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A mídia em debate: a necessidade de uma nova imprensa

O deputado federal Ciro Gomes (PSB) foi certeiro ao definir a importância do holofote no comportamento político da oposição, em entrevista concedida à revista Imprensa, em dezembro de 2005. Em meio a crises que pareciam anunciar novos retrocessos político-institucionais, o então ministro da Integração Nacional diagnosticou com precisão: “eu participo da vida pública brasileira há 30 anos e é a primeira crise pautada por garotos alucinados por aparecer na televisão. E eles estão tocando a República! Eu acompanho a CPI, vejo parlamentares que olham para a câmera e dizem: "senhor presidente, senhores deputados, senhores depoentes e senhores telespectadores"! O que é isso? Os excessos são mais prováveis, pois há uma sensação de que as informações são descartáveis. Só que não é bem assim, há valores imateriais fundamentais em jogo e eu gostaria de ressaltar aqui a importância da linguagem".

Dois anos se passaram, os atores fizeram novas oficinas, ensaiaram textos no plenário, armazenaram informações, mas, a julgar pelos resultados, a teatralização da política não logrou os resultados esperados. A construção de representações sociais dominantes não obteve o êxito habitual. A velha mídia não descobriu o novo público. E foi aí que começou a história de sua coleção de derrotas.

Alguma fratura travou o espetáculo. Ao contrário das últimas décadas, produções como o " Mensalão", " Aloprados" e " Apagão Aéreo" se tornaram, passado o impacto inicial, fracassos de crítica e de público. Organizaçôes Globo, Civitas, Mesquitas e outros barões da imprensa brasileira parecem não ter acertado a mão, e o resultado são melancólicos folhetins sem qualquer vestígio de arte. Farsas baratas para produções que exigiram vultuosas somas e transformismos colossais.

Péssima direção e elenco de baixíssimo nível? Certamente, mas isso não é tudo. Nem sempre basta a imagem como critério da história. Às vezes, a trama, por mais recurso visuais que disponha, requer retórica convincente. Sem ela, inexiste a legitimação que precede o êxtase, e o plano que oculta o golpismo latente das elites se torna se torna visível demais.

A crença em um desmesurado poder manipulatório da mídia revela indigência de análise. O espetáculo só é possível porque a produção simbólica não se esgota em seu campo. Como destaca Silverstone, a circulação de significados, sua rica intertextualidade, não faz do senso comum um alvo passivo de versões deliberadamente distorcidas. Ele também produz, significa a partir de mediações da sua própria vida concreta. Não auscultar seu cambiante sistema simbólico custa caro aos pretensos “formadores de opinião”.

Em suma, o êxito de qualquer projeto ideológico depende de profunda afinidade eletiva entre produtores-consumidores e consumidores-produtores de bens simbólicos. Sem troca não há fluxo eficaz. O que a grande imprensa ignorou – e parece continuar ignorando – é a crescente organização da sociedade civil. Sua capacidade de não só recusar a narrativa oferecida, como construir uma eficiente articulação contra-hegemônica. A mídia se perdeu de si mesma quando acreditou que seus estatutos de verdade eram imunes a qualquer alteração substantiva da formação social onde pretende interferir.

Cabe ao campo democrático-popular não alimentar ilusões. Se os meios de comunicação são fatores centrais e constitutivos de uma nova esfera pública em formação, não se deve esperar conversões éticas de uma imprensa cuja estruturação está umbilicalmente ligada ao destino de conhecidas oligarquias. Trabalhar com contradições internas do campo comunicativo existente é uma aposta fadada ao fracasso. Com a experiência acumulada em veículos como Carta Maior, Caros Amigos e Brasil de Fato, entre tantos outros, talvez tenha chegado a hora de investir em um grande jornal de esquerda. Como viabilizá-lo operacionalmente não cabe no espaço desse artigo, mas com a massa crítica acumulada já passou da hora. Essa é a questão central da democracia brasileira. Precisamos inventar a imprensa democrática.

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.

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‘Sem-mídia’ se manifestam em frente à Folha

Manifestação por mais liberdade de imprensa no Brasil denuncia cartelismo editorial da mídia conservadora. Manifestantes prometem que esse só foi o primeiro passo de uma longa caminhada.

