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Um dia na vida da Folha de S. Paulo

O dia é quinta, 30 de Outubro de 2008. Mas podia ser qualquer outro. Nessa quinta, o desprezo da Folha pelos seus leitores superou-se com a reportagem “Luz para Todos não cumpre a meta de dois milhões". Minha mulher, que já vinha se aborrecendo com a Folha, fechou as páginas, irritada: “Esse jornal pensa que somos idiotas”.

Começa pela foto que encima a história, uma cena de escuridão no Congresso Nacional, que não tem nada nadinha a ver com o programa Luz para Todos. Depois vem o título, enorme, em quatro colunas, numa página nobre do jornal, chamando de fracassado um programa que os números da reportagem revelam estar sendo um dos maiores sucessos do governo Lula.

O Luz para Todos atingiu até a semana anterior à publicação da matéria, nada menos que 1, 744 milhão de famílias. São famílias, por definição, localizadas em regiões remotas, pequenos vilarejos que as concessionárias não serviam por não ser econômico.

Mesmo se ficasse só nisso, já seria um feito excepcional. Não só pelo número absoluto de famílias e comunidades beneficiadas, mas também pelo fato de quase 90% da meta ter sido alcançada – meta essa que já era bastante ambiciosa.

Foi tão forte o desejo de narrar um fracasso que o repórter excluiu do seu argumento sobre o não cumprimento da meta deste ano o fato relevante de que o ano ainda não terminou. Só lá em baixo, no pé da reportagem, separadas propositalmente do argumento principal da narrativa, está a informação de que já há mais R$ 13 bilhões em contratos fechados, sendo R$ 9,4 bilhões do governo federal, R$ 1,6 bilhão dos governos estaduais e R$ 1,9 bilhão das concessionárias. O sucesso é tanto que o Ministério de Minas e Energia já pensa em ampliar a meta em mais 1,1 milhão de famílias entre 2009 e 2010. (1)

Na mesma edição, a Folha relata outro retumbante “fracasso” do governo Lula. “Gastos do governo com o PAC caem 70%”. O título é de quatro colunas ocupando também o topo de página. Um gráfico de pagamentos do PAC revela investimentos crescentes ao longo do ano, exceto pequena redução em junho, e as quedas que deveriam justificar o título, em setembro e outubro.

De pronto está a desonestidade do título. Gastos só caíram nos últimos dois meses. E mais: caíram de forma brusca. A explicação está lá, escondida, no meio da própria reportagem: as chuvas de setembro e a greve dos servidores do Departamento Nacional de Infra-estrutura (DNIT) que “bloqueou pagamentos e todas as demais fases da gastos durante três semanas…” (2). Um título mais preciso seria na linha de ”greve paralisa obras do PAC”. Mas esse título não serviria ao propósito aparente de retratar um governo inoperante e incompetente.

Manipulação de números repetiu-se no título de página inteira ”Diminuem as vendas em supermercados”. O segundo parágrafo, aliás atropelado, diz que “a queda nas vendas em setembro, além de ser sazonal, ocorreu porque, em agosto, houve queda nos preços de alguns alimentos, o que resultou em alta no consumo daquele mês…”

Afinal, se em agosto os preços caíram, significa que o povo estocou, com isso comprando menos em setembro? Além dessa confusão, o jornal admite que comparou dois meses incomparáveis. Agosto teve 31 dias e cinco finais de semana. Setembro teve apenas 30 dias e quatro fins de semana. Os fins de semana concentram as idas aos supermercados para as compras maiores do mês.

Só o ajuste sazonal do número de dias de cada mês daria uma “diminuição” de 2,2% no faturamento de setembro em relação a agosto. E mais: lá adiante, em outro parágrafo, está escrito que o preço médio de uma cesta com 35 produtos caiu 1,25% em setembro, em relação a agosto. E nem consideramos ainda que setembro teve um fim de semana a menos. Portanto a queda de 5,6% no faturamento foi inferior ao que se deveria esperar pelo menor número de dias, menor número de fins de semana, e preços menores dos alimentos. O oposto do que o titulo dá a entender.

