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“Na terra como na mídia estamos lidando com os mesmos problemas: a questão da propriedade”

[Título original: Reforma agrária no ar]

Para Silvio Mieli, jornalista e professor da faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), a concentração de poder nos meios de comunicação é um espelho da concentração fundiária. “Os primeiros grilaram terras públicas ou compraram terras de grileiros. Os últimos se apossaram do espectro eletromagnético por favorecimentos políticos e pelo poder econômico, ou ambos os casos.”

A opinião do jornalista soma-se às recentes manifestações pela democratização na comunicação no Brasil, como a que ocorreu no dia 15 de outubro, em frente ao hotel Renassaince, onde estava ocorrendo um encontro da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa). Na ocasião, representantes do Coletivo Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), entre outras organizações, levantaram cartazes denunciando abusos praticados por emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas.

Aliás, uma das conclusões do recente estudo do pesquisador Tiago Cubas, do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera/Unesp), “São Paulo Agrário: representações da disputa territorial entre camponeses e ruralistas de 1988 a 2009”, vai justamente nessa direção. A de que a mídia corporativa totaliza a visão das relações capitalistas no campo; daí estereotipa e não aceita sujeitos e modos de produção alternativos.

Na entrevista a seguir, Silvio Mieli analisa a atual conjuntura de luta pela democratização da comunicação no Brasil.

Brasil de Fato – Há tempos existe a violência física cometida pelo poder público ou privado sobre os sem-terras, por meio de policiais e seguranças. A cobertura mídia tradicional aborda tais ocorrências de forma tendenciosa. Por que a violência contra o pobre é tão naturalizada e até ignorada pela mídia corporativa até hoje?

Silvio Mieli – Em primeiro lugar é preciso lembrar que a mídia é ultraconservadora. O conservador acha natural que 1 bilhão de pessoas passem fome no mundo. Também passa a ser natural — e típico dos conservadores — que se use de violência contra aqueles que querem sair dessa situação. Como diz o filósofo Giorgio Agamben, a mídia gosta de pessoas indignadas, porém passivas. Os grandes jornais não terão nenhum prurido em mostrar crianças famintas num lixão qualquer da vida, mas reprovarão veementemente qualquer ação direta para corrigir essa injustiça. Ora, o mesmo modelo de concentração fundiária se espelhou para os meios de comunicação no Brasil. Os primeiros grilaram terras públicas ou compraram terras de grileiros. Os últimos se apossaram do espectro eletromagnético por favorecimentos políticos e pelo poder econômico, ou ambos os casos. É por essas e outras que o sistema é capaz de tudo quando se trata de discutir a propriedade da terra ou de um meio de comunicação. Não por acaso o slogan da democratização dos meios de comunicação nos anos 1980 era: Reforma Agrária no Ar. Na terra como na mídia estamos lidando com os mesmos problemas: a questão da propriedade, o seu uso social e quais modelos de desenvolvimento devem ser colocados em prática.

Em termos práticos, que tipo de relação existe entre os jornais locais (e os nacionais) e o agronegócio para tratar os camponeses pobres sempre de forma criminosa?

Todas as famílias que monopolizam os meios de comunicação no Brasil são (direta ou indiretamente) grandes proprietários de terra. A família Saad (grupo Bandeirantes), que recentemente também entrou no ramo da mídia impressa, é de grandes pecuaristas, Octávio Frias (pai) era um dos maiores granjeiros do país.Portanto, além do servilismo ao poder, existem interesses diretos no setor. Muitos políticos, mesmo os que se acham muito poderosos, viraram office-boys das grandes corporações. Quanto aos grandes veículos de comunicação, transformaram-se em promoters de eventos dessas grandes empresas.

Após a chamada “redemocratização” (pós-ditadura), qual tem sido o peso das mídias (locais e nacionais) no processo de naturalização da violência aos pobres e sem-terras e no entrave à reforma agrária?

