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Argentina: o longo caminho de uma lei dos meios de comunicação

Desde que iniciou o conflito que as entidades ruralistas mantém, há mais de um ano, com o governo argentino, a cada dia torna-se evidente outro conflito, que atravessa a sociedade de maneira estrutural: o sistema de meios de comunicação que temos e o papel que eles desempenham na construção das alternativas sociais, culturais, econômicas e políticas de nossa vida coletiva. Poderíamos remontar o surgimento público deste conflito a outros momentos de nossa história recente, mas há um fato importante que marcou essa disputa que os grandes meios abraçaram e trabalharam em cadeia como nunca.

Por ocasião do feroz conflito e da investida midiática contra a política do governo pra o campo, com as implicações “desconstituintes” que muitos intelectuais destacados do país apontaram, o governo de Cristina Fernández de Kirchner decidiu finalmente apresentar um anteprojeto de lei para substituir a atual Lei de Radiodifusão do país. A lei vigente foi redigida nos tempos da última ditadura militar e várias vezes emendada pelos diferentes governos constitucionais que se seguiram, sem que isso tenha modificado de maneira substancial a matriz antidemocrática de nosso sistema de mídia. Muito pelo contrário, muitas das modificações feitas consolidaram a concentração da propriedade dos meios e a lógica mercantil para o sistema de comunicação.

A apresentação de uma nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual comporta outros dois marcos: a redação de seu conteúdo foi feito na base de consultas com os atores sociais implicados e, em boa medida, recolheu as propostas da “Coalizão por uma Radiodifusão Democrática”, integrada por organizações sociais de base, organismos de direitos humanos e meios comunitários. Por outro lado, abriu-se um processo para divulgar a nova lei para a opinião pública por meio de debates convocados tanto pelo governo como por outras instituições. No entanto, os grandes ausentes deste esforço para difundir esse tema prioritário para a democratização da sociedade são, justamente, os grandes meios de comunicação.

No debate sobre meios e cidadania, organizado pelo Departamento de Comunicação do Centro Cultural da Cooperação, realizado esta semana em Buenos Aires, a pesquisadora e professora universitária da Universidade de Buenos Aires (UBA), Lila Luchessi, observou que “a nova lei é muito positiva e é muito importante porque é a primeira vez que um governo abre um anteprojeto de lei para a discussão pública com a sociedade civil”. O jornalista do Página 12 e também professor da UBA, Washington Uranga, acrescentou que “os meios não falam dos meios,na medida em que não discutem o sistema de meios. Isso implicaria realizar processos de autocrítica que não estão habilitados neste âmbito”.

Ele continuou: “Revisemos as campanhas políticas desde a volta da democracia e busquemos juntos quais foram os debates sobre o sistema de comunicação do país: não há nenhum. Quando se discutiu isso? Nunca. Esse tema não está na agenda midiática, mas tampouco está na consciência política da sociedade. Como sociedade que se pensa democrática, deveríamos ter nos ocupado deste tema, para possibilitar o surgimento de outros meios de comunicação. É preciso garantir socialmente a existência de outros meios e isso não é algo que interesse às grandes empresas midiáticas, mas sim à cidadania e aos dirigentes políticos. Nem tudo pode ficar entregue livremente à lógica do mercado”.

A cobertura que os meios de comunicação realizaram sobre o conflito do governo com o “campo”, em torno da questão das retenções sobre as exportações agrárias, foi o detonador de várias reflexões e questionamentos em torno dos quais girou o debate, especialmente as questões relativas à manipulação da informação, à construção das agendas da mídia, e ao choque de interesses e as noções de “responsabilidade” e “liberdade de imprensa”.

Em relação ao papel dos meios e sua responsabilidade social, Uranga afirmou:

“Os meios são protagonistas e corresponsáveis dos processos políticos e sociais que vivemos. Influem no político,no econômico e no social. Vivemos em uma sociedade muito midiatizada, ou seja, em uma sociedade que transporta os debates políticos e sociais aos meios. Portanto, o sistema de meios e nós que trabalhamos nos meios temos um peso, uma relevância e uma carga de responsabilidade. Responsabilidade, inclusive, em termos de como pensar a governabilidade: quando alguém define uma manchete, quando escreve, tem que pensar sobre esse tema. Isso nos impõe certos limites à liberdade, nos dá um marco. E assumo isso quando escrevo”.