É isso que se chama inversão dos sentidos, truque que vem se tornando especialidade desse jornal. Na história do Luz para Todos o objetivo aparente é passar a idéia de um governo que não cumpre promessas e na reportagem da redução do ritmo do PAC, o objetivo é caracterizar um governo incompetente.

Há uma outra dimensão ainda mais interessante nessas manipulações: as duas reportagens saíram na véspera do evento em que o governo prestaria contas dos programas, quando o correto seria usar as informações para questionar a prestação de contas, não deixar o governo falando sozinho. Isso seria bom jornalismo. Por que o jornal se antecipou?Sua intenção aparente e nada modesta foi a de esvaziar a prestação de contas do governo. Ou seja: o jornal quis pautar a agenda nacional e/ou negar ao governo seu potencial de pautar essa agenda.

O jornal torce os fatos porque está torcendo pelos fatos, em vez de tentar retratá-los com a maior precisão e contextualização possível. A matéria do PAC é mais uma de toda uma torcida do jornal contra o programa, desde o seu início.

Já a reportagem sugerindo falsamente que o povo está comprando menos comida, além de usar como referência um dado (faturamento) que interessas apenas aos proprietários dos supermercados, faz parte de uma nova e preocupante torcida da Folha: a torcida para que a crise dos bancos chegue logo ao Brasil. Esse catastrofismo vem marcando a cobertura de toda a mídia. Mas também nisso a Folha vem se superando.

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(1) No dia seguinte, a Folha voltou ao assunto em pequena nota na qual a ministra Dilma Rousseff, diz que faltarão apenas 100 mil famílias para a meta deste ano. Ou seja o programa terá cumprido 95% de sua meta. Mesmo assim, o jornal manteve a narrativa do fracasso.

(2) Também nesse caso a Folha voltou ao assunto no dia seguinte com o titulo: “Planalto culpa greves por ritmo menor de obras.” O jornal não contesta o argumento. Ao contrário, reforça-o dizendo que “conforme o jornal informou ontem, a greve de três semanas no DNIT paralisou todas as etapas dos gastos em obras de conservação, manutenção e construção de rodovias, responsáveis pela maior parcela dos investimentos do PAC.”

* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

A Rede Globo e suas formas obtusas de lidar com perdas

Antes de o Lula assumir a Presidência da República, éramos vítimas da ditadura midiática impingida pela Rede Globo, protegida pelos mandatários que distribuíam seus sinais fartamente pelos interiores nordestinos, quando ainda o sistema de redistribuição era feito só por empresas estatais. Só dava ela.

Na realidade, os programas da Record são cópias fiéis de sua concorrente. Talvez porque o "calo" da Globo tenha contratado a maioria dos bons profissionais que estavam desempregados, ou mesmo trabalhando à margem das leis trabalhistas para a Globo, já que esta não oferece as mínimas condições de trabalho para os profissionais da imprensa.

Há tempos eu não via TV, mas, ontem (31), enquanto pensava no que escrever para este sábado de sol, fui atraído pela música do carlista Caetano Veloso “O Paí ó” se esgüelando na sala sem espectador, e fui até lá averiguar do que se tratava. Como gosto muito do ator Lázaro Ramos e o tema, coincidentemente, foi vivido por mim quando da minha curta incursão pela música na ocasião do lançamento do CD Lua Rara, resolvi assistir.

Só que, na realidade, nas entrelinhas, havia uma tentativa velada de desmoralizar os evangélicos. Ou seja, o tema nada tinha a ver com a difícil missão de se viver de arte neste país. O imbróglio se desenrolava em torno de uma nota de 50 que um pastor foi “solicitar” a uma irmã para ajudar nas despesas de um evento na Igreja.

Mesmo a irmã tendo mostrado suas dificuldades, o pastor não abriu mão de sua oferta, e citou o evangelho de Jesus Cristo quando diz: “Se quiseres vir após mim, vende tudo quanto tens, distribuí entre os pobres e segue-me”, para convencê-la.

