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Violência e controle social

Por ocasião dos 16 dias de ativismo contra a violência à mulher, trago para reflexão a influência da mídia no estímulo à violência em geral e, em particular, contra a mulher.

Certamente, seremos questionadas: o procedimento da mídia, afinal, remete mais à sedução do que à violência. Mas, lembrando Foucault, propomo-nos a apontar os mecanismos de violência sutil da produção de imagens socialmente valorizadas, que controla de forma mais eficiente do que o mando e a violência explícitos. E a presença de violência explícita, que também encontramos em suas páginas, fotos, matérias, programação etc.

Se nos concentrarmos na mídia televisiva, podemos perceber várias formas de violência, a começar pela violência da sua intensa concentração. Os especialistas se dividem sobre o número de famílias que detêm em mãos este formidável poder de decidir o que vamos ver, e o que não veremos, além da interpretação que será dada aos fatos e notícias mostrados – seis ou nove famílias concentram este poder em suas mãos.

Decorre desta violência, mais uma: a violência da usurpação de nosso direito à comunicação. O direito à comunicação é um direito humano que nos subtraem, limitando-o ao "direito" de absorvermos as informações que nos passam, sem nos permitir exercer o direito de dizer e mostrar o que pensamos, aprovamos, desaprovamos. Afinal, a comunicação é uma via de duas mãos – e não de mão única, como nos impõem.

Imposição de modelos

Mas temos também a violência explícita, que se reflete na programação e que a banaliza. Se tirarmos por uma semana os filmes baseados em violência, ficaremos praticamente sem programação filmográfica. Neles, a violência abunda e se banaliza. Gera idéias e modelos. Aumenta a tolerância a esta carga enorme que se precipita em nosso imaginário. E, cúmulo da sofisticação, por vezes chega a ser erotizada – induzindo desapercebidamente (ou não), à aceitação de relações sexuais forçadas e "romantizadas", como foi o caso do artigo do colunista Henrique Goldman, intitulado "Carta Aberta para uma Luisa", na revista Trip, que mereceu cartas de protesto que sequer foram reproduzidas, desrespeitando o direito de resposta.

Ou no noticiário, como ocorreu com o caso do seqüestro seguido de morte da Eloá, em Santo André, intensa e extensivamente explorado em forma de espetáculo, e que parece ter estimulado uma série de crimes contra as mulheres, noticiados na mesma semana.

Ou mesmo no que a Globo decidiu batizar de "merchandising social", quando foca o tema em sua teledramaturgia, como fez em algumas de suas novelas. O que entra em discussão, no caso, é o timing – um número infindável de episódios em que alguma mulher sofre impunemente violência física por parte de algum homem próximo, finalmente coroado por um capítulo em que tal violência é punida. Que valor afinal é mais promovido: a impunidade da violência contra a mulher, ou o contrário?

E temos também a violência implícita, que vem de nossa invisibilidade seletiva (nunca aparecemos com nossas demandas sociais em nossas manifestações e reivindicações, em nossos feitos e manifestações, como especialistas em questões de interesse geral, onde se prefere entrevistar tão-somente homens) e na imposição sutil e poderosa de modelos – de beleza, de comportamento, de consumo, de "felicidade", de valores, de normatização.

Termo de ajustamento de conduta

E estes modelos todos reproduzem imagens mais ou menos sutis de submissão, de manutenção de valores segregadores que já foram largamente ultrapassados pelas transformações sociais que promovemos na estrutura e no tecido social. Nos mantêm presas a uma imagem empalidecida e conservadora, prenhe de valores ultrapassados e conformistas.

A nossa diversidade e o nosso contraditório são cuidadosamente ocultados, através de exibição ad nauseam de um modelo único e repetitivo de jeito de ser e ter, que se confundem…

O impacto dessas imagens – e dessas ausências – na formação da subjetividade deixa suas marcas em uma geração de homens e mulheres.