Especialista na análise da cobertura de informações políticas, Luchessi abordou o tema da transparência, da construção de agendas e da representação dos acontecimentos nos meios de comunicação de massa. “Em termos de transparência, seria importante que os meios apresentassem claramente sua posição. Se as empresas midiáticas expusessem quem são, para quem atuam, etc., seria outra coisa”, afirmou.

“Nenhum meio reflete sobre os acontecimentos; constroem a agenda em função de seus interesses e do que as empresas de pesquisa dizem sobre o que preocupa as pessoas. Como aparecem relatadas as coisas nos meios de comunicação? Na medida em que se trata de uma narrativa, é uma construção. E essa construção se realiza de acordo com determinados interesses que, em geral, não são transparentes”, agregou. Em conexão com esse tema, Uranga completou: “O espaço dos meios é um espaço público, mas de disputa simbólica pelo poder, ou seja, político. No entanto, nem todos participam desse espaço. É um cenário no qual alguns participam e outros não. Através dos meios, distintos atores sociais tentam impor um sentido comum, valores interpretativos da sociedade, que expressam uma hegemonia”.

O jornalista Eduardo Blaustein, por sua vez, fez uma análise da situação dos meios de comunicação no marco de uma contextualização mais ampla. Ele afirmou que, para além da possibilidade de uma nova lei, são muitas as condições que operam sobre o estado atual da cultura informativa: “É preciso assumir que não há respostas no curto prazo. O estado atual dos meios é uma construção de décadas, é algo que diz respeito ao estado cultural da sociedade. Não há nenhuma lei mágica. São grandes construções sociais e políticas. São evoluções culturais muito lentas. Os meios que temos também são sintomas da sociedade que somos. Ainda que muitas organizações sociais possam ter rádios a partir da nova lei, isso não vai mudar a situação dos meios da noite para o dia. A batalha não se esgota na disputa meios/contrameios. Trata-se de uma construção maior”.

Durante o debate também foram abordadas questões tais como a naturalização de representações racistas da sociedade, repetidas algumas vezes pelos “movileros”, a manipulação exercida pela editorialização e pela propagação do discurso único a partir da homogeneização produzida pela concentração midiática. Em torno dessas análises, Uranga destacou que o desafio é construir um sistema no qual haja “meios com pluralidade de vozes e de atores, que funcionem como mecanismos de representação. É preciso buscar a emergência em novos atores sociais que não são necessariamente os meios. Na medida em que existam esses novos atores, poderemos ter meios de comunicação que os possam expressar.

Não podemos pensar o processo vinculado à comunicação e à informação fora dos processos sociais e culturais; portanto, as mudanças virão de mãos dadas com mudanças políticas e culturais. Será um processo coletivo, complexo, multifacetado, uma luta do conjunto dos atores sociais e da cidadania. O futuro que quero construir depende do passo que vou dar hoje, por menor que ele seja. Esse anteprojeto de lei pode ser feito porque houve uma construção de anos de propostas e projetos alternativos. Até agora não havia condições políticas para colocá-lo sob a forma de uma lei, mas houve uma caminhada que o permitiu”.

Resta ver se o caminho iniciado pelo anteprojeto de lei e, muito antes, pelo movimento das rádios comunitárias, da imprensa livre e das organizações sociais que reclamam não só a democratização do acesso à informação, mas também que a comunicação seja entendida como um direito social que só se completará na medida em que haja uma pluralidade de vozes e participação coletiva, atinge a legitimidade social necessária para vencer aos poderosos interesses que se opõem a ele: as corporações midiáticas e o establishment (político, empresarial, social) que sempre se beneficiou de um sistema fechado às vozes dissidentes, defensor do status quo hegemônico e consolidado hoje como nunca antes.

Maria Eva Blotta é jornalista, correspondente do Democracy Now em Buenos Aires

Tradução: Katarina Peixoto

A responsabilidade social da mídia

No Brasil, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior ao trabalho da Hutchins Commission, de 1947.