Para conseguir o dinheiro, a irmã cobrou o aluguel de um inquilino, travesti, que cobrou de um taxista para o qual havia feito um “serviço”, que pediu emprestado a sua esposa, que pediu emprestado a dona de um tabuleiro de acarajé, que pediu ao incauto e sofrido cantor vivido no papel de Lázaro Ramos. Por fim, os 50 que o pastor foi “confiscar” serviu para pagar o aluguel de um microfone para a apresentação de uma cantora gospel.

Aqui pra nós, sem nenhuma égide aos evangélicos, achei um desagravo a uma comunidade que cresce a cada dia. Será que os comandantes da Rede Globo sabem quantos evangélicos existem neste país? Se continuarem assim, fecharão suas portas muito em breve.

Ofereço este post ao cantor gospel Paulo Roberto, e a todos os evangélicos do Brasil, que convenhamos, são em sua maioria pessoas de bem. Se são ou não enganados por "pastores" inescrupulosos, não é a TV Globo e seus programas fascistas que irão dizer.

* Carlinhos Medeiros é jornalista e editor do blog Bodega Cultural.

Violência contra mulheres incentivada pela mídia

Em Santo André, na última semana, presenciamos um caso de cárcere privado que desnudou para todo o país o machismo dos policiais e jornalistas, a irresponsabilidade dos meios de comunicação e a insensibilidade nos casos em que as vítimas são mulheres. Um homem manteve como reféns a ex-namorada e uma amiga dela porque estava inconformado com o fim do relacionamento.

O machismo, que utilizarei aqui como a concepção de mundo que considera os homens superiores às mulheres e permite que eles possam impor sua vontade a elas, deve ser combatido. Especialmente em relacionamentos afetivos, não deve haver superioridade ou inferioridade de nenhuma das partes, mas igualdade na relação. Ninguém pode tratar outra pessoa como propriedade, nem obrigá-la a se manter num relacionamento. E, em hipótese alguma, pode-se admitir que sejam cometidos crimes, com o fim de impor a vontade de uma pessoa sobre outra.

Horror e decepção

No entanto, a maioria dos casos de violência cometida contra mulheres decorre da insatisfação do homem com o término do relacionamento e a tentativa de impor sua vontade, agredindo-a para retomar a relação, ou matando-a, para que não se torne "propriedade" de mais ninguém. Quem ama não mata, já diziam as feministas alguns anos atrás; hoje podemos acrescentar: quem ama não mata, não tortura, não agride, não mutila, não mantém em cárcere privado. Qualquer defesa desses crimes, em nome de um pretenso sentimento amoroso, serve apenas para encobrir a violência contra uma pessoa que manifestou legitimamente a sua vontade de sair da relação.

No caso de Santo André, tanto as autoridades quanto os meios de comunicação agiram de forma a desculpar o criminoso, minimizando suas ações e tratando-o como um jovem trabalhador em crise amorosa. Isso não deveria apagar o fato de que estava cometendo um crime para impor sua vontade à ex-namorada. E aqui cabe uma primeira crítica à atuação dos meios de comunicação: por que não falar do horror e decepção que uma jovem de 15 anos possa estar sentindo porque o primeiro namorado dela preferiu cometer crimes para afirmar que ela é propriedade dele, e por isso ela não poderia se separar?

Típico crime de gênero

Se os jornalistas são tão ciosos em mostrar "o outro lado", especialmente quando se trata de homens-pais-de-família-honestos-trabalhadores vítimas de crimes, por que se omitiram neste caso, em que a vítima principal era uma jovem-estudante-séria-responsável com a vida toda pela frente? Temos um criminoso e temos quatro vítimas: dois homens que eram reféns e foram libertados no primeiro dia (e não tivemos mais notícias deles) e duas mulheres reféns, sendo uma delas a ex-namorada do agressor. Por que a empatia da mídia foi para o homem, e não para as vítimas mulheres? É praticamente impossível pensar em alguma explicação além de machismo, pois é óbvio que neste caso os homens foram tratados como superiores e mais importantes que as mulheres.

Apesar de a Constituição da República pregar a igualdade e vedar a discriminação, seja qual for a sua forma, o que foi visto na atuação das autoridades foi uma discriminação de gênero. As reféns, mulheres, foram ignoradas pelas autoridades (inclusive pelo Ministério Público, que sempre atua cioso dos direitos das vítimas), que procuraram manter a integridade física de um homem que estava cometendo um crime. Foram divulgadas informações de que o rapaz estava agredindo a ex-namorada durante o cárcere. Era um caso em que a atuação policial deveria ser mais incisiva, de forma a proteger as vítimas o máximo possível.