Costumo dizer que a mídia não é o 4o. poder, mas o 5o elemento. Temos a água, terra, fogo, ar e… os meios de comunicação. Vivemos imersos neles. Daí a importância da qualidade do que se produz nesse meio. Mas no nosso caso brasileiro, será que podemos falar realmente de “redemocratizacão” se, dentre tantos problemas herdados da ditadura, o acesso aos meios é tão limitado ? Eis uma outra dimensão da vida nacional que vive num estado de exceção permanente. A ditadura configurou um modelo comunicacional que, mesmo findo o regime militar, continua de pé. É só pesquisar o papel da mídia corporativa nos últimos grandes embates relativos às questões ambientais e agrárias para verificar como se comportam (Raposa Serra do Sol, MP 458, Código Florestal, Belo Monte…).

O que um governo progressista ou a própria sociedade maios esclarecida poderiam fazer para pressionar esses veículos por uma comunicação mais equilibrada?

Vejamos o exemplo da pentecostalização da mídia no Brasil. Considero a invasão dos meios de comunicação por corporações que se autodenominam igrejas um dos maiores problemas contemporâneos na comunicação de massa no Brasil. Já convivíamos com uma série de outros problemas, agora temos mais essa. O que o Estado fez? Ampliou o espaço e o poder desses grupos, inclusive através de alianças político-partidárias. Entregou redes de televisão para grupos que não representam nenhuma força cultural local, agridem as tradições religiosas de matrizes africanas e fazem proselitismo do capitalismo como religião.É claro que é preciso lutar pelo controle social da mídia, mas acho que o caminho não é o de reformar o que está aí, nem de cortar as propagandas estatais. A mesma tática do MST deve ser usada na luta pela democratização da comunicação: a ocupação do espectro improdutivo (seja no âmbito social, cultural ou pedagógico, que inclusive tem respaldo constitucional). Não me refiro a ocupar os estúdios da Globo, mas, para além do espaço que o movimento social vem conquistando na internet, lutar por canais de comunicação para os movimentos. Por que não uma MSTV, uma TV do MST? Chegou a hora de os movimentos sociais falarem ao povo diretamente, sem intermediários e não só pela internet, mas também através das ondas eletromagnéticas, ou do que restou delas.

“Regulação da mídia não tem nada a ver com censura”

Atualmente, Venício Artur de Lima é colunista dos sites Observatório da Imprensa e Carta Maior. Nesta entrevista, Venício traça um panorama das políticas de comunicação e defende a importância de um novo marco regulatório para o setor. O objetivo, segundo ele, é garantir a universalização da liberdade de expressão. Em suas palavras, o conceito foi apropriado pelos conglomerados de mídia, exatamente para impedir sua plena realização.

Um dos maiores especialistas brasileiros em políticas de comunicação analisa a forte monopolização do setor em nosso país. Segundo ele, a situação é um empecilho para a consolidação da democracia e um impedimento para que várias opiniões possam se manifestar no debate público. Venício Lima aponta a saída: uma nova legislação que regulamente os artigos da Constituição referentes ao tema, levando-se em conta os avanços tecnológicos existentes desde então. E observa:”Isso não tem nada a ver com censura”.

Alguns setores da sociedade defendem a necessidade de uma nova regulação do setor de comunicações em nosso país. Mas a proposta é atacada sob o argumento de que isso significaria um controle social da mídia, com risco de resultar em censura. Qual sua opinião a respeito?

Venício A. de Lima – A expressão “controle social da mídia” entrou na narrativa da grande mídia por ocasião do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), elaborado em 2009. Desde então, o termo passou a ser frequentemente associado a intenções da gestão de Lula ou de seus apoiadores, embora sua origem venha da segunda versão do Plano, elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). A expressão “controle” é fartamente utilizada para outras políticas públicas inscritas na Constituição, como educação, saúde, assistência social, direitos dos idosos. Ela expressa um processo de descentralização da administração pública por meio da criação de conselhos com participação popular. A grande mídia satanizou a expressão e passou a identificá-la como tentativa de censura. Pergunto: em que proposta ou projeto essa expressão pode ser identificada com censura? Não existe isso.

Como isso se dá em outros países?

V.A.L. – A regulação da área não tem nada a ver com censura. Na Inglaterra, há não só um órgão estatal da radiodifusão, o Ofcom (Office of Communications), como uma agência de autorregulação, a PCC (Press Complaints Comission), que está sendo descontinuada para que surja outra com mais poder de interferência, depois do escândalo envolvendo o jornal News of the World, do grupo News Corporation [de Rupert Murdoch].