Em nome da saúde mental e do desenvolvimento pleno e saudável da população, esta situação tem que mudar.

Temos – as mulheres e a sociedade civil organizada – promovido uma série de ações contra alguns destes abusos. Como quando a Campanha pela Ética na TV obteve o "direito de resposta", substituindo o programa de João Kleber por um mês, em que os diversos segmentos sociais ridicularizados em seu programa (mulheres, negros, homossexuais) tiveram espaço para dizer a que vieram. Ou como quando a mesma campanha conseguiu a mudança de horário do “Pânico na TV”.

Ou, ainda, quando o CLADEM e o Instituto Patrícia Galvão conseguiram um TAC – termo de ajustamento de conduta – com a Kaiser, que bancou um seminário para a discussão da imagem da mulher na propaganda, em conseqüência de suas "bolachas" espalhadas pelas mesas dos bares, com os dizeres "mulher e cerveja – especialidade da casa".

Responsabilidade social

As mulheres conseguiram, ainda, no Norte do país, a proibição da propaganda de uma oficina publicada em revista em que, sobre o rosto de mulher, de olho roxo, se lia "Está na cara que precisa de funilaria". No Sul, a ONG Themis conseguiu multa e a proibição da música "Um Tapinha não Dói".

Outras tentativas tiveram menos sucesso, mas não deixam de ser importantes. Como o processo movido pelo Observatório da Mulher contra a Skol, pela propaganda "A musa do verão", estranhamente transferida do Ministério Público Federal (depois de um ano de tramitação e de tentativa frustrada de chegar a um Termo de Ajustamento de Conduta) para o Ministério Público Estadual, onde terminou finalmente arquivado, sem que a entidade que encaminhou o processo tivesse ao menos sido ouvida.

Ou, ainda, as centenas de cartas de protesto encaminhadas ao jornal “O Estado de S. Paulo” por sua enquete – em que perguntava a que as mulheres aspiravam mais em termos de políticas públicas, se operação plástica ou outras medidas de embelezamento. Finalmente, a carta de protesto endossada por várias entidades feministas, e outras, protestando contra a matéria publicada na revista Trip, onde um articulista relatava, de forma galhofeira e romantizada, o estupro a que submeteu a empregada doméstica da casa de seus pais para a sua própria iniciação sexual (carta que a revista sequer publicou).

Nesses 16 dias de ativismo contra a violência à mulher, cabe pôr em pauta o papel da mídia na reprodução destes valores execráveis e da naturalização da violência. É mais do que hora de pensar num controle social, exercido pela sociedade civil organizada, para que a mídia efetivamente cumpra a sua função de informar e entreter, com toda a responsabilidade social que lhe cabe, tanto quando a sua propriedade é privada, como quando se trata de uma concessão pública, como no caso da rádio e da televisão.

* Rachel Moreno é psicóloga, pesquisadora e presidente do Observatório da Mulher.

Quem pode mais no PL 29?

Mexendo em casa de maribondo. Esta máxima popular, que alerta para os perigos de se envolver em algo arriscado, está perfeitamente adequada para ilustrar o texto substitutivo do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) ao projeto de lei nº 29/07 (PL 29). São tantos os atores de olho na redação final do projeto que a tramitação vai se estendendo no Congresso Nacional até tentar alcançar um texto palatável para as partes envolvidas. Porém, tal busca por consenso tende a inviabilizar possíveis conquistas da sociedade civil, perseguidas há muito tempo.

O projeto regulamenta os serviços de comunicação audiovisual social eletrônica de acesso condicionado no Brasil, hoje separados em vários instrumentos legais. Em um primeiro plano, a polaridade se dá entre o interesse público e o privado. De um lado, a sociedade civil cobra a inclusão de políticas públicas no campo da televisão paga. Já do outro, as empresas de TV por assinatura exigem liberdade de mercado; mas, paradoxalmente, temem a concorrência com as poderosas redes de telefonia fixa na disputa pelo consumidor, configurando, assim, um segundo plano de divergências.