Mas a impressão passada à população foi a de que garantir a integridade física do homem era mais importante do que impedir as agressões à ex-namorada, ou impedir que uma refém já libertada voltasse ao cativeiro. O resultado também foi típico de crimes relacionados a gênero: o homem saiu ileso; uma das mulheres (a ex-namorada) morreu após ser baleada no púbis (provavelmente para garantir o argumento machista "se não é minha, não será de mais ninguém") e na cabeça; a outra mulher foi ferida no rosto e talvez precise de mais cirurgias para não ficar desfigurada.

Falas estarrecedoras

A atuação dos meios de comunicação foi uma subversão de todos os valores que devem reger a comunicação social, especialmente a dignidade da pessoa humana e a não-discriminação. Programas de televisão não respeitaram sequer a situação delicada das vítimas e interferiram, ao vivo, conversando com alguém que estava cometendo um crime. Como se a situação por si só não fosse absurda, optaram por não condenar a atitude do criminoso, tratando-o o tempo todo como se estivesse agindo corretamente. O rapaz, feliz por aparecer na televisão e tornar-se celebridade, sentiu-se estimulado e optou por estender o cárcere privado até o limite possível, que foi o desfecho trágico.

Com essa postura, os meios de comunicação interferiram nas negociações, estimularam uma inversão de valores (quem, em sã consciência, torceria por alguém que está cometendo um crime?) e agiram de forma escandalosa, violando o Código de Ética dos Jornalistas (o art.11, parágrafo II, veda a divulgação de informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em casos de crime).

Uma dessas manifestações televisivas, em especial, merece repúdio. Trata-se do programa de Sônia Abrão, no qual foi concedida extrema importância ao criminoso, com um repórter entrevistando-o ao vivo e chamando-o de "querido". Ao final da ligação, optou-se por conversar com especialistas sobre o caso. As falas de um advogado foram estarrecedoras: ele ignorou o sofrimento da refém, considerou-se otimista, pretendeu que o caso terminasse em pizza e que houvesse um casamento feliz entre vítima e carcereiro! Tamanha falta de respeito e empatia pela vítima de um crime jamais deveria ser incentivada por profissional algum, nem divulgada sem ressalvas.

Facilitando a impunidade

Todo este caso é de extremo mau-gosto, pois mantém uma situação de violência contra mulheres. Uma mulher que esteja pensando em terminar o namoro ou casamento, após acompanhar o noticiário, ficará em dúvida sobre o que fazer. O recado passado pela sucessão de acontecimentos da última semana é claro: mostra que mulheres que fazem valer sua vontade correm grande risco de serem agredidas e perderem a vida, enquanto os homens que as agrediram para impor um relacionamento se tornam estrelas de televisão e recebem toda a simpatia dos meios de comunicação.

Igualdade entre homens e mulheres pressupõe um tratamento digno nos meios de comunicação, para que não sejam perpetuados atos machistas que dificultam e desvalorizam a vida das mulheres. Porém, quando a mídia opta por valorizar um agressor de mulheres abre espaço para a manifestação de outros agressores, justificando-os e facilitando a sua impunidade, já que não são vistos como os criminosos que realmente são. Não é este o papel dos meios de comunicação em um Estado democrático de direito e o mínimo que se espera da postura dos profissionais da comunicação é compreenderem o próprio machismo, a fim de evitar futuras abordagens tão trágicas e ofensivas às mulheres quanto as do caso de Santo André.

* Cynthia Semíramis Machado Vianna é professora universitária, mestre em Direito pela PUC-MG.


Tragédia de Eloá pede a gritos controle social da mídia

Enquanto a mídia estiver acima do bem e do mal, livre de qualquer controle social civilizatório, humanizador e democrático da sociedade, estaremos sendo surpreendidos por espetáculos animalescos em que a televisão termina envolvendo-se irresponsavelmente em crimes, tal como ocorreu agora no seqüestro que terminou com a trágica morte da adolescente Eloá Cristina.