Mas por que os empresários de comunicação são contrários à regulação?

V.A.L. – Porque está em jogo a própria ideia de liberdade. E, por extensão, do conceito de liberdade de expressão. Na história brasileira, o liberalismo nunca foi democrático. Ele pensa a questão da liberdade apenas do ponto de vista da ausência de interferência do Estado. A liberdade é equacionada com a liberdade individual desde que o individuo não seja impedido de fazer o que quiser e a instituição adversária dessa liberdade é sempre o Estado. Quando você traduz isso para área de política pública, e em particular para a área dos meios de comunicação, qualquer interferência do Estado é identificada como ausência de liberdade.

A ideia de liberdade de expressão é um conceito encontrado na experiência democrática da Grécia de seis séculos antes de Cristo. Ela se realiza na medida em que há a participação do homem livre na elaboração das regras às quais ele deve se submeter. Ele é livre por participar da elaboração das regras que confirmam a sua liberdade. Não tem nada a ver com a ideia de ausência de interferência do Estado.

Qual seria a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa?

V.A.L. – A primeira associação entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa é totalmente inadequada. A liberdade de expressão aparece seis séculos antes de Cristo associada a uma capacidade de autogoverno, que hoje se aproximaria da ideia de cidadania. Já a liberdade de imprensa implica a existência da imprensa, que só aparece no final do século XV. Quando se estuda a história dos meios de comunicação, se pode ver como a ideia original de liberdade de expressão está longe dessa instituição que hoje se constitui de grandes conglomerados multimídia. O que há são as expressões das posições desses grupos empresariais. De forma nenhuma podem ser entendidas como portavozes da liberdade de expressão coletiva.

Isso muda com a internet?

V.A.L. – Sim, ela possibilita o surgimento de um espaço que pode ser acessado por qualquer um e se aproxima mais da ideia de universalização da liberdade de expressão do que a atuação de poucos grupos que fazem negócio com a atividade de mídia que reivindicam para si a expressão de uma opinião pública coletiva, a condição de representantes de uma diversidade de vozes. No caso brasileiro, na Constituição Federal, a expressão liberdade de imprensa só aparece uma vez, quando se trata da situação de Estado de Sítio. E inventaram essa da liberdade de expressão comercial, o que inclusive, do ponto de vista legal, é uma rebeldia contra a Carta de 1988. Os empresários que reivindicam esse conceito o fazem resistindo a normas constitucionais que preveem restrições à publicidade de alimentos nocivos à saúde, classificação indicativa para orientar horários de transmissão de programas e restrições à publicidade de cigarro e bebidas.

Então a regulação estaria mais associada à liberdade de expressão sob uma perspectiva coletiva?

V.A.L. – Quando você fala em regulação, no caso brasileiro, se fala em regulamentar primeiramente as normas da Constituição de 1988. A posição do governo Dilma parece ser clara em relação a isso. Os temas principais são a proibição da prática de monopólio e oligopólio e a prioridade à produção independente e regional. A segunda coisa é contemplar o avanço tecnológico imenso pelo qual passou a área depois da promulgação da Carta Magna. Esse avanço diluiu a divisão que havia entre telecomunicações e radiodifusão.

Quais os critérios para orientar a regulação?

V.A.L. – O grande critério deve ser aumentar o número de vozes que participam do debate público. Por isso, os conselhos [de comunicação social] são tão fundamentais. Eles possibilitam a ampliação da participação na gestão das políticas públicas.

As regras existentes conseguem garantir a liberdade de expressão?

V.A.L. – Para entender o modelo atual, é preciso discutir os vetos que o então presidente João Goulart havia feito ao projeto do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT). Eles foram derrubados por pressão dos empresários no Congresso, em 1962. Havia uma disputa de poder entre concessionários do serviço público e o poder concedente, vale dizer, entre o Poder Executivo e os radiodifusores. Os vencedores queriam – e conquistaram – prazos dilatados para as concessões (10 e 15 anos), renovação automática delas, ausência de penalidade (mesmo após julgamento pelo Poder Judiciário) em casos de divulgação de notícias falsas e assimetria de tratamento em relação a outros concessionários de serviços públicos – alteração da lei de mandado de segurança. A derrubada dos vetos se constituiu na espinha dorsal da regulação da radiodifusão no Brasil. Algumas dessas normas os radiodifusores conseguiram incluir na Constituição de 1988. Assim, para a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Albert), não há necessidade de novo marco. É como se nada justificasse uma mudança das regras de meio século atrás. A necessidade de uma nova regulação hoje, entre as várias razões, passa pela atualização da legislação em razão das mudanças tecnológicas.