Há 62 anos, em 27 de março de 1947, era publicado nos Estados Unidos o primeiro volume que resultou do trabalho da Hutchins Commission – “A free and responsible press” (Uma imprensa livre e responsável). A Comissão, presidida pelo então reitor da Universidade de Chicago, Robert M. Hutchins, e formada por 13 personalidades dos mundos empresarial e acadêmico, foi uma iniciativa dos próprios empresários e foi por eles financiada.

Criada em 1942 como resposta a uma onda crescente de críticas à imprensa, a Comissão tinha como objetivo formal definir quais eram as funções da mídia na sociedade moderna. Na verdade, diante da crescente oligopolização do setor e da formação das redes de radiodifusão (networks), se tornara impossível sustentar a doutrina liberal clássica de um mercado de idéias (a marketplace of ideas) onde a liberdade de expressão era exercida em igualdade de condições pelos cidadãos.

A saída foi a criação da “teoria da responsabilidade social da imprensa”. Centrada no pluralismo de idéias e no profissionalismo dos jornalistas, acreditava-se que ela seria capaz de legitimar o sistema de mercado e sustentar o argumento de que a liberdade de imprensa das empresas de mídia é uma extensão da liberdade de expressão individual.

Em países europeus, com forte tradição de uma imprensa partidária, no entanto, a teoria da responsabilidade social enfrentou sérias dificuldades e a doutrina liberal clássica teve que se ajustar à implantação de políticas públicas que regulassem o mercado e estimulassem a concorrência.

Responsabilidade Social

A responsabilidade social tem sua origem associada à filosofia utilitarista que surge na Inglaterra e nos Estados Unidos no século XIX, de certa forma derivada das idéias de Jeremy Bentham (1784-1832) e John Stuart Mill (1806-1873).

Nos anos pós Segunda Grande Guerra, a responsabilidade social se constituiu como um modelo a ser aplicado às empresas em geral e às empresas jornalísticas estadunidenses, em particular, e começou a ser introduzido através de códigos de auto-regulação estabelecidos para o comportamento de jornalistas e de setores como rádio e televisão. O modelo está, portanto, historicamente vinculado aos interesses dos grandes grupos de mídia.

A responsabilidade social se baseia na crença individualista de que qualquer um que goze de liberdade tem certas obrigações para com a sociedade, daí seu caráter normativo. Na sua aplicação à mídia, é uma evolução de outra teoria da imprensa – a teoria libertária – que não tinha como referência a garantia de um fluxo de informação em nome do interesse público. A teoria da responsabilidade social, ao contrário, aceita que a mídia deve servir ao sistema econômico e buscar a obtenção do lucro, mas subordina essas funções à promoção do processo democrático e a informação do público (“o público tem o direito de saber”).

Para responder às críticas que a imprensa recebia, a Hutchins Commission resumiu as exigências que os meios de comunicação teriam de cumprir em cinco pontos principais:

(1) propiciar relatos fiéis e exatos, separando notícias (reportagens objetivas) das opiniões (que deveriam ser restritas às páginas de opinião);

(2) servir como fórum para intercâmbio de comentários e críticas, dando espaço para que pontos de vista contrários sejam publicados;

(3) retratar a imagem dos vários grupos com exatidão, registrando uma imagem representativa da sociedade, sem perpetuar os estereótipos;

(4) apresentar e clarificar os objetivos e valores da sociedade, assumindo um papel educativo; e por fim,

(5) distribuir amplamente o maior número de informações possíveis.

Esses cinco pontos se tornariam a origem dos critérios profissionais do chamado 'bom jornalismo' – objetividade, exatidão, isenção, diversidade de opiniões, interesse público – adotado nos Estados Unidos e “escrito” nos Manuais de Redação de boa parte dos jornais brasileiros.

Liberdade de imprensa vs. responsabilidade da imprensa

Analistas estadunidenses consideram que a Hutchins Commision talvez tenha sido a responsável por uma mudança fundamental de paradigma no jornalismo: da liberdade de imprensa para a responsabilidade da imprensa. Teria essa mudança de paradigma de fato ocorrido?