Fomentar o audiovisual

Para análise, os dois lados podem ser representados, respectivamente, pelos posicionamentos do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC) e da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA). O FNDC cobra uma maior intervenção da sociedade no mercado, através do fortalecimento do Conselho de Comunicação Social (CCS) e da aguardada Conferência Nacional de Comunicação. Com o apoio da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), a principal reivindicação do FNDC é de que as conquistas da Lei do Cabo sejam ampliadas ou pelo menos mantidas, destacando-se, entre elas, os conceitos de rede pública e rede única.

De fato, o texto do substitutivo de Bittar não reflete o acúmulo dos movimentos sociais pela democratização da comunicação, pois, apesar do razoável diálogo com vários atores da mídia brasileira, são as empresas de telefonia e de televisão paga que acabaram se tornando as maiores beneficiadas. Com exceção de alguns avanços, o capital novamente se sobrepõe à mobilização civil, a exemplo do que ocorreu na escolha do modelo de TV digital no Brasil.

Foram justamente os poucos avanços do substitutivo que fizeram a ABTA se manifestar contra o texto. Através de um discurso neoliberal, suas considerações solicitam a retirada do projeto de qualquer menção que traga mais ônus ao serviço, como a inclusão de cotas para a produção nacional, os canais obrigatórios e o novo tributo destinado à fomentação de audiovisual: a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine).

Gigantes da economia privada

Na compreensão das empresas, o problema da falta de investimento no audiovisual brasileiro está no mau uso dos impostos pagos pelo setor privado. Segundo elas, já há arrecadação de tributos suficiente para fomentar a produção nacional, a ponto de torná-la competitiva com a realização internacional. A ABTA considera injusto cobrar mais dos capitais e obrigá-los a reservar um espaço maior para o audiovisual brasileiro no pacote de assinatura porque encarece os custos do serviço, prejudicando a expansão da TV por assinatura no país. Esta, no entanto, já vem enfrentando uma enorme dificuldade de firmar-se junto à população, a qual, em sua maioria, não reconhece valor substancial no produto.

Para piorar as perspectivas das empresas, o substitutivo também possibilita a entrada de uma terceira força na discussão, capaz de ir aonde os atuais grupos não conseguiram chegar. São as operadoras de telefonia fixa, conhecidas como teles. Economicamente superiores às empresas de televisão paga e politicamente mais influentes do que os movimentos sociais, as teles aguardam autorização do Estado para investir pesado na TV por assinatura. É provável que elas tenham mais facilidade para lidar com os desafios impostos pelo PL 29, de modo a privilegiar o seu acesso ao mercado e ameaçar o atual oligopólio.

A ABTA exige medidas preventivas que permitam iguais condições de concorrência entre as empresas do setor e as companhias de telefonia fixa. Caso contrário, ela teme a superação dos seus associados por grupos mais estruturados, tornando-os vítimas da defendida liberdade de mercado. Em termos práticos, a concentração vertical do audiovisual nas mãos da teles possibilita uma maior difusão do serviço, em virtude da alta capilaridade decorrente das operações de telecomunicações. No entanto, se isso acontecer, o Estado estará dando um enorme poder a esses verdadeiros gigantes da economia privada.

Um momento derradeiro

Para saber quem pode mais no PL 29, os brasileiros terão de esperar um pouco. O projeto, que estava prestes a ser votado na Comissão de Ciência e Tecnologia, para, em seguida, ser encaminhado ao plenário da Câmara dos Deputados, foi entregue à Comissão de Defesa do Consumidor em agosto deste ano. O novo relator do PL 29, deputado Vital do Rêgo (PMDB-PB), afirma que vai apresentar seu relatório sobre o projeto no começo de dezembro, porém sem os acréscimos de emendas, mesmo aquelas que já foram aprovadas pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, no final de 2007, ou acatadas pelo substitutivo de Bittar. Rêgo trabalhará o seu relatório somente a partir do projeto original.