Cidadãos brasileiros de variados matizes ideológicos e partidários, vindos de várias regiões e cidades do país eagrupados em torno de um movimento auto-intitulado 'MSM – Movimento dos Sem Mídia' realizaram, na manhã desse sábado, 15/09, uma manifestação política singular em frente ao prédio do jornal Folha de S.Paulo.

Uma manifestação de caráter político – mas que se pretende político com 'P' maiúsculo. Um ato que -, garantem os seus organizadores e participantes – reivindica e cobra, sobretudo e essencialmente, a observância de princípios básicos em defesa da cidadania e do bom jornalismo – aquele tipo de jornalismo que tem compromisso apenas com o pluralismo e com verdade factual e que, há muito, não é praticado nas redações da grande mídia.

Foi uma iniciativa de Eduardo Guimarães, um velho conhecido de jornalistas, ombudsmans e editores dos espaços destinados aos leitores em blogs, sites, revistas e jornais – dizem que Clóvis Rossi, atormentado pela marcação cerrada de E.G., um dia exasperou-se e disse-lhe que iria mandar-lhe de presente uma camisa-de-força. A sua luta solitária, aos olhos de alguns, era sinal de 'insanidade'. Todos sabemos que, na nossa cultura, a diferença é sempre enquadrada como 'loucura', numa tentativa ardilosa de domar ou anular o diferente. Guimarães, e pude conferir isso pessoalmente, não tem nada de 'desmiolado'.

O pequeno homem contra o gigante da mídia é hoje (re)conhecido pela sua saga obstinada, quase quixotesca, na defesa de um jornalismo plural, que atenda, principalmente, aos interesses dos leitores, e não às pressões e demandas de partidos políticos, governos ou grupos econômicos. Esse ato em frente à Folha, parece ter sido, finalmente, um gesto corajoso, de impacto e desdobramentos imprevisíveis. No que parece ter sido um peremptório 'basta!' dado por Guimarães e pelos que, de modo desinteressado, estão ao seu lado nessa empreitada .

Guimarães não é ligado a partidos políticos, igrejas, sindicatos ou movimentos sociais. Não que haja algum demérito em ser ligado a algumas dessas instituições, claro. Mas isso parece tornar mais 'puro' o movimento capitaneado por ele – pelo menos na avaliação de alguns de seus integrantes e observadores. Ou seja, livre de tendências ou amarras ideológicas. Assim, o movimento, que ora se agrupa e organiza, não poderá ser acusado de servir ao partido X ou Y ao governo W ou Z.

No evento, que começou por volta das 10h, e, nesse momento, reunia, numa ensolarada manhã de sábado, cerca de duzentas pessoas, pude aquilatar a indignação das chamadas 'pessoas de bem’ com as imposturas da grande imprensa. Ali estavam homens e mulheres que se dispuseram a deixar um pouco de lado sua confortável e preguiçosa rotina de fim-de-semana, e se dirigiram até a rua Barão de Limeira, no centro da cidade, para manifestar sua indignação em frente 'jornalão', utilizado ali como um símbolo.

Alguns confeccionaram (e empunharam) faixas onde se podia ler, por exemplo: 'Que a mídia fale, mas não nos cale!', ou ainda, 'Abaixo a ditadura da opinião publicada. Regulação já!'. Quase todos portavam etiquetas com a inscrição 'MSM' estampada no peito, ou, 'MSM – Contra o império da mentira'. Essas 'palavras de ordem' dão indícios do que poderia ser considerado como um ideário incipiente do movimento, como suas principais reivindicações? Isso só os integrantes do 'MSM' poderão responder. Pode-se ler o manifesto do grupo, na íntegra, no blog de Eduardo Guimarães . Vale a pena.

Esse manifesto, depois de lido no megafone, foi entregue por Guimarães, por volta das 11h20, na portaria do jornal – não sem uma certa relutância e sob o olhar um tanto constrangido da jornalista Kátia Seabra, da própria Folha, que estava ali para cobrir a manifestação.

Alguns manifestantes diziam, não sem uma pitada de exagero, que estavam ali fazendo história. E que aquele era o primeiro passo de uma longa caminhada. Exageros à parte, o fato é que outros atos já estão previstos para as cidades do Rio de Janeiro e, de novo, em São Paulo. Os próximos alvos parecem ser a Globo e a Abril (a revista Veja).