No Brasil, certamente, os empresários de mídia continuam a defender seus interesses como se estivéssemos nos tempos da velha doutrina liberal (que, de fato, nunca vivemos). O discurso da liberdade de imprensa e da autoregulação praticado no Brasil é historicamente anterior à Hutchins Commission. Basta que se considere, por um lado, a concentração da propriedade e a ausência de regulação na mídia e, por outro, as enormes dificuldades que enfrenta até mesmo o debate de temas e projetos com potencial de alterar o status quo legal.

Um exemplo contemporâneo são as resistências – que já se manifestam – em relação à realização da 1ª. Conferência Nacional de Comunicações. As recomendações da Hutchins Commission, se adotadas pelos grupos de mídia no Brasil, representariam um avanço importante. Para nós, a teoria da responsabilidade social da imprensa permanece atual, mesmo 62 anos depois.

Conferência Nacional de Comunicação, antes tarde do que nunca

No Brasil, comunicação sempre foi um não-assunto. Contam-se nos dedos os jornais que, em algum momento, abriram espaço para uma reflexão crítica a respeito do próprio trabalho. Para o rádio e a televisão dispensam-se os dedos, não há autocrítica. Se do conteúdo informativo pouco ou nada se fala, sobre as lutas de seus trabalhadores o silêncio é total. Lembro uma campanha salarial liderada pelo Sindicato dos Jornalistas do Paraná que espalhou outdoors por Curitiba com a frase "a nossa dor não sai nos jornais". Naquela época, anos 1980, as dores de outras categorias até apareciam em algumas páginas, menos a dos jornalistas.

E os jornalistas, além das suas dores e angústias profissionais, têm muito a falar sobre a sociedade e os meios de comunicação. Muito mais do que seus patrões permitem. Claro que há jornalistas e jornalistas, como lembrou em artigo exemplar nesta página Marcelo Salles [veja aqui] . São, de um lado, os que estão comprometidos com as imprescindíveis e necessárias transformações sociais e, de outro, os ventríloquos dos que lhes pagam altos salários no fim do mês. A maioria ganha pouco, trabalha muito e tem que ficar quietinha cumprindo as pautas determinadas pelos interesses empresariais.

Essa divisão se já era bem nítida, agora escancarou-se diante da anunciada realização da Conferência Nacional de Comunicação, reivindicação histórica de vários setores da sociedade. Bastou o governo confirmar o evento, a campanha contra começou. E a ordem veio de cima, bem de cima: da associação internacional dos donos da mídia no continente, conhecida pela sigla SIP (Sociedade Interamericana de Prensa). A entidade se diz preocupada "porque os debates (na Conferência) serão conduzidos por ONGs e movimentos sociais que pretendem interferir no funcionamento da imprensa". Expressão que pode ser traduzida pelo temor diante da possibilidade de um debate mais sério e aprofundado sobre o pensamento único imposto pelos grandes meios de comunicação aos nossos países. Afinal, debates como o proposto podem conduzir a ações práticas, capazes de impor limites a esse poder incontrolado.

Do lado patronal dificilmente sairia posição diferente, afinal estão defendendo interesses de classe seculares. O triste é constatar que enquanto centenas de trabalhadores da mídia mobilizam-se em todo o Brasil a favor da realização da Conferência, uns poucos jornalistas e radialistas, agem em sentido contrário. Caso emblemático é o de um âncora e de uma repórter da rádio CBN que usaram longos minutos da programação para ecoar pelo país as posições dos seus patrões. Usavam o velho procedimento dos comunicadores populares, decodificando para grandes audiências as concepções ideológicas de quem lhes paga os salários. Esbanjando informalidade, usando a ridicularização como arma, eles levam ao ouvinte as mesmas idéias que os jornais apresentam de forma mais elaborada, nos editoriais ou nas colunas dos seus articulistas. Colaboram, dessa forma, para popularizar as idéias da classe dominante tornando-as dominantes em toda a sociedade, como já notava aquele pensador do século 19, cada vez mais atual.