Quais são as principais insuficiências do modelo brasileiro?

V.A.L. – A regulação atual perpetua um problema histórico da sociedade brasileira, que é a exclusão da imensa maioria da população da gestão da coisa pública. As questões básicas têm a ver com a impossibilidade da universalização da liberdade de expressão. E aí há o paradoxo: exatamente os grandes meios de comunicação, que impedem essa universalização, empunham a bandeira da liberdade de expressão.

Que mecanismos o novo marco regulatório precisa criar?

V.A.L. – É fundamental definir uma agência autônoma para a área de radiodifusão, que expresse a separação entre telecomunicações e radiodifusão. Isso existe nas principais democracias liberais do mundo. Outro ponto importante é a criação de conselhos estaduais de comunicação, como órgãos auxiliares do Poder Executivo. São fundamentais para o exercício da liberdade de expressão. Isso está previsto na Constituição em nível federal. Temos de regulamentar o Artigo 221 da Constituição, que trata da comunicação social. É preciso lutar para que as garantias do Artigo 5o também sejam incluídas. O direito de resposta é uma delas e está descoberto desde a derrubada da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal.

Se a Constituição proíbe os monopólios, como os grandes grupos de mídia constituem seu poder?

V.A.L. – Este é um dos temas mais graves: a concentração da propriedade, que passa pela questão da propriedade cruzada. Ela se forma quando um mesmo grupo num mesmo mercado é proprietário de jornal, detém concessões de rádio AM e FM e de televisão e, em seguida, passa a ter uma operadora de TV por assinatura e um portal de internet. Tanto os grupos nacionais como os regionais se formaram a partir da propriedade cruzada. No Brasil, nunca houve controle dessa prática. Uma nova regulação – a exemplo do que existe nos Estados Unidos e na Argentina – deveria prever normas que valessem com prazos para a desconstrução de monopólios já constituídos. O prazo dilatado da concessão provoca uma distorção no entendimento dos concessionários. Eles se julgam proprietários da concessão. A proprietária é a União.

A formação de redes nacionais de TV e rádio aumenta o poder dos grandes grupos?

V.A.L. – Segundo a legislação do setor, um grupo concessionário, que no limite pode ter cinco concessões na faixa VHF em todo o território nacional, exerce, pelo processo de filiação, um controle de fato sobre um conjunto enorme de emissoras. Só que a caracterização de rede não é bem definida pela legislação. Apesar do decreto 236 de 1967 apresentar uma provisão específica sobre o tema, a interpretação do órgão controlador, o Ministério das Comunicações, nunca considerou a filiação exercida pelos grandes grupos de mídia como sendo formação de rede, tanto na área de rádio quanto na de TV. Isso é um absurdo. No Brasil, a ausência de controle tem levado a formas de produção inéditas no mundo inteiro. Vamos pegar o exemplo de uma novela. Um grupo poderoso, mantém sob contrato os autores, os atores e os técnicos.

Os artistas que produzem as trilhas sonoras têm suas músicas nas novelas divulgadas pelo selo musical e pelos jornais e revistas do próprio grupo. É uma integração tanto vertical quanto horizontal completa. E isso sufoca a possibilidade de manifestação de outras vozes.

Como é a relação dos grupos de mídia com o poder político e econômico?

V.A.L. – Há um modelo tradicional de barganha política, consolidado na ditadura militar. Os coronéis eletrônicos exercem uma influência na formação da opinião pública de duas formas. A primeira é direta, porque controlam o acesso ao debate público. A segunda é indireta por impedirem eventuais concorrentes em uma disputa eleitoral de terem acesso a esse debate. Há um desvirtuamento do processo democrático, que favorece a esses grupos políticos em vez de facilitar a universalização da liberdade de expressão. Um dos pontos críticos na legislação brasileira, que favorece essa apropriação, é o artigo 54 da Constituição, que trata da presença de eleitos para cargos públicos em concessões de rádio e TV. Como o Congresso Nacional ratifica as concessões definidas pelo Executivo, existe a situação absurda de concessionários interferirem diretamente no processo de aprovação das licenças. Uma mesma pessoa é poder concedente e concessionário. Isso não pode existir.