(Jornalistas e colaboradores de alguns veículos da imprensa alternativa (ou quase) estavam presentes cobrindo o ato: Agência Carta Maior, Caros Amigos, Conversa Afiada, IG, dentre outros).

 

Vitória da imprensa alternativa

No dia 15 de junho passado foram encerradas as votações da segunda edição do “Troféu Dia da Imprensa”, computando-se os quase 20 mil votos, organizada pela revista Imprensa. Os finalistas haviam sido indicados por um colégio eleitoral com composição profissional diversificada, e de amplo espectro ideológico, contando com personalidades como Zilda Arns, Cristovam Buarque, Aldo Rebelo, o deputado estadual de Minas Gerais Carlos Mosconi, o prof. Wilson da Costa Bueno, Yara Perez, Eduardo Pugnali, Ricardo Viveiros.

Na categoria “Melhor página de hard news”, Carta Maior triunfou por ampla maioria, tendo obtido 64,05% dos votos. Em segundo lugar ficou a Agência Estado, com 21,56%, em terceiro, G1, com 5,66%, em quarto Uol News, com 4,96% e em quinto, Último Segundo, 3,75%. Uma vitória que dá reconhecimento ao trabalho sério, independente, crítico, da Carta Maior, competindo com sites com grande circulação comercial, sendo boicotado pela mídia oligárquica, que trata de desconhecer e mesmo sabotar o papel que a mídia alternativa tem desempenhado, cada vez mais, como espaço de construção democrática de uma informação rigorosa e pautada pela defesa ampla dos direitos da cidadania.

Animados por nosso mote inspirador, o verso do poeta espanhol Antonio Machado, “Se hace camino al andar”, e movidos pelo senso de participação de nossas leitoras e nossos leitores, que são “companheiros de caminho” ao invés de passivos receptores, nós, da Carta Maior, sabemos da contribuição relevante que a construção de uma imprensa alternativa e de fato plural tem dado para a democracia no Brasil e no conjunto da América Latina. Também agradecemos a nossos colaboradores, que têm dado todo o seu esforço para manter viva a chama de um pensamento crítico e independente em nossa página e outros veículos de comunicação.

Carta Maior está em excelente companhia: Carta Capital triunfou como a melhor revista semanal de informação, com 75,01% dos votos. Veja vem num longinquo segundo lugar, com 18,69%, Época em terceiro, com 3,79% e Isto É em quarto, com 2,51%.

Como melhor blogue jornalístico, venceu outro espaço alternativo: Luis Nassif, com 65,85% dos votos, seguido de longe por Noblat, com 21,07%, Josias de Souza, 8,54%, Alon, com 3,74% e Fernando Rodrigues, com 0,80%.

Em outra demonstração da busca de alternativas, Leitura Dinâmica, com 33,72%, e o Jornal da Band praticamente dividiram o primeiro lugar de melhor telejornal, com 33,72% e 33,21% dos votos, respectivamente. O Jornal da Record veio a seguir com 14,05%. Em quarto ficou o Jornal Nacional, com 10,96%, depois o Jornal da Globo, com 4,08% e a seguir o Jornal das Dez, da Globo News, com 3,98%. O Bom Dia Brasil sequer entrou na seleção.

Na melhor página de notícias, o IG triunfou, deixando bem para trás o Uol, vindo depois o Folha Online, o Terra e a Globo.com. O resultado completo pode ser visto em www.portalimprensa.com.br.

Esta é uma vitória do conjunto da imprensa alternativa, que é preciso difundir. É necessário levar a notícia de que há algo de novo no ar, de saudável, de crítico, de vibrante, com capacidade de expressar o indispensável movimento de democratização do processo de formação e de expressão da opinião pública, em sua variedade, sem o que nunca teremos um Brasil democrático.