O deputado petista, por sua vez, tenta fechar um acordo entre as lideranças partidárias para viabilizar a tramitação da matéria em regime de urgência. Se o acordo acontecer e o pedido for aprovado, o PL 29 passará simultaneamente pelas últimas duas comissões envolvidas, além da Comissão de Constituição e Justiça. As votações internas seriam dispensadas e os pareceres apresentados diretamente no plenário. Portanto, vive-se um momento derradeiro para a sociedade civil, as empresas de televisão paga e as teles testarem suas forças no projeto, que pode vir a ser um marco regulatório da comunicação brasileira.

Omissão da mídia sobre o acordo com o Vaticano

É grave e clamoroso o silêncio da imprensa em relação à assinatura do acordo entre o Executivo brasileiro e a Santa Sé. Como é grave a atitude de, ao dar a matéria, meramente divulgar informações oficiais do governo brasileiro ou do Vaticano, que obviamente tentam minimizar a ameaça à laicidade do Estado, que está presente. Não fosse por outro motivo, seria de se esperar atenção da imprensa, pelo vigor renovado das reações de tantos setores, a cada nova ameaça ao Estado laico.

É bom lembrar que há exatos dois anos tornou-se público que a Santa Sé pressionava o presidente Lula para assinar um acordo bilateral (tratado ou concordata), ameaçando o princípio da laicidade, o que ocasionou reações fortes e justificadas de amplos setores. Em continuidade a movimento que remonta aos primórdios da República, são pessoas de muitas e diversas origens que têm se dedicado a demonstrar e reafirmar como o princípio da laicidade do Estado é indissolúvel da democracia, como consagrado na Constituição brasileira.

Mera reprodução

Ora, a opinião pública merece respeito e à imprensa cabe cumprir seu papel de informar, em particular quando o gesto que é político – como reconhecido, em busca de seu próprio benefício, pela Santa Sé – ameaça a liberdade de consciência e de crença dos pertencentes a outros grupos ideológicos e religiosos. O silêncio da imprensa há de ser tomado como presumidamente auto-imposto, já que não se pode imaginar que tipo de pressão as partes contratantes do acordo poderiam fazer, estando, como estamos, em uma democracia.

Vale mencionar, primeiramente, que o porta-voz da Presidência da República, Marcelo Baumbach, fez anúncio da viagem do presidente a Roma, "a caminho de Washington". Era 6 de novembro, uma semana antes da data agendada para a assinatura, ou seja, com tempo apertado, porém suficiente, para explorar o anunciado. Assim, seria de se esperar o debate pela imprensa, em particular por toda a polêmica em ocasiões anteriores em que o tema veio à tona, fosse diretamente, ou por riscos a que se viu exposto o Estado laico, como no caso da pesquisa com células-tronco.

Mas houve até veículos que simplesmente suprimiram o anúncio da assinatura do acordo, mencionando apenas que, "durante o encontro, Lula e Bento 16 podem discutir temas como combate à fome, direitos humanos e solidariedade entre os povos". Outros, como o UOL, ofereceram, sem destaque, o anúncio completo: "Na reunião reservada com o papa, Lula deve assinar um tratado com o Vaticano sobre a atuação da Igreja Católica no Brasil" (ver aqui ); recortaram em particular a fala do porta-voz da Presidência: "O importante é que o acordo preserve o preceito constitucional de liberdade religiosa. Não será discutido credo, mas os direitos e deveres da entidade religiosa." Ponto final, sem críticas, "outros lados", ou quaisquer análises, mera reprodução da Agência Brasil.

Falha imperdoável

Pode-se até entender a posição do porta-voz de, no anúncio, tentar neutralizar a polêmica, buscando garantir que estariam assegurados os direitos de todos, o que ganhava relevância em face de ser a primeira vez que clara e oficialmente era assumida pelo governo a existência de negociações antigas, como dado no UOL: "Segundo Baumbach, o Brasil e o Vaticano negociam há alguns anos a redação de um documento sobre a relação entre os dois países".