Como o sistema político de rádio e TV opera nesse universo?

V.A.L. – A Constituição instituiu o princípio da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal. Desde a década de 1930, quando o Estado priorizou a exploração pela iniciativa privada, as concessões têm sido dadas especialmente a grupos privados. Na Carta, há a intenção de se buscar um equilíbrio entre os setores. Até há poucos anos não existia a figura de uma empresa pública, o que acontece com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). O fortalecimento do sistema público busca cumprir um preceito constitucional. Só que ele nunca foi regulamentado por completo. A EBC, com todos os problemas e os emperramentos, tem avançado. É um modelo em construção.

“Temos que implementar políticas para que todos tenham o direito de fazer TV”

O professor Valério Cruz Brittos, formado em Jornalismo e Direito, mestre em Comunicação Social e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, faleceu na última sexta-feira, dia 27 de julho de 2012, em Porto Alegre/RS. Referência internacional na revisão crítica da Economia Política de Comunicação, a partir da posição latino-americana de defesa de uma comunicação democrática, Valério Brittos deixa uma lacuna que não pode ser preenchida no cenário acadêmico e nos movimentos de luta por uma sociedade mais igualitária. Repleto de uma generosidade ímpar na troca de ideias e na construção do saber, estava sempre disposto ao debate e depositava sua fé na construção de um mundo capaz de superar as desigualdades do sistema capitalista.

Valério Brittos exercia, dentre tantas outras funções, as de professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), de vice-presidente da Unión Latina de Economía Política de la Información, la Comunicación y la Cultura (Ulepicc-Federação) e de representante no Cone Sul da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (Alaic). Esta entrevista, provavelmente a última concedida por ele, foi realizada no dia 10 de maio de 2012 no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Nela, Brittos analisa a reformulação em andamento da legislação da comunicação no Brasil, as possibilidades da televisão no contexto da convergência tecnológica e os arranjos possíveis para a construção de uma comunicação inclusiva. A entrevista a seguir é publicada como uma homenagem singela à trajetória e à contribuição de Valério Brittos para a transformação social:

A Lei 12.485/2011, que dispõe sobre o serviço de acesso condicionado, pode ser considerada um avanço para a área da comunicação no Brasil?

A legislação brasileira de televisão e de rádio, em geral, é uma legislação muito defasada. Mas considero que, dentro do quadro possível, há um processo de reformulação que vem caminhando, que estabelece que, na televisão paga, por exemplo, possamos ter uma maior concorrência. Isso aí já é positivo. Agora, é preciso deixar claro que precisamos ter uma legislação mais objetiva, que diga quem pode trabalhar com televisão aberta, quem pode trabalhar com televisão por assinatura e que estabeleça parâmetros para que o recurso para a produção independente seja de fato destinado à produção independente. E, claro, além de tudo, tem que se fazer bons canais, com maior qualidade de conteúdo também nos canais abertos, não só nos canais por assinatura, permitindo que todos tenham acesso aos mesmos. Estes canais devem observar e respeitar a diversidade cultural, com programas transmitidos em faixas horárias adequadas, com reprises programadas, mas cuja grade não tenha só reprises, e cuja multiplicidade de conteúdos transmitidos possa despertar o interesse das pessoas em assistir televisão, uma televisão de qualidade, de respeito à dignidade humana e de alguma visão crítica da realidade social.