Mas há resistência. Rapidamente os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal e do Estado do Rio de Janeiro foram a público repudiar a posição da SIP e dos seus porta vozes nacionais. Os jornalistas do DF através de sua entidade perguntam "O que pretendem os grandes empresários da comunicação? Pressionar o governo para retirar o apoio à Conferência, facilitando assim a manutenção intacta dos oligopólios que dominam, e que manipulam a informação, em detrimento do interesse público". E os fluminenses afirmam: "A nossa entidade não pode silenciar diante do posicionamento pouco democrático manifestado pela SIP. É preciso deixar bem claro que o patronato mente quando diz que defende a liberdade de imprensa, pois está, isto sim, defendendo de fato a liberdade de empresa, que não aceita a ampliação dos espaços midiáticos a serem ocupados pelos mais amplos setores representativos do povo brasileiro, como são os movimentos sociais".

Apesar das pressões, não há dúvida que a Conferência vai sair. Pelos estados já se realizam conferências regionais preparatórias para o encontro nacional marcado para o começo de dezembro, em Brasília. Diante do fato irreversível, as entidades patronais tentam impor suas pautas ao debate. Segundo a Folha de S.Paulo, para Paulo Tonet, da Associação Nacional de Jornais, discutir monopólio e propriedade cruzada é um retrocesso. Para ele o tema tem que ser "conteúdo nacional e igualdade de tratamento regulatório". Mais uma frase que precisa tradução: ele quer dizer que a Conferência só deve tratar dos interesses das empresas de rádio e televisão, preocupadíssimas com a entrada no mercado de radiodifusão das operadoras de telecomunicações.

E parte para o sofisma ao chamar de retrocesso a discussão em torno do monopólio e da propriedade cruzada dos meios de comunicação, sem dúvida a maior chaga existente na comunicação social brasileira. Não há como democratizá-la sem que se enfrente com determinação esse obstáculo.

O tema geral da Conferência será "Comunicação: Direito e Cidadania na Era Digital". Amplo o suficiente para caber tudo. Daí a importância da mobilização nacional, necessária para impedir que os interesses empresarias da mídia se sobreponham aos da sociedade. Conferências de outros setores, como saúde, educação e direitos humanos, por exemplo,tem sido decisivas para o encaminhamento das respectivas políticas públicas. A da comunicação não pode fugir à regra.

A campanha eleitoral de 2010 está no ar

Começou a campanha eleitoral para 2010 na TV. E a Globo, como sempre, saiu na frente. Na semana passada, o Jornal Nacional e o Jornal da Globo ignoraram solenemente a pesquisa CNT/Sensus onde Lula aparece com 84% de aprovação, um recorde histórico. Mas claro, isso não é notícia pelos critérios jornalísticos globais. Muito menos o fato da ministra Dilma Roussef ter alcançado, pela primeira vez, a casa dos dois dígitos na pesquisa de intenção de votos para a presidência. E será assim até as eleições. O que não é nenhuma novidade. Pode-se criticar a Globo por vários motivos, menos pela falta de coerência.

Desde a última ditadura, para não termos que voltar muito na história, ela sempre esteve do mesmo lado: elitista, entreguista, conservador. Apoio aos golpistas e ao regime militar, tentativa de fraudar a vitória de Leonel Brizola ao governo do Rio em 1982, boicote às diretas-já, criação da candidatura Collor, edição fraudulenta do debate entre ele e Lula em 1989, destituição de Collor e apoio a Fernando Henrique, Serra e Alckmin nas eleições seguintes.

Sobre os primeiros casos citados, muito já se escreveu mas, como eles mesmo dizem, vale a pena ver de novo. Pelo menos alguns deles.

Por exemplo, assisti – com estes olhos que a terra… – ao Jornal Nacional de 25 de janeiro de 1984, dia do comício das Diretas Já, com cerca de 300 mil pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, noticiado como uma festa pelo aniversário da cidade. Isso foi dito na abertura da matéria lida pelo apresentador no estúdio (na "cabeça", segundo o jargão do telejornalismo). Texto nunca mostrado pelos atuais funcionários da empresa, encarregados da revisão histórica do período, nas inúteis tentativas de negar o fato.

