completamente distintos –, realizam observações de campo metódicas para estudar essas mesmas realidades.

A rejeição à produção acadêmica, porém, é tradicional entre jornalistas, que gostam de achar que a própria experiência lhes basta e costumam desprezar a reflexão teórica, bem à maneira da lógica binária dos filmes policiais americanos que opõem o tira "operativo" das ruas ao chefe pseudo-intelectual de gabinete: Stallone-Cobra versus os "teóricos" branquelos, de terno e óculos de aro, que não sujam as mãos.

Sem a disposição para o debate, não sairemos dessa dicotomia que separa – falaciosamente – os mundos do "pensamento" e da "ação". E a discussão em torno dos limites para o exercício profissional poderá contribuir para esclarecer que, afinal, o jornalista não é o herói dos quadrinhos, mas um mediador que desempenha sua tarefa da melhor maneira na medida do possível.

* Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Que papelão, Rede Globo!

A Rede Globo, que não carece de apresentações, acabou de terminar uma das suas obras ficcionais mais marcadamente ideológica dos últimos anos, a novela “Duas Caras”, do também já conhecido roteirista engajado com as causas da emissora, Aguinaldo Silva. A novela, que foi exibida no conhecido horário nobre oferecido às obras ficcionais, trabalhou arduamente contra lutas travadas pelos movimentos sociais, dentre eles o movimento negro e o movimento estudantil. Sem falar das doses diárias de discursos contra o setor público, os partidos e os políticos.

A novela prestou um verdadeiro desserviço à afirmação da raça no Brasil, pregando uma aversão clara à discussão de identidade negra e cultivou uma idéia de racismo às avessas, dos negros em relação aos brancos. Afinal somos todos iguais e bonitos. Se não temos as mesmas oportunidades é porque, paciência, nem todo mundo se esforça como deveria. Como não poderia deixar de ser, a trama serviu para lançar e fazer publicidade de outro grande desserviço público, o livro do diretor-executivo de jornalismo da emissora, Ali Kamel, que tem como título (pasmem!): “Não somos racistas”.

O movimento estudantil foi “pautado” pela novela, que tinha um “cunho social apurado”. Os estudantes, lógico, foram tratados como vândalos sem causa, com direito a desqualificação das universidades públicas, “que vivem em greve e não tem dinheiro para manter nem os laboratórios” e uma apologia às universidades privadas.

Sem falar da imagem da favela idealizada pela Globo…

Não satisfeita, ou melhor, muito satisfeita com o resultado que lhe rendeu exorbitantes pontos no Ibope, a Globo resolve “prestar favores” a outro setor que vem sendo a duras penas desmascarado pelos movimentos sociais: as empresas de papel e celulose. Com a imagem ferida pelas ações de movimentos como os de luta pela terra, ambientalistas e indígenas que denunciam suas constantes violações, as empresas de celulose – ARACRUZ CELULOSE, VOTORANTIM E SUZANO –, segundo informações que circulam pela Internet, seriam as patrocinadoras da nova novela das 8h, que entrou no ar no último dia 2/6, “A Favorita”.

A trama tem, dentre suas protagonistas, uma menina linda, loira, meiga e militante ambientalista. Esta linda mocinha, preocupada com o desmatamento no Brasil é nada mais nada menos que a grande herdeira de um império de celulose.  Os donos da fábrica de celulose, seus avós, que sofrem com ações de sindicalistas exaltados, são também igualmente bonzinhos e humanos como a loira.

No primeiro capítulo já deu para perceber algumas movimentações de que a grande empresa de celulose não será nem de longe a vilã desta trama. Como não poderiam faltar, frases feitas contra os “militantes” da ficção já foram proferidas. Coisas como “Até a minha neta de esquerda se deixa seduzir pelas maravilhas que o dinheiro pode comprar”, ditas pelo bom avô, que lógico, já superou a “doença infantil e ultrapassada” de ser de esquerda, como o mesmo falou em outra passagem.

A trama tem espaço também para um político que veio “de baixo”, um negro, que tem um discurso enfático sobre as suas origens e contra os corruptos, mas que pelo visto está muito envolvido com as “benesses” do poder (se alguém vestir a carapuça, paciência. É o papel do Quarto Poder fazer denúncias subliminares). Enfim, este foi só o primeiro capítulo de uma novela que ainda vai trabalhar muito no plano ideológico mais declarado e não somente no subliminar, como era mais comum em outras tramas.

Assim como as novelas, as propagandas institucionais da Globo também estão tomando claramente lado nos debates, como por exemplo a última campanha institucional à favor da “liberdade de expressão na publicidade”. Na verdade, a rede vem tomando o lado de quem paga a conta. Diante da “ameaça” de uma população que não respondeu satisfatoriamente às campanhas contra Lula e, contrariando a emissora, reelegeu o presidente em 2006, são mesmo necessárias ações mais diretas e a adoção de um perfil mais apelativo das novelas. Até porque não se pode mais correr o risco de não voltar ao poder, literalmente falando.

Mais uma vez os grandes grupos de mídia no Brasil demonstram e reafirmam a  fidelidade aos seus co-irmãos, o grande empresariado. O papel de Partido da Burguesia, Aparelho Privado de Hegemonia, como queiram chamar, segue se aperfeiçoando, assim como o próprio modelo de exploração, assim como o próprio capital.

O uso de uma concessão pública para fins meramente privados vai também sendo aperfeiçoado e passando à margem dos questionamentos públicos. Por que será que o fato de uma concessão pública ser usada para fazer campanha de opinião não é tomada como um escândalo? Com que direito a Globo – que, quando é do seu interesse, defende a transparência com o que é público – faz isso com a sua concessão que também é pública? Quem lhe deu mandato para dizer o que quer e não estabelecer contraposições no uso desta concessão?

Boa parte do poder público, seja o Executivo, o Legislativo e até por vezes o próprio Judiciário, tem medo de comprar a briga contra os meios de comunicação de massa. Temem o ostracismo midiático e serem tachados de responsáveis por trazer de volta à vida o fantasma da censura, ameaças seguidamente feitas a quem ousa questionar o poder irrestrito e a total desregulação na qual funciona os grandes meios. De forma bem elaborada, os barões da mídia e a Globo, em especial, conseguem assumir o posto de guardiões da liberdade e jogar a mordaça nas mãos de quem luta pelo fim dos monopólios, pela pluralidade.

Provavelmente gritarão “censura” quando se depararem com críticas como estas, por exemplo. Desde já vamos deixar claro que não questionamos aqui a liberdade de criação. Esta deve ser preservada. Contudo, não podemos deixar passar impune o uso do espaço público para fazer uma campanha de opinião em que só um lado tem vez e voz: o lado dos patrocinadores, que, por sua vez, precisam “limpar” suas imagens.

Não foram poucos os teóricos que previram, acusaram e comprovaram que a mídia, principalmente os meios de comunicação de massa ligados a grandes grupos econômicos, a conglomerados de mídia, têm um papel a cumprir: o de porta-voz das classes dominantes, de legitimador do consumo e das ações do capital. Papel que cumprem, diga-se de passagem, muito bem.

Mesmo sem ter uma visão apocalíptica dos meios de comunicação, é impossível não perceber a força que estes veículos têm sobre boa parcela da sociedade e a legitimidade que tramas como estas podem trazer para suas causas, já que atuar no plano jornalístico apenas não dá mais conta de passar o recado e trazer o retorno esperado.

Será que só quando os militantes que combatem as transnacionais patrocinarem a novela é que eles poderão ter suas visões veiculadas sem distorções e estereótipos?

Mariana Martins é jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social