A lei limita, mas não proíbe a possibilidade de acordos comerciais entre as empresas de telecomunicações e as empresas de radiodifusão. Elas podem se unir para dividir o mercado da televisão?
Nós vivenciamos hoje um sistema muito forte, que é o sistema de televisão por assinatura. A televisão aberta movimenta cerca de dez vezes menos dinheiro. Comparativamente, movimenta pouco dinheiro, mas ainda assim permanece também um sistema forte. Podemos dizer que quem tem poder político é o sistema aberto, mas quem tem dinheiro mesmo é a televisão por assinatura. Por outro lado, há a possibilidade de que a fusão entre estas duas pontas possa resultar em um bom serviço de televisão por assinatura, com regras efetivas de ampliação do acesso, de fomento à produção independente e regional e de respeito à pluralidade social. Isso é possível, fazer uma televisão por assinatura melhor para o Brasil, pelo simples fato de que existe uma televisão melhor do que a que temos hoje. Acho que o país está em um bom momento, praticamente em pleno emprego, e deve juntar suas forças vivas para fazer coisas boas, coisas sérias. Agora, é claro que não teremos um sistema ideal, porque continua sendo um sistema capitalista, com todas as suas desigualdades.

Para isso, é imprescindível discutir um novo marco regulatório…
Sim, mas insisto na avaliação de que o nosso marco regulatório avançou. Se eu disser que a base regulatória do ano passado é a mesma deste ano, eu vou estar faltando com a verdade. Por outro lado, é evidente também que esta base regulatória continua bastante aquém daquela que defendemos.

Quais seriam as principais medidas a serem observadas neste marco regulatório para, primeiro, garantir que um possível acordo entre radiodifusores e telecoms seja de alguma forma produtivo para a sociedade brasileira, e, segundo, para avançar em termos de legislação da comunicação?
Diria que a primeira coisa é criar uma legislação antimonopólio. Nós precisamos criar uma lei que seja desconcentradora. Não se faz comunicação plural, pelo menos no sistema capitalista, sem algum tipo de construção, de consolidação mesmo, de legislação. Mas ela tem que ser aberta e oferecer espaço para todos. Ou seja, ela deve permitir a abertura, ao mesmo tempo em que provavelmente permita algum nível de concentração para que determinados setores possam funcionar – infelizmente, o sistema é caro. A indústria criativa no Brasil é algo que pode dar muito certo. Ou não. A indústria criativa pode ser o caminho para que o Brasil consolide uma legislação que, em alguns momentos, em alguns horários, permita a concentração, e em alguns momentos se torne menos concentrada, para abrir espaço à diversidade. Nós devemos construir uma legislação que seja boa para todos os lados, para quem não quer ganhar dinheiro e também para quem quer ganhar dinheiro, porque afinal é este o objetivo do sistema capitalista. Em alguns momentos, este segundo grupo vai ganhar dinheiro, porque faz parte ganhar dinheiro. Em outros momentos, este grupo vai ter que distribuir o seu lucro, como cota de contribuição, para a produção daqueles que não estão na comunicação para ganhar dinheiro.

Nesta conjuntura de reformulação de algumas leis e necessidade de tantas outras, em um cenário de convergência tecnológica, o que se pode antecipar em termos de radiodifusão no Brasil para os próximos anos?

Eu daria o exemplo da pluritv. É um sistema de televisão que está por tudo: na televisão por assinatura, no shopping, no celular, em todo o lugar. Essa televisão acompanha as pessoas onde as pessoas estejam. Elas poderão gerar televisão e ver televisão a qualquer momento. É uma televisão que vai estar em todos os lugares.

Em termos de disputa pelo mercado de comunicação, pode-se antecipar alguma coisa para a consolidação da pluritv? As telecoms saem na frente com a pluritv e é justamente isso que pode colocar em risco a posição atual dos grandes radiodifusores?

Ainda é muito cedo, mas o que se tem acompanhado é a tendência da televisão de hoje – das pessoas assistindo as transmissões em seus lares, da programação conforme a sequência dada pelas emissoras, uma novela depois da outra, o telejornal em seguida – diminuir seu espaço cada vez mais. As pessoas vão ver televisão de forma periférica, na hora em que querem e de acordo com o seu próprio horário. A televisão passa a ser de fluxo. Não é de um dia para o outro, não é amanhã, mas com o tempo as pessoas vão ver televisão de acordo com o tempo que elas têm.

De uma forma geral, é uma televisão de conteúdo mais fragmentado…

Bastante mais fragmentado. As pessoas assistem uma parte do capítulo da novela e, daqui a pouco, podem assistir um desenho animado qualquer. Podem também assistir a um filme que não passa na tv, mas que é igual ao da televisão. A pessoa pode assistir um show e, de forma intercalada, acessar um vídeo do aniversário do filho.