Parabéns Carta Capital, parabéns Luis Nassif, parabéns Carta Maior, parabéns a todos nós que estamos juntos nessa luta. A luta é de todos, a vitória também é. E agradecemos, sobretudo, aos nossos “companheiros de caminho”, leitoras e leitores que nos honram com suas solicitações, suas contribuições, suas críticas e sua presença. Continuaremos honrando nosso compromisso com a luta por liberdade e justiça social conjugadas com um desenvolvimento sustentável que potencie e não destrua as qualidades da nossa natureza

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Na América Latina, falta compromisso público às TVs

Razões para não renovar a concessão da RCTV o governo venezuelano tem de sobra. Basta ler os vários artigos publicados nesta Carta Maior. Há dados consistentes que, por si só, justificam o rompimento de qualquer contrato de prestação de serviço público. Para não ser redundante, não vou voltar aos fatos já descritos pelos demais articulistas. Cabe aqui uma análise do papel da televisão na Venezuela e, por extensão, em quase toda a América Latina. Trata-se de uma tentativa de entender as razões do alarde feito em torno da decisão soberana do governo presidido por Hugo Chávez.

Ao contrário do que ocorreu na Europa, a televisão latino-americana, de forma geral, nunca teve como referência emissoras públicas fortes. Estas, quando existiram, foram sempre complementares ao modelo comercial hegemônico. Para o público, o rádio e depois a televisão se confundem com empreendimentos comerciais operados por organizações privadas, destituídas de qualquer compromisso com a prestação de serviços públicos.

Tal situação impediu que se formasse na sociedade uma massa crítica capaz de impedir as empresas de radiodifusão de se utilizarem das concessões em benefício próprio. Articulados, quase sempre, com os grupos políticos mais conservadores, os concessionários tornaram-se, na prática, atores políticos decisivos para a vida institucional dos seus respectivos países. Ocuparam os espaços de partidos e de outras organizações sociais, realizando eles próprios a intermediação entre o Estado e a sociedade. Combinaram, com sucesso, poder econômico e político.

O caso venezuelano rompe com esse padrão de dominação latino-americano. Começando pela demonstração de força feita por ocasião da frustrada tentativa de golpe de Estado de 2002 e tão bem retratada no documentário irlandês “A revolução não será televisionada”. As contribuições da mídia para golpes no continente não são novidade, mas, salvo engano, a televisão nunca havia feito esse tipo de trabalho de forma tão desabrida como ocorreu na Venezuela. O poder havia chegado à cabeça dos radiodifusores.

A reação do governo foi exemplar. Não cassou a concessão imediatamente, o que poderia ter feito, já que lhe sobravam razões. Simplesmente aguardou o final do período concedido e não renovou a outorga, ato altamente legítimo e comprovadamente legal.

Mas o período entre a prática golpista da TV e a não renovação da concessão deu ao governo o respaldo mais importante de que ele necessitava: o popular. Ao longo dos últimos anos, a comunicação alternativa cresceu e se consolidou (apesar de já ter sido decisiva para abortar o golpe de Estado) e permitiu a ampliação da massa crítica, acima mencionada. A confiança no governo, representada materialmente por ações sociais universalistas, aumentou e está servido de contraponto concreto às vazias imprecações da TV comercial.

Não é uma disputa fácil. A TV tornou-se um dos mais eficientes instrumentos de luta ao congregar em si, além dos poderes econômico e político, a força da dominação simbólica e a tem usado, particularmente na América Latina, com grande sucesso.

No Peru, nos anos 1990, o então assessor presidencial Vladimiro Montesinos foi condenado pela justiça por ter pago humoristas da TV para ridicularizarem, em seus programas, políticos da oposição. Na Venezuela, até transmissões esportivas foram usadas para atacar o presidente da República. Um importante jogador de beisebol, também chamado Chávez, quando batia na bola era saudado pelos locutores que diziam algo como: “esse Chávez sim bate na bola, não é como o outro que bate no povo”.

São exemplos de que a luta simbólica ultrapassou os limites antes demarcados de um certo respeito às figuras públicas e representativas da sociedade. Talvez esteja aí outra razão do gradativo aumento do apoio popular à decisão do presidente Hugo Chávez e da grita internacional da mídia conservadora contra ela.

Active Image reprodução autorizada, desde que citada a fonte original.