É sabido que diferentes ministérios do governo federal foram chamados a se manifestar sobre a proposta do Vaticano em diferentes rodadas ao longo desses anos; ou seja, não foi gesto isolado do presidente, que bem poderia ter tido e ouvido algum de seus colaboradores a aconselhar a abertura do debate, que só teria a ganhar vindo à luz, protegendo a autoridade republicana da pressão indevida. Mas não foi assim, não sendo possível compreender como a imprensa não rastreou o processo. Sabe-se ainda que são fortes as pressões da Santa Sé reivindicando sigilo nas negociações, como chegou a ser anunciado em 2007, quando da visita do papa ao Brasil.

Por isso, não surpreende que o presidente Lula tenha sido "convidado" a assinar esse documento longe dos olhos do Brasil. Já com o presidente de Portugal havia sido usado esse artifício em 2004, para assinar, no Vaticano, em sigilo, uma concordata, lá noticiada apenas a posteriori. Essa estratégia é da Igreja Católica que, como qualquer instituição humana, procura fazer valer seus interesses; aceitá-la, é problema do governo, atitude questionável, mas do mundo da política; calar e não investigar é falha imperdoável da imprensa.

Sem ouvir nem informar

Ou seja, paradoxalmente, mesmo sob pressão, quem até tentou avisar foi o presidente – de forma limitada, no último momento, mas avisou. Por isso é impossível compreender por que a imprensa se furtou ao debate, quando houvera o anúncio por parte do Palácio do Planalto daquela agenda, ainda que de última hora. Seria o tempo para informar a opinião pública, oferecer debates, dados técnicos sobre o que são acordos bilaterais, peculiaridades da Santa Sé como Estado, a diferença entre a questão política e as questões de crença, o que poderia significar frente à ordem constitucional brasileira, em que afetaria ou não afetaria a vida da cidadania em geral etc.

Haveria a oferecer ao público o aporte do amplo arco de grupos que se mobiliza em favor da laicidade do Estado. Deixaram de ouvir fontes respeitáveis, que têm importantes e diversas contribuições a oferecer: minorias religiosas, em sua imensa diversidade no Brasil, monoteístas e politeístas, ateus e agnósticos; defensores e defensoras dos direitos sexuais e reprodutivos; movimento de mulheres e dos setores GBLTT; grupos acadêmicos dedicados ao estudo do Estado laico; associações científicas; e defensores da liberdade de expressão, para citar apenas alguns segmentos.

A representatividade e força desses setores é sua profunda heterogeneidade, sem qualquer centralização ou hierarquia, indicadora das múltiplas e diversas manifestações da pluralidade humana, base da democracia, como tanto indicaram cientistas políticos e filósofos como Arendt e Bobbio e outros. A imprensa nem se serviu dessas fontes para analisar e, antes ainda, nem informou, deixando igualmente de servir a todos e de cumprir sua missão.

Carta-manifesto

Já na ocasião da visita do papa Bento 16 ao Brasil, em 2007, a cobertura da imprensa deixara a desejar, como analisamos neste Observatório (ver "A imprensa em falta com o Brasil" ). Naquela oportunidade, a maior parte da imprensa adotou atitude que extrapolava o respeito e a atenção – naturalmente devidas – à significativa e respeitável população católica no Brasil, para adotar cobertura que ignorou a pluralidade religiosa e o caráter laico do Estado brasileiro. Ali, a imprensa foi positivamente surpreendida pelo gesto do presidente Lula, que naquele momento teve coragem para cumprir seu juramento de defesa da Constituição brasileira e reafirmou a laicidade diretamente ao papa Bento 16, dizendo que não assinaria qualquer acordo bilateral, por ser o Brasil um Estado laico. Alberto Dines destacou no OI a contradição entre uma imprensa recolhida e o presidente assertivo (ver "Catequese da mídia contraria Estado laico" ).