Ouvi, com estes ouvidos que terão o mesmo destino dos olhos, uma longa entrevista (mais de 15 minutos) na rádio Globo, em 1988, com o então desconhecido governador de Alagoas, Fernando Collor de Melo. Ele era apresentado ao País como o "caçador de marajás", assim chamados os funcionários públicos alagoanos detentores dos salários mais altos. Na mesma época, o Globo Repórter dedicava uma edição inteira ao mesmo tema. Começava então uma campanha eleitoral que teria seu ponto alto na edição caprichada do debate Collor-Lula, apresentada no Jornal Nacional, na véspera da eleição. A ordem do dono da empresa era taxativa: mostrar todas as intervenções positivas do seu candidato e tudo de ruim que ocorreu com o adversário. A edição competente virou o jogo. Eleito, Collor caiu logo em desgraça nos altos escalões do Jardim Botânico. Até novela foi feita para derrubá-lo e nunca protestos de rua, como o dos "caras-pintadas", foram tão bem vistos pela emissora.

Já ouço alguém dizendo: "lá vem ele com as teorias conspiratórias de sempre". Não respondo. Prefiro passar a palavra a dona Lily Marinho, viúva do dono das Globos, ditas no lançamento do livro Roberto e Lily, em 2005 e revelada na coluna de Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo : "O Roberto colocou ele (Fernando Collor de Mello, na Presidência) e depois tirou. Durou pouco. Ele se enganou". Nada mais a acrescentar.

Só resta perguntar: e depois? Como se comportou o jornalismo da Globo, e particularmente o seu telejornal de maior audiência nas eleições seguintes?

Para os dois pleitos presidenciais mais recentes (2002 e 2006) está na praça um livro-documento: Telejornalismo e Poder nas Eleições Presidenciais (Summus Editorial, São Paulo, 2008), de Flora Neves, professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina. Trabalho meticuloso, combinando uma exaustiva coleta de material (a gravação de 199 edições do Jornal Nacional) com uma sofisticada análise dos dados. Cuidados que levam a resultados indiscutíveis, excludentes de qualquer tipo de "achismo". Mostram como o principal telejornal do país manipulou a cobertura daquelas duas eleições contrariando até muitos teóricos e críticos da comunicação que chegaram a comemorar a imparcialidade da Globo nessas coberturas, opinião claramente desmentida pela pesquisa.

Vamos a alguns dados publicados no livro. Em 2002, no segundo turno, 66.66% das matérias eram favoráveis a Serra e apenas 20,0% a Lula. A autora conclui que, nesse período, "a cobertura se manteve na agenda dos candidatos, procurando pontuar o mesmo número de falas de Lula e Serra, mas com momentos ruins de Lula e momentos bons de Serra", mantendo a linha editorial iniciada na edição do debate Lula-Collor, acima mencionado.

Mas naquele ano Lula não foi o único alvo do Jornal Nacional. A pesquisa mostra como o noticiário da Globo se esforçou para derrubar a candidatura Ciro Gomes que ameaçava ir para o segundo turno, tirando José Serra da disputa. "O candidato do PPS recebeu valências (valoração dada às matérias: positiva, negativa e neutra) negativas durante quase todo o período da cobertura, destacando-se como homem truculento, de pavio curto, que fala o que pensa e só sabe criticar, além de estar envolvido com políticos corruptos", diz a autora.

Em 2006, chama atenção o quadro de valências referente às edições do Jornal Nacional veiculadas entre o início no horário eleitoral obrigatório no rádio e na TV e o primeiro turno das eleições. Vejam os percentuais de matérias positivas relativas aos principais candidatos:

Alckmin 68,57%; Cristovam 52,94%; Heloisa Helena 61,76% e Lula 16,43%.

É preciso dizer mais alguma coisa? São números que explicam a ida de Alckmin para o segundo turno e nos quais se insere a cobertura do famoso dossiê anti-petista, explorado à larga pelo Jornal Nacional.

Episódio também tratado no livro. Apesar do empenho, a Globo perdeu as duas eleições, mas mantêm-se fiel aos seus princípios. Mostra com grande antecedência que estará firme na próxima campanha presidencial, sempre do mesmo lado.

As gravações analisadas pela professora Flora Neves em 2002 e 2006 começaram a ser feitas no período que antecedeu as pré-convenções partidárias, já em pleno ano eleitoral. Diante do atual silêncio da Globo em relação à pesquisa CNT/Sensus recomendo aos interessados em analisar a cobertura das eleições de 2010 pelo Jornal Nacional, que comecem a trabalhar desde agora. Material, pelo visto, é que não vai faltar.

* Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

Conferência Nacional de Comunicação: A batalha pela Democracia

Num tipo de realidade político-social fragmentária e entrópica como esta em que vivemos hoje, cada um se achará no direito de considerar algo que lhe toca de perto como aquilo que de mais importante aconteceu no Fórum Social Mundial 2009. Mas como, na dinâmica histórica, há processos que se impõem a outros e, só por isto, o processo avança, certamente dois ou três eventos serão percebidos como aqueles que caracterizaram este Fórum. Dentre estes, sem dúvida alguma, o anúncio, pelo presidente Lula, da realização da I Conferência Nacional de Comunicação.

Lula foi muito feliz ao escolher o espaço do Fórum para fazer seu anúncio, reforçado por uma entrevista à imprensa do secretário-geral da Presidência, Luis Dulci, e por uma conversa da ministra Dilma Roussef, com lideranças do encontro. Diante dos movimentos sociais organizados, o governo, por diferentes vozes, comprometeu-se em levar à frente esta decisiva reivindicação do movimento popular.

Decisiva, por que? Porque o avanço e aprofundamento da democracia, num país como o Brasil, não será possível sem um reordenamento geral do sistema brasileiro de comunicações que favoreça à multiplicação e diversificação do poder de dizer e do direito de escolher o que ler, ver ou ouvir. O processo que ora se inicia não deverá ter por alvo simplista, enfraquecer ou desmontar o sistema comercial de comunicações, mas, sim, fomentar, fortalecer, consolidar os sistemas não-comerciais de comunicações, as publicações, emissoras, portais, sítios ou blogs que prestem serviço ao público, na sua diversidade, não sendo e não podendo, por isto, serem sustentados por anúncios publicitários, nem servirem à ideologia do mercado.

O comprometimento público do Governo com a Conferência, coloca os movimentos populares diante de uma enorme responsabilidade: fazer propostas. Já não se trata mais de lutar pela Conferência e de denunciar a enorme quantidade de absurdos legais e morais que caracterizam as comunicações brasileiras no presente momento. Existe uma infinitude de demandas reprimidas que, agora, precisarão ser ordenadas, priorizadas, sistematizadas em um projeto sólido para ser levado ao debate, seja com o campo comercial, seja com a própria sociedade. A “costura” desse projeto vai requerer um enorme esforço de negociação, de articulação, de composição, sem o quê o resultado mesmo da Conferência poderá acabar sendo a frustração de muitos.

Por outro lado, ao menos em princípio, a Conferência tem um limitador: a Constituição brasileira. A não ser que se possa avançar uma discussão que ponha em questão a própria Constituição, o debate estará subordinado aos artigos 5, inciso IX; 21, inciso XI e XII; e 220 a 224 da Constituição. Como sabemos, muitas dessas cláusulas foram modificadas durante o governo Cardoso, resultando neste atual dromedário que trai completamente o resultado de um trabalho constitucional efetivamente realizado pelo povo, através das suas muitas representações, como lembrará qualquer um que tenha estado presente às memoráveis jornadas legislativas de 1987-88.

É preciso não esquecer uma lição chave daquele processo: nas Comunicações não existe acordo. A Constituinte foi organizada de baixo para cima: subcomissões de deputados e senadores elaboravam ante-projetos setoriais específicos; estes ante-projetos eram rediscutidos e sistematizados numa comissão mais ampla, reunindo um grupo de subcomissões afins. Destas, um novo ante-projeto setorial mais abrangente subia para a Comissão de Sistematização, onde um grupo de parlamentares elaborava, respeitando os ante-projetos que lhe chegavam, o verdadeiro ante-projeto da Constituição, a ser finalmente discutido e votado por todos os constituintes, em sucessivas seções plenárias.