Toneladas de falsa lamentação estarão sendo difundidas pela mídia incapaz de olhar no próprio espelho e reconhecer que ela própria tem sido fator de disseminação de mensagens que cultuam a violência. No caso Eloá, as redes de TV deram um funesto passo adiante no desrespeito às normas mais básicas do processo civilizatório: pelo menos três redes de TV comunicaram-se diretamente, por telefone celular, com o assassino Lindeberg Fernandes, durante o transcurso do ato criminoso, revelando a mais absoluta irresponsabilidade e, até que se prove o contrário, com capacidade de interferir negativamente no desfecho do episódio, quando ainda estava ocorrendo uma negociação das autoridades policiais na tentativa de evitar o pior, que acabou ocorrendo.

Conforme já divulgado, a apresentadora Sonia Abraão, da Rede TV, chegou mesmo a entrevistar longamente Lindberg por celular no exato momento em que o oficial da PM tentava desesperadamente um contato telefônico com o criminoso. Resultado: o celular estava ocupado!!! Isto é de uma gravidade gigantesca!!! Quem dá o direito aos meios de comunicação de sentirem-se acima das normas da sociedade, de considerarem-se mais importantes que a própria polícia, de decretarem arbitrariamente – revelando prepotência – que mais importante que a negociação é a entrevista que faziam como o seqüestrador? Será a sacrossanta lei do "vale tudo pela audiência"? Êpa!!! Aqui se verifica a transposição apavorante do limite entre civilização e barbárie!

A TV introduz fatores fora de controle na cena do crime

A menos que a psicologia tenha desistido de tudo diante do ceticismo que tais episódios podem causar sobre a capacidade humana de avançar no processo civilizatório, é inegável que uma negociação adequada, uma persuasão na dose certa, uma palavra precisa orientada por critérios científicos podem sim sensibilizar um sujeito transtornado e até a demovê-lo de chegar às últimas conseqüências, salvando vidas em risco. Sim, há uma longa trajetória de acertos e erros nesta matéria, mas, até onde se sabe, os especialistas em saúde mental conseguem inúmeros êxitos basicamente através de técnicas de neutralização dos distúrbios destrutivos, evitando que os protagonistas de atos violentos, como o Lindeberg, cheguem às últimas conseqüências. É rigorosamente inaceitável que se despreze o legado de Freud, Adler, Reich, Jung e os progressos já alcançados na área da saúde mental pela humanidade assim em troca um pontinho a mais no Ibope. Afinal, os amigos do Lindeberg testemunharam que ele sempre foi um cara normal, boa praça, camarada, um jovem pobre de periferia enfrentando as adversidades que o capitalismo colocou à sua frente. Portanto, será que uma pessoa assim não poderia afinal ter se sensibilizado pela negociação conduzida sob orientação de psicólogos

Sim, em tese poderia, pois desconhecem-se antecedentes de conduta violenta ou anti-social de Lindeberg. Sim, poderia, mas não com as televisões, com sua capacidade de alterar o comportamento de qualquer ser humano – e é impossível negar isso – telefonando para ele, querendo entrevistá-lo "ao vivo", sabendo-se que ele tinha a televisão ligada, conforme foi informado. Como estas entrevistas interferem num sujeito que já estava completamente transtornado por um surto psicótico violento? Qual a possibilidade de que ao insuflar o seu ego, lançando-o no terreno escorregadio da "fama", transformando-o uma "celebridade", tornando ainda mais complexa a cena do crime, introduzindo fatores fora do controle da polícia, adulterando todo o processo de diálogo negociador que vinha sendo mantido com o policial encarregado, a mídia terminou por entrar em cena num crime em andamento, com entrevistadores que não são especialistas nem em segurança pública, nem em saúde mental, nem em ciências jurídicas, mas simplesmente à busca do desprezível "juro jornalístico", e por aumentar os fatores de risco das adolescentes seqüestradas?