Não fosse por outro motivo, desta vez seria de se esperar que a imprensa perguntasse ao presidente Lula: o que mudou, em 18 meses, que tornou possível assinar o acordo? Não seria de se esperar que a imprensa pedisse acesso ao documento, antes da assinatura, para submeter a análises e confirmar, ou não, as assertivas de que não haveria riscos à separação entre Estado e religiões? Ou, no caso, riscos à separação entre o Estado e especificamente a Igreja Católica Romana, que vigora desde o início da República, por ser matéria de interesse de todos?

Ao invés disso, o silêncio auto-obsequioso foi quase total: a CBN abriu espaço para o debate antes da assinatura do acordo (com base em notícias de jornais de outros países), como alguns veículos independentes, blogueiros isolados ou de instituições. A ONG "Católicas pelo Direito de Decidir" lançou uma carta-manifesto [ver aqui] repercutida por diversas ONGs ligadas ao movimento de mulheres, e que não recebeu atenção da mídia para uma posição relevante que demonstra que entre os próprios católicos não há, felizmente, expectativa unânime de que o Estado brasileiro abdique da laicidade para se submeter a um grupo religioso.

Retrocesso, uma ameaça

Mais constrangedor ainda foi brasileiros e brasileiras precisarem consultar jornais estrangeiros, na internet, como o argentino Clarín , entre outros, que a partir do dia 9 de novembro detalharam aspectos do acordo, ouvindo fontes em geral não identificadas, trouxeram informações relativas a coletivas de que participou o presidente Lula em Roma, com o presidente italiano, em que o tema do acordo com o Vaticano foi abordado, deixando a impressão de que os veículos brasileiros sequer tinham correspondentes em Roma.

Como reagir à situação de o mundo discutir uma interpretação da vida brasileira que não teríamos jamais em vista, pelo absurdo, como a idéia de que o acordo protegeria a Igreja Católica até de mudanças na lei brasileira? Ou mesmo informações da presença de itens que, de fato, "caíram" na versão final do acordo? Ou com interpretação distinta dos termos depois anunciados, como prenúncio de próximas pressões?

Resta esperar que, já assinado o acordo, a imprensa cumpra seu dever, ainda que tardiamente, impulsionando o debate porque há ainda o que fazer. Basta ler o artigo 20, que implicitamente traz a exigência constitucional, no lado brasileiro, de que seja ratificado pelo Congresso Nacional. Que a omissão não permaneça como a marca histórica da imprensa neste momento tão crítico em que a República, em seu 119º aniversário, é ameaçada de retrocesso em séculos.

* Roseli Fischmann é professora, coordenadora da área Filosofia e Educação da Pós-Graduação em Educação da USP, autora, entre outros, de Estado Laico (Memorial da América Latina), entre outras obras, coordenadora do Grupo de Pesquisa Discriminação, Preconceito, Estigma da USP; integrou a Comissão Especial sobre Ensino Religioso, do Estado de São Paulo (1995-1996).

Regulação da publicidade: Quando o cabrito toma conta da horta

A “Folha de S. Paulo” de segunda-feira, 10 de novembro, abriu seu espaço nobre na página 3 para o secretário-executivo da ANJ, a Associação Nacional de Jornais, Antonio Athaide. Texto esperto. Critica certo tipo de publicidade, chamada por ele de “fase Caras” ou “Zeca fase” por se utilizar das celebridades da mídia nos anúncios. E aproveita para bater duro nas iniciativas que propõem o estabelecimento de algum tipo de norma para a propaganda. Ao editor da página isso não passou desapercebido tanto é que destacou do artigo a seguinte frase para chamar a atenção do leitor: “a sociedade sabe escolher o que lhe convém, sem precisar de entidades, de governo ou não, que diga o que fazer e o que comprar.” Esse é o recado do texto, enviado principalmente aos deputados e senadores, às voltas com importantes projetos de lei referentes à regulação do setor.