Há atualmente suporte, por parte dos movimentos sociais e das instituições mais progressistas, para a ampliação do debate sobre a regulamentação da comunicação no âmbito do governo federal?

O governo Dilma Rousseff é um governo forte. Ela vem mostrando pulso forte. Na questão da corrupção, por exemplo, tem demonstrado muita firmeza. Ao mesmo tempo, ela é muito ligada ao Lula. O que é ótimo, ele é um grande líder. Mas o Lula não tem mostrado muita paixão para discutir o tema da regulamentação. A Dilma já disse, inclusive, no Congresso do PT, que o melhor é fazer o controle a partir do uso do controle remoto. Acho isso lamentável. O governo federal deveria buscar coragem para fazer esta mudança. Entretanto, o que eu vejo hoje é mais disposição para fazer pequenas mudanças, que tenham a ver, por exemplo, com o Plano Nacional de Banda Larga, e não as mudanças essenciais que devem ser feitas. O governo deveria ter coragem para enfrentar esta luta.

A tendência é trabalhar mais o aspecto puramente técnico do que o conteúdo da radiodifusão..
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Isso mesmo. O Lula fez algumas coisas. Por exemplo, criou a TV Brasil. Claro que ela por si só não resolve, porque temos que consolidar de fato um sistema público de comunicação.

A respeito do sistema público, qual é o espaço para a comunicação comunitária neste cenário de televisão digital?

O sistema de tv digital no Brasil é fraco. É um sistema moldado de acordo com a Rede Globo. E a televisão por assinatura recém começa a deslanchar. O problema é a TV Globo. Ela faz um produto de qualidade técnica, mas é muito reticente quanto a ideias novas de se fazer televisão. O Brasil precisa mudar para fazer uma televisão para o Brasil como um todo. O conhecimento de televisão não é um conhecimento sistêmico. É um conhecimento que circula em um grupo restrito, para algumas pessoas. Nós temos que implementar políticas de comunicação para que todo mundo tenha direito de fazer televisão. A Globo deve se abrir para a diversidade, até para a sua própria sobrevivência – para que no futuro ela possa ser uma televisão mais competitiva.

“Grande parte das rádios comunitárias está na ilegalidade por conta da lei”

[Título original: Regularização de rádios comunitárias é questão de vontade política]

Uma das vitórias da Cúpula dos Povos foi a união popular contra o fechamento da rádio Cúpula, no domingo, 17 de junho, dia em que a mobilização recebia seu maior público no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Presente ao episódio, o jornalista Arthur William, representante brasileiro da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), foi um dos negociadores contra a interrupção das transmissões, que por fim explicitou quão rápido uma licença pode ser emitida.

Em entrevista à Carta Maior, ele relembra o episódio para denunciar como as rádios comunitárias são oficialmente discriminadas e o quanto é necessário a mudança legal para que elas contribuam com a realidade política, social, econômica e tecnológica da democracia brasileira nos anos 2010. “E também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à comunidade e não a interesses pessoais, econômicos e políticos”, acrescenta.

CARTA MAIOR – Como foi o quase fechamento da rádio Cúpula dos Povos, durante a Rio+ 20?

ARTHUR WILLIAM – A rádio reunia diversos participantes da cúpula justamente para transmitir o que estava acontecendo para todo mundo, através da internet. E também pelas ondas de rádio através de uma frequência de FM. O processo de legalização de uma rádio comunitária demora muito no Brasil, hoje está até melhorando, mas em geral demorava 10, 20 anos, então o coletivo da rádio optou por transmitir independentemente da licença, porque era uma baixa potência e os equipamentos eram homologados.

E no domingo da Cúpula dos Povos (17/6) a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) chegou, sem nenhum documento requerendo os equipamentos, para lacrar e levar os transmissores. Devido à mobilização de todos os participantes, com um abraço a radio, a Anatel acabou se afastando do local e chamou a polícia militar para garantir a entrada deles na rádio. Aí passamos a argumentar, através de uma comissão de negociação da qual eu participei, que não era competência da polícia militar a questão de radiodifusão. E entramos em contato com o ministério das Comunicações para conseguir uma licença provisória.