Ainda que estas perguntas não sejam todas respondidas facilmente, terá a mídia o direito de estabelecer por decreto que ela pode colocar-se em contato direto com um sujeito que está cometendo um crime simplesmente porque para ela o furo jornalístico está acima da vida? Uma sociedade que desenvolve as tecnologias da comunicação, mas não desenvolve os instrumentos de sua humanização revela-se uma sociedade com componentes bárbaros. E revela também o risco de termos meios de comunicação tão ágeis, tão abrangentes, mas, por estarem sem controle social humanizador, capazes de ampliar a insegurança, resvalar para o papel de cúmplice de um ato criminoso na medida em que . à revelia de qualquer orientação das autoridades policiais, adentra eletronicamente a cena do crime, introduz a retro-alimentação de valores e mensagens que aprofundam o distúrbio de um seqüestrador já em transe psicótico, que passa então a ver o seu ato na tela da televisão ligada no apartamento transformado em cativeiro. Que efeitos isto pode ter na sua decisão de matar ou render-se?

Vale-tudo pela audiência, acima da vida

Com a palavra os especialistas em saúde mental, particularmente aplicada à área de segurança pública: ao se ver na tela, entrevistado por estas desastradas apresentadoras, o efeito psicótico do fato comunicativo que o torna "celebridade", não pode agravar a complexidade de seu transtorno, não pode insuflar ainda mais seus instintos violentos, não pode interferir negativamente no desfecho ao entorpecer o processo de negociação, que, afinal, sofreu várias interrupções para que as televisões, como abutres, celebrassem o seu "vale tudo pela audiência"??? Como alternativa não seria mais lógico, mais sensato, sobretudo mais humano do que espremer aquelas 100 horas de sequestro para que produza o máximo de sensacionalismo possível, simplesmente não dar nenhuma divulgação até o desfecho final do episódio? Especialmente, porque os magnatas da mídia – especialmente os do departamento comercial das TVs, de olho no Ibope minuto a minuto – sabiam que Lindeberg tinha uma TV ligada. Insufladas pelo departamento comercial as redações se agitam: "Vamos entrevistar o seqüestrador ao vivo!!!". Se isto aumentava o risco de vida de Eloá e Nayara… não era o elemento mais importante. Afinal, vale tudo pela audiência, decreta a barbárie do mercado! Mas, também as autoridades policiais sabiam desta ação irresponsável das tevês: por que não determinaram a suspensão destas entrevistas? Por que não há rigorosamente nenhum controle social sobre os meios de comunicação social no Brasil hoje se vamos acumulando tragédias desta natureza?

A mídia pode ampliar o risco de vida no desfecho de um seqüestro. No sul também já houve um episódio assim, onde reportagem negociou com um seqüestrador tendo como pano de fundo conseguir que a sua rendição fosse aprazada por um tempo para que o fato fosse noticiado ao vivo dentro do horário do telejornal da emissora gaúcha. Quando Marx fala que ainda estamos na pré-história da civilização muitos não acreditam….

Para revelar esta barbárie basta lembrar outro carnaval televisivo de culto à violência: o caso do assassinato da menina Isabela Nardoni. No dia da reconstituição do crime, as redes de televisão transmitiram nove horas seguidas ao vivo, sem interrupções para comerciais, derrubando mesmo a grade comercial. Sim, mas igual "esforço de reportagem" não é feito para uma divulgação apropriada, equilibrada, humanizada de informações sobre a violência doméstica, pano de fundo daquele crime. Quando uma menina é assassinada alteram-se a duração dos telejornais, dos programas, derrubam-se até grades comerciais. Mas, para uma política preventiva, de humanização das relações familiares, de construção de consciência amorosa, revelando e abordando adequada e delicadamente a existência do grave problema de saúde e de segurança pública que é a violência doméstica, as tevês fazem o mais absurdo dos silêncios, aproximando-se assim da cumplicidade, pela via da omissão, por deixar de cumprir o que reza a Constituição, segundo a qual, a mídia deve ser fator de elevação educacional, cultural e civilizatória.