O artigo do secretário-executivo da ANJ não é uma ação isolada. Faz parte da ofensiva dos empresários da mídia contra as vozes da sociedade que apontam com precisão os males causados por diferentes tipos de propaganda. Com destaque para os anúncios dirigidos às crianças e aos adolescentes através da televisão. Eles são dirigidos a seres em formação ainda incapazes de diferenciar a propaganda do entretenimento. Ao banir esse tipo de publicidade em 2004, a Suécia baseou-se numa pesquisa conduzida pelo sociólogo Erling Bjurström. O trabalho conclui afirmando que “algumas crianças já aos 3 ou 4 anos de idade conseguem distinguir um comercial de um programa normal de televisão, mas somente dos 6 aos 8 anos é que a maioria consegue fazer a distinção”. Para o sociólogo, só aos doze é que todas as crianças conseguem ter uma posição crítica em relação à publicidade ou discernir concretamente sobre os seus objetivos. Portanto, todas precisam da proteção do Estado.

No Brasil nunca se fez esse tipo de pesquisa, mas acredito que, apesar de todas as diferenças culturais e econômicas existentes entre os dois países, as respostas seriam semelhantes. Há relatos de pais contando que as primeiras palavras pronunciadas por seus filhos são “mãe”, “pai” e “compra”. Situação agravada diante das brutais diferenças de renda. Os anúncios estimulam um consumo que a maioria das famílias não pode realizar. Como o caso do menino da periferia paulistana que, ao ser detido pelo segurança de um supermercado tomando um danoninho, disse estar apenas querendo sentir o gosto desse produto tão anunciado na televisão.

Há no meio publicitário uma posição fechada contra qualquer tipo de lei para o setor, defendida ruidosamente em eventos da categoria. O limite aceitável para eles é apenas o da auto-regulamentação, praticada através do Conar, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Como se fosse possível uma entidade privada regular ações de empresas particulares cuja atuação tem impacto sobre toda a sociedade. E ainda quando se trata de um organismo controlado pelos próprios agentes das possíveis irregularidades. É o mesmo que colocar o cabrito para tomar conta da horta.

A credibilidade do Conar, tão decantada pelas entidades de publicitários, é posta facilmente em dúvida. Basta ver o que diz o artigo 28 do seu código nacional: “o anúncio deve ser claramente distinguido como tal, seja qual for a sua forma ou meio de veiculação”. Ou seja, proíbe o merchandising na TV. No entanto, para ver um, basta ligar a televisão neste momento. Lá estarão os anúncios, em meio a programas de auditório, nas novelas e, o que é pior, misturados aos ídolos e heróis infantis. São apresentadoras e apresentadores que conquistam a confiança e a admiração das crianças com simpatia, bom humor e alegria, para sorrateiramente – entre uma brincadeira e outra – tornarem-se vendedores de todo o tipo de mercadoria. Nunca vi o Conar se manifestar sobre essa prática, incompatível com as suas próprias regras. É um exemplo que mostra, de forma clara, como são falaciosas as defesas da auto-regulamentação.

Como concessões públicas, outorgadas pelo Estado em nome da sociedade, elas necessitam de regras precisas para o seu funcionamento. Não é justo que grupos privilegiados se utilizem do espaço público para moldar gostos, hábitos e valores de toda a sociedade, sem qualquer controle. No caso da propaganda há prioridades urgentes a serem regulamentadas. Além daquelas voltadas para o público infanto-juvenil, o mercado se utiliza do rádio e da TV para impingir remédios de eficácia duvidosa, bebidas alcoólicas em qualquer horário embaladas por cenas de sucesso pessoal, para não se falar dos alimentos pobres em nutrientes e ricos em gorduras, sais e açúcares, responsáveis, entre outros danos, pelo aumento da obesidade em grande parte da população.