O caso RCTV e a liberdade de imprensa

Nos últimos dias, os grandes grupos midiáticos brasileiros reproduziram à exaustão textos, comentários, editoriais e matérias de rádio e televisão sobre o golpe que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, estaria desferindo na liberdade de imprensa ao não renovar a concessão pública da RCTV, um dos grandes canais de TV privados daquele país. Na verdade, nem se fala em “não renovação da concessão”, mas sim em “fechamento” do canal. Outra sutileza lingüística ocorre quando esses grupos falam, sempre de modo lateral, sobre a “suposta” participação da RCTV na tentativa de golpe de Estado contra Chávez, em abril de 2002. O uso da palavra “suposta”, neste caso, pode significar duas coisas: desinformação ou má fé. Considerando a quantidade de material disponível sobre a participação da RCTV no golpe, a primeira alternativa deve ser logo descartada. 

O papel desempenhado por jornalistas e executivos da RCTV, e de outros grandes grupos midiáticos venezuelanos foi admitido e aplaudido com orgulho pelos próprios protagonistas que hoje tentam se proteger atrás do escudo da “liberdade de imprensa”. Os mesmos agentes que produziram um bloqueio de informações, que articularam junto com os militares e empresários golpistas a tentativa de golpe, que pisotearam a Constituição venezuelana, hoje elevam seus gritos contra a ameaça à liberdade de expressão na Venezuela. São os mesmos também que apoiaram a retirada do ar da TV pública venezuelana, durante o golpe, para que a população não soubesse que Chávez não havia renunciado, mas sim preso pelos golpistas. São os mesmos que, no dia seguinte ao golpe, contavam na TV com orgulho como haviam ajudado a depor um presidente eleito pelo voto popular. Clique AQUI para ver um trecho do documentário “A Revolução não será televisionada” que mostra esse momento sublime da liberdade de imprensa. (Outros depoimentos similares podem ser vistos no site Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, que também publicou o artigo de Naomi Klein, citado a seguir). 

As mentiras da mídia venezuelana
Esses fatos não são mencionados pela mídia brasileira. Muito pelo contrário. O telejornal Hoje, da Rede Globo, por exemplo, em sua edição de 28 de maio, afirma que Chávez acusou a RCTV de fazer oposição ao governo e, por isso, teria determinado o fechamento da mesma. Nenhuma referência foi feita ao papel da emissora durante o golpe. Para contrapor esse tipo de deformação, não custa lembrar o depoimento de um ex-diretor da própria RCTV sobre a atuação da emissora durante o golpe. Em um artigo escrito ainda em 2003, intitulado “As (muitas) mentiras da mídia venezuelana, Naomi Klein, conta a história de Andrés Izarra, ex-jornalista da RCTV, que disse que a campanha que culminou com a tentativa de golpe contra Chávez em 2002 “causou tanta violência contra a informação verdadeira que as quatro redes de tevê privadas deveriam perder o direito às suas concessões públicas”. 

O currículo de Izarra não permite que ele seja “acusado” de chavismo. Ele foi ex-editor da CNN em espanhol para a América Latina até ser contratado como gerente de produção do telejornal de maior audiência do país, El Observador, da RCTV. No dia 13 de abril de 2002, escreve Naomi Klein, um dia depois que o líder empresarial Pedro Carmona assumiu o poder, Izarra pediu demissão do emprego sob condições que descreveu como “de extremo stress emocional”. A partir daí, passou a denunciar a ameaça à democracia que surge quando a mídia decide abandonar o jornalismo e assumir uma posição política onde passa a usar seu poder de persuasão “para ganhar uma guerra causada pelo petróleo”. Não custa lembrar também, neste mesmo contexto, o papel da imensa maioria da mídia dos EUA que abraçou as mentiras do governo Bush no processo de invasão do Iraque. 

Com a palavra, um ex-gerente da RCTV
Nos dias que precederam o golpe de abril, relembra ainda Naomi Klein, os maiores grupos midiáticos privados da Venezuela (Venevision, RCTV, Globovision e Televen) “trocaram a a programação regular por insistentes discursos anti-chavistas, interrompidos apenas por comerciais convocando os telespectadores a ocupar as ruas: Nenhum passo atrás. Saia! Saia! Agora!. Os anúncios eram patrocinados pela indústria do petróleo, mas as emissoras colocavam no ar como se fossem de interesse público”. Enquanto essas emissoras celebravam abertamente a “renúncia” de Chávez”, prossegue o artigo, forças pró-Chávez tentavam reagir e comunicar à população que havia sido presos e não havia renunciado. As emissoras sabiam disso mas não divulgavam. E não era por medo, como disse o produtor executivo da RCTV, David Pérez Hansen, ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. 