Espalhar terror para vender segurança….privada

Hoje a nossa mídia predominantemente "espalha terror para vender segurança". Os desenhos animados são aterrorizantes, emitem sons freneticamente agressivos, os personagens matam com a maior facilidade, as armas são os ícones mais difundidos, não são os livros, os heróis da nacionalidade. Armas têm sua imagem super divulgada como poder, prazer, ação, emoção ou simples objeto de consumo, atributo de status. Desse desfile permanente de armas na telinha depreende-se quase que uma máxima: "que sentido tem uma vida sem armas?". Talvez alguém cinicamente tente dizer que a multiplicação de empresas de segurança privada para ricos, de milícias armadas em bairros pobres e o enxugamento da segurança pública como parte da demolição neoliberal do estado não tenha nada que ver com isto tudo que estamos tratando. Foi este critério pretensioso e prepotente, sempre na linha do vale tudo pela audiência, que conduziu Tim Lopes ao seu suplício, quando a TV Globo já dispunha, com antecedência, de todas as informações sobre o risco que o repórter corria.

Mas a TV segue com o circo de horrores. Assim como, pela lógica da divulgação em tirânica abundância parece que "não tem sentido um mundo sem cerveja, sem Coca-cola, sem a velocidade dos super-carros anunciados, velocidade impossível pelos engarrafamentos de um transporte inviabilizado pelo individualismo em detrimento do coletivo". Provavelmente jovens como Lindeberg não se transformassem em criminosos se lhes alcançasse uma televisão humanizada, civilizada, que não cultue e não propagandeie a arma. Uma televisão que não realimentasse permanentemente o animalesco critério de que "eu amo tanto esta mulher que se ela não me quiser eu a mato de tanto amor". Temos uma TV machista também, temos uma TV debilóide, uma TV para brancos, para adultos, uma TV embrutecedora, destinada a vender e vender e vender, a formar consumidores, e quem não puder comprar um tênis caro é impelido a matar alguém para roubar um tênis, como ocorreu em Brasília. Afinal, a vida não tem sentido sem um desses tênis caríssimos…. Temos uma TV de erotização doentia, uma TV que nos empurra para o alcoolismo, que nos recomenda, como a Lindeberg, a intolerância e o machismo, particularmente com armas nas mãos, quando enfrentamos um angústia ou uma dor amorosa.

Que nos prepara a TV-barbárie?

Temos uma TV bárbara. E não tem que ser assim, pois há no mundo experiências de TVs que são vetores educativos, culturais, humanizadores. A TV em Cuba evita a divulgação de crimes e não há publicidade comercial. Mas divulgam-se livros, filmes, datas históricas, heróis do país e do mundo. espetáculos de balé e música clássica. Crimes não! Aqui podemos assistir desde sexo o mais vulgarizado até seres humanos espancando-se infinitamente com chutes e cotoveladas no rosto uns dos outros. Há canais para leilões de cavalos, bois, tapetes, corridas de cavalo, mas raramente há programas sobre inúmeros problemas de saúde mental para uma população carente de informação educativa, tal como pregou o presidente Lula ao determinar a criação da TV Brasil. Aliás, registre-se a sóbria e equilibrada cobertura da TV Brasil sobre a tragédia de Eloá. Este é o caminho. A televisão é uma ferramenta muito importante para estar sob o controle da lógica bárbara e anti-civilizatória do mercado, deve estar sob controle social, humanizador e democrático. Aliás, vale lembrar, as tvs que cometeram este espetáculo de barbárie no caso Eloá são as mesmas que durante anos enalteceram, recomendaram, sustentaram, sem discussão democrática, os valores do mercado como diretriz para o funcionamento da sociedade e agora, diante do enormes prejuízos que as fraudes mercadológicas especulativas causaram ao contribuinte norte-americano, podendo nos atingir, estas tevês não reconhecem o seu erro. Estão acima do bem e do mal.

É, portanto, urgente o desenvolvimento de mecanismos de controle social da mídia no Brasil. Ou, se nada for feito neste sentido, como dor e realismo somos obrigados a nos perguntar: qual será a próxima façanha da TV-barbárie? Sei que na Espanha alguns canais chegam a transmitir suicídio ao vivo…. Foi para isto que se criou a televisão?

* Carlos Alberto de Almeida é presidente da TV Cidade Livre, o Canal Comunitário de Brasília (Canal 8 da Net).