Na subcomissão de Comunicações, Ciência e Tecnologia, o relatório elaborado pela deputada Cristina Tavares não foi votado. Irritada com as manobras dos deputados pefelistas (hoje, os Demos), ela e a bancada democrática e popular se retiraram da sala de reuniões. O relatório aprovado foi votado apenas por um grupo de parlamentares. Na Comissão que reuniu Comunicações, Ciência e Tecnologia, Educação, Família (e outros tópicos), a briga foi ainda mais dura: sendo impossível um mínimo consenso sobre as comunicações, a Comissão simplesmente não apresentou qualquer relatório. Encerrou seus trabalhos, em função de prazos improrrogáveis, sem ter elaborado a sua proposta de projeto, inclusive nos demais tópicos. Assim, sem algum documento formal no qual pudesse se apoiar, a Sistematização pôde recuperar o ante-projeto de Cristina Tavares e inseri-lo, com algumas capciosas mudanças, no texto constitucional final.

Uma dessas mudanças, enviava para o artigo 21, que trata das “competências da União”, o ordenamento básico da exploração dos “serviços de telecomunicações” e, separadamente, da dos “serviços de radiodifusão”. Assim, o tratamento do campo das comunicações foi segmentado em dois ramos com distintos tratamentos: telefonia, inclusive, celular, de um lado; rádio e TV, de outro. Como fica a internet? E a TV por assinatura? E a TV digital? No rigor da lei magna, ressalvada muita criatividade jurídica da qual, aliás, este país é pródigo, estão no limbo constitucional. No entanto, àquela época já se sabia que novas tecnologias digitais de informação e comunicação (TICs) estavam a caminho, e que a convergência empresarial-tecnológica (CTE) desenhava-se no horizonte. Por isto mesmo, tratou-se, já então, de separar os setores, assim se resguardando interesses cristalizados…

O outro dispositivo nascido desse conturbado processo, inventou um sistema público de comunicações, distinto do estatal e do privado – proposta esta que não se encontrava no relatório da deputada Cristina Tavares. Assim, sugeria-se que a radiodifusão não seria, em princípio, um serviço público, ainda que prestado por entidades privadas concessionárias. Ou seja, abria-se o caminho para a definitiva privatização dos recursos de comunicação, sobretudo e principalmente o espectro de freqüências, exceto aqueles que passariam a ser nominalmente “públicos”.

Como o que é estatal, em princípio, é público, e o que é público acaba, de algum modo, sujeito a algum tipo de ordenamento estatal (não se confundindo estado com governo, como muitos fazem), tem sido um problema qualificar, definir e até pôr em prática este conceito de “público”, como podemos facilmente observar na prática concreta desta TV pública criada pelo governo Lula. Alguns dizem que ela tem sido mais estatal do que pública. Ora, se é estatal, é pública. A nossa dificuldade é que nem sempre o estado brasileiro é, de fato, público…

O debate que vamos travar agora não poderá ignorar os avanços econômicos, sociais e tecnológicos dos últimos 20 anos. Entrarão na agenda questões como, por exemplo, o modelo político-econômico da recém-introduzida TV digital. Ou sobre a disseminação das redes de banda-larga de curto alcance (Wi-Fi). Ou ainda sobre as potencialidades de um regime de espectro aberto. Se é consenso social (velho) que a telefonia precisaria ser universalizada e, para isso, se necessário, subsidiada, será necessário firmar consenso social (novo) sobre a universalização da infra-estrutura de banda-larga, se necessário com subsídios. Definir a banda-larga como serviço público, mesmo que concedido a agentes privados (como, no passado, foram definidas a telefonia e a radiodifusão) já representará um grande avanço na direção do socialismo do século XXI: universalizar a telefonia significava, outrora, permitir a qualquer um conversar, por telefone, com algum outro ou outra, sempre individualmente, mas universalizar a banda-larga, logo a internet, permitirá a todo mundo dialogar com o mundo todo.

Não se espere, diante dessas amplas possibilidades, que os centros políticos de poder que servem ao capital financeiro mundializado se desfaçam, sem luta aberta, dos seus até agora exclusivos meios de controle político-ideológico da sociedade Logo, esta será a Conferência que colocará realmente em questão a essência da democracia brasileira. Ela interessa, por isto, a todos os movimentos populares, a toda a sociedade, não apenas aos intelectuais, profissionais ou militantes que há muito já se empenham nesta causa pela democratização das comunicações. Por isto mesmo, como em 1988, a batalha será muito dura.

* Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutor em Engenharia de Produção pela COPP-UFRJ e autor de “A lógica do capital-informação: da fragmentação dos monopólios à monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais” (Ed. Contraponto).