Em entrevista publicada nesta segunda-feira (28), ao ser indagado sobre o silêncio da RCTV e de outras emissoras sobre o golpe, Hansen diz que os jornalistas estavam com medo e sofrendo ameaças de morte. Não é o que relata o gerente de produção do principal telejornal da RCTV na época, segundo o artigo de Naomi Klein: “Izarra diz que recebeu instruções claras: nenhuma informação sobre Chávez, seus seguidores, seus ministros ou qualquer outra pessoa que de alguma forma possa ser relacionada a ele. O jornalista assistiu horrorizado enquanto seus chefes ativamente suprimiam as manchetes de última hora. Izarra diz que no dia do golpe, a RCTV recebeu uma reportagem de uma afiliada dos EUA dizendo que Chávez não havia renunciado, mas tinha sido seqüestrado e preso. A reportagem não foi ao ar. O México, a Argentina e a França condenaram o golpe e se recusaram a reconhecer o novo governo. A RCTV sabia, mas não divulgou”. 

Ainda segundo Izarra, a RCTV tinha um repórter no Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano, e sabia que o mesmo havia sido retomado por tropas leais a Chávez. Enquanto isso, a emissora transmitia desenhos animados de Tom e Jerry e o filme “Pretty Woman”. “Foi quando decidi dar um basta e fui embora”, admitiu o jornalista. Nenhuma destas informações foi divulgada pela mídia brasileira que segue tratando a participação da RCTV no golpe como “suposta” atuação. Nem o depoimento dos jornalistas das grandes emissoras de TV, revelando que o depoimento de um dos generais golpistas foi gravado na casa de um deles, parece ser suficiente para transformar a suposição em fato. O que nos leva a seguinte pergunta: e se a atuação golpista da RCTV foi um fato? A atuação de um grupo midiático em um processo golpista para derrubar um presidente eleito pelo voto popular é motivo para a não renovação de uma concessão pública? Se não é, o que seria aceitável para não renovar uma concessão? 

O assassinato de Danilo Anderson
Em novembro de 2004, o procurador da República Danilo Anderson, que investigava o golpe de Estado de 2002, foi assassinado em um atentado a bomba. A jornalista Patrícia Poleo, o empresário Nelson José Mezerhanne, o general Eugenio Añez e o advogado Salvador Romaní foram acusados como autores intelectuais do crime. Quanto à execução do atentado, as investigações da Justiça venezuelana apontaram fortes indícios de participação da Central de Inteligência Americana (CIA) e de grupos pára-militares colombianos. Filha de Rafael Poleo, proprietário do jornal “El Nuevo País”, Patrícia fugiu para Miami para evitar o julgamento. Acusada de assassinato e foragida da justiça, passou a ser tratada pela grande mídia venezuelana como uma heroína da oposição. A investigação sobre o atentado contra Danilo Anderson não mereceu destaque na mídia venezuelana e tampouco na brasileira. Uma visita ao mais famoso site de buscas do mundo, o Google, revelará quantas matérias saíram na imprensa brasileira sobre o assassinato de Danilo Anderson. O resultado é surpreendente. 

Além de ser refratária ao contra-ponto, a grande mídia brasileira (assim como a venezuelana) também o é em relação a qualquer debate sobre o tema “concessão pública” na área da comunicação. As concessões de rádio e TV, vale lembrar, não são definitivas, como ocorre com qualquer serviço público. Elas têm um prazo e critérios para renovação. Entre esses critérios, não figuram as práticas descritas pelo ex-gerente de produção do principal telejornal da RCTV: a mentira, o boicote à informação, a manipulação e a participação ativa para depor um presidente eleito. A total ausência de contra-ponto no caso da não renovação da concessão da RCTV é mais do que sintomática. Revela uma cumplicidade explícita e recheada de má-fé em relação a uma elite que tem Miami como sua capital e inspiração de vida. O recurso à bandeira da liberdade de imprensa para defender empresários midiáticos golpistas é uma piada. Uma piada que tem antecedentes na história recente do Brasil. Talvez seja a hora de resgatar investigações sobre como grandes grupos midiáticos brasileiros construíram seus impérios por meio de acordos e parcerias com a ditadura militar. Ou pedir isso também significa uma ameaça a liberdade de imprensa?

 

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