A ofensiva dos publicitários reflete o atraso cultural e político do Brasil em relação às nações com longa história democrática. Nelas essa discussão está superada. Tratam agora apenas do tipo de propaganda que deve sofrer restrições e qual o grau de controle que o Estado deve exercer. No caso daquelas dirigidas a crianças e adolescentes, temos desde o banimento total adotado pelos países nórdicos à regulamentações sobre horários e formas de anúncios encontradas no Reino Unido, Canadá, Japão, Alemanha, Austrália e Estados Unidos, entre outros países. Por aqui, ainda estamos muito longe disso. E artigos, como o publicado pela “Folha”, mostram a disposição que os empresários da mídia têm para retardar ao máximo o avanço do processo civilizatório brasileiro.

* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). É ouvidor-geral da Empresa Brasil de Comunicação.


Investigações e vazamentos: Como desqualificar a função da imprensa

O que ocorre neste momento nos escalões superiores dos órgãos de segurança (PF e ABIN) pode ser adjetivado como kafkiano – pesadelo, exacerbação do absurdo. No entanto, a qualificação mais apropriada para este episódio também deriva do nome de um gênio da literatura: dantesco.

Sob o ponto de vista institucional, político e funcional o Brasil vive um inferno. Verdadeiro caos. Com a Polícia Federal investigando simultaneamente a própria Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN, órgão da Presidência da República), o menos que se pode dizer é que estamos às vésperas de uma perigosa ruptura, estimulada por um lado pela vaidade de magistrados do Supremo Tribunal Federal e, por outro, pelas habituais trapalhadas do Ministério da Justiça.

O pecado original começa na imprensa. Em primeiro lugar porque no início da Satiagraha nossos jornalões se comportaram de forma irresponsável, divulgando sem qualquer suporte investigativo os primeiros relatórios produzidos pelos encarregados da operação policial. Aquilo não foi vazamento, foi inundação criminosa. Um telejornalismo que só se movimenta com dicas de policiais produz no máximo reality-shows e encenações.

Sob a ótica do jornalista, vazamentos são legítimos desde que os seus teores sejam devidamente checados antes da publicação. Sob a ótica do governo é legítimo investigar os funcionários – de qualquer escalão – que vazam para a imprensa informações sigilosas. Este confronto de legitimidades só conseguirá ser esclarecido através do debate.

Sem esclarecer

Quando estourou a operação Satiagraha, colaboradores deste Observatório da Imprensa repudiaram as práticas que colocam os jornalistas na condição de meros caudatários e subordinados dos órgãos policiais. Nenhum veículo, nenhum jornalista, nenhum opinionista teve a coragem de aproveitar a deixa para discutir com serenidade os procedimentos que desqualificam a função da imprensa.

O segundo pecado da mídia consiste em manter na penumbra a deplorável situação em que se encontram hoje os órgãos de segurança. O noticiário desses dias não é "holístico", mas apenas incidental.

A situação não é nova. Descende do Dossiê Vedoin, comprado de chantagistas para ser infiltrado no semanário IstoÉ. A PF mostra-se rigorosamente "republicana" quando sua comprovada eficiência não ameaça figuras do governo e dos partidos do governo. Quando seus investigadores farejam trapalhadas nas altas esferas, num passe de mágica evapora-se a sua competência e a PF passa a comportar-se de forma tosca e provinciana.

A partir do momento em que o então diretor-geral da PF Paulo Lacerda foi transferido para ABIN, e o então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos confessou publicamente a existência de um diário guardado num cofre que só seria aberto dentro de algumas décadas, evidenciou-se que a verdade estava sendo omitida.

A dramática trapalhada de agora é apenas a continuação da outra, a dos aloprados, que tão cedo não será esclarecida. Sobretudo porque nossa imprensa só chega à verdade através de vazamentos.

* Alberto Dines é editor-responsável do Observatório da Imprensa.