A imprensa em cárcere privado

A imprensa brasileira é refém de si mesma, de um modelo baseado nas ações rápidas e quase sempre rasteiras em busca de audiência e repercussão. Desde os blogueiros e comentadores de televisão que não resistem a frases de efeito, mesmo que suas construções representem a demolição do bom senso, até as decisões editoriais que priorizam o espetaculoso e o rumoroso. Tem sido assim na cobertura das campanhas eleitorais nas capitais mais importantes, e assim foi no acompanhamento da tragédia anunciada que culminou com a morte da jovem E.C.P.M.

O acompanhamento do noticiário online que seguiu o desenrolar dos acontecimentos no conjunto habitacional de Santo André revela que os jornais não tinham, ou desprezaram, um manual de Redação. Desde a necessidade de cuidado extremo com informações que possam colocar a segurança de pessoas em risco, citada no Manual de Redação da Folha de S.Paulo e nos de outros jornais, até a recomendação de evitar a morbidez e a "curiosidade malsã" do público nas notícias de catástrofe e violência – recomendação do livro Ética para Periodistas, de Maria Teresa Herrán e Javier Darío Restrepo – praticamente todas as boas medidas foram deixadas de lado na corrida pela visão mais espetaculosa e pela versão mais recente dos fatos.

Até mesmo de uma comentadora de fofocas de celebridades, caso da jornalista Sônia Abrão, que já teve melhores momentos quando trabalhou num dos diários do Grupo Folhas, era de se esperar que tivesse o bom senso de evitar ceder holofotes para o jovem desvairado. Àquela altura, quando a jornalista – sim, ela é jornalista com vasta experiência na imprensa escrita – colocou no ar, pela RedeTV!, a entrevista do rapaz, ele ainda ouvia ponderações dos negociadores da polícia. A partir dali, e com a seqüência de outras entrevistas, ele claramente se colocou numa atitude superior aos interlocutores, o que prejudicou o diálogo e ajudou a conduzir ao desfecho trágico.

Cenários de guerra

Não foi apenas isso. Como, claramente, o criminoso e suas vítimas tinham acesso às transmissões de rádio e televisão, tudo que foi dito – das especulações de repórteres à profusão de "análises" mais ou menos especializadas de psicólogos, sociólogos e astrólogos ávidos por publicidade – podia ser ouvido no interior do cativeiro. Nem o mais arguto conhecedor da natureza humana poderia assegurar o quanto essa exposição poderia afetar o estado do jovem, que já dava sinais de estar alucinando.

A imprensa interferiu dessa forma nos fatos, o que é absurdo e inaceitável, e também condicionou as decisões do comandante da operação de resgate. Uma das razões alegadas pelo coronel Eduardo José Félix para usar atiradores especializados para – no jargão policial – "neutralizar" o criminoso, foi a percepção de que a imprensa condenaria tal atitude. Assim, por mais controversa que viesse a ser, essa medida deixou de ser considerada, justamente por ser controversa.

Desde que a legislação transferiu para o tribunal do júri os casos de mortes em ocorrências policiais e passou a impor cursos de reciclagem para os agentes civis e militares envolvidos em tiroteios, a polícia paulista evita ações drásticas quando há testemunhas. De qualquer modo, pode-se afirmar que faltou autoridade à maior autoridade presente aos acontecimentos, porque o coronel da Polícia Militar estava condicionado às conseqüências políticas de suas decisões.

A cobertura não foi apenas invasiva, espetacularizada, amadora e irresponsável. A imprensa continua omissa, ao aceitar passivamente a versão oficial e ao deixar de colocar em discussão o tipo de operação que costuma ser mobilizada em ocasiões como essa.

Já está mais do que em tempo de se colocar em debate público as estratégias de segurança adotadas no Brasil, a maioria delas inspirada em cenários de guerra e nos procedimentos desenvolvidos pelas forças de segurança americanas e israelenses. Se a chamada "inteligência" da Polícia Militar deu sinais de desinteligência, a imprensa dita séria se tornou refém da mídia de entretenimento, colocando-se voluntariamente no cárcere privado da irresponsabilidade.

* Luciano Martins Costa é jornalista.