O Ministério das Comunicações, entendendo a importância que a rádio tinha para o evento, conseguiu junto com a EBC (Empresa Brasil de Comunicações) uma licença experimental, temporária, para que a rádio pudesse continuar funcionando de forma legal durante a cúpula. E foi o que aconteceu, conseguimos uma licença experimental, que foi uma grande vitória do movimento, mostrando que na verdade quando se há interesse político para que uma emissora funcione, ela pode funcionar. Então a questão da radiodifusão no Brasil, das rádios comunitárias, pode ser muito melhor do que está, basta vontade política.

Como avalia a atuação da Anatel no caso?

Na reunião de negociação nós questionamos o papel da Anatel. Ela tem outras coisas muito mais importantes para fazer. O STF (Supremo Tribunal Federal) proibiu que a Anatel fizesse busca de equipamento de radiodifusão, e o entendimento da Defensoria Pública da União é de que não existe apreensão sem busca; o transmissor não apareceu lá no escritório da Anatel, ela foi fazer uma busca e conseguiu encontrar de onde a rádio estava sendo transmitida. Então, segundo entendimento da defensoria pública, essas ações da Anatel são ilegais.

E o conselho da sociedade civil na Anatel, até o Marcelo Miranda, que é do instituto Telecom, se colocou à disposição para travar esse debate dentro da Anatel. A Anatel não vai na Oi, não vai na Vivo, na Tim, sendo que essas empresas são as que mais têm reclamações do consumidor. Agora, contra a rádio comunitária, que está cumprindo o papel essencial que é transmitir a cultura e informações locais de forma voluntária, porque não recebe dinheiro para isso, ela só trata com repressão, com criminalização.

Qual a situação da legislação sobre as rádios comunitárias?

As rádios comunitárias têm uma lei de 1998 (Decreto 2615, para a Lei 9742/97) que é muito ultrapassada. Ela foi uma lei feita pelos empresários para que as rádios comunitárias não significassem uma concorrência. Ela é uma lei do pior momento do governo Fernando Henrique Cardoso, que foi o momento das privatizações, da entrega do patrimônio brasileiro para a iniciativa privada estrangeira, que foi ali entre 1997 e 1998. Essa lei reflete esse momento da democracia brasileira, que era diferente do que a gente tem hoje.

É preciso mudar essa lei. Ela traz uma série de amarras. Ela burocratiza a questão da legalização das rádios comunitárias, então hoje grande parte das rádios comunitárias está na ilegalidade por conta dessa lei. E algumas rádios comunitárias acabam sendo controladas por políticos, por grupos religiosos, porque eles têm o controle econômico e político de uma situação que requer contratação de advogados, de funcionários. E que uma comunidade sem dinheiro, sem poder captar através de publicidade, ou de outras fontes de recursos, como o Fundo Público, voltado para isso, ou o percentual de um imposto, como é o Fistel (fundo de Fiscalização das Telecomunicações), ou do Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações), para financiar rádio comunitária, fica impossibilitada e alguns grupos políticos ou religiosos acabam se aproveitando para controlar essa concessão de rádios comunitárias. E também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à comunidade e não a interesses pessoais, econômicos e políticos.

A gente precisa avançar, porque a rádio comunitária tem que ser vista como um ator importante na questão da comunicação pública, que hoje está se fortalecendo com a EBC, as rádios Nacional e MEC (Ministério da Educação e Cultura), as rádios públicas estaduais, a TV Brasil e a rede pública de televisão. E as rádios comunitárias fazem parte desse processo, então elas precisam ser tratadas e reconhecidas com a importância devida, e hoje não têm.

A portaria 1462, de 2011, não mudaria esse panorama?

Não. A norma 462 na verdade regulamenta essa lei de 98. Então você regulamentar uma lei que é ruim, você só intensifica o grau de perseguição, o grau de burocracia, o grau de desimportância que o poder público está tendo com as rádios comunitárias. Ela trouxe uma maior transparência nos processos, que na verdade é uma condição que o estado deveria dar sempre, e que até hoje não tinha, por exemplo, na disputa por uma frequência.

Mas por outro lado os pontos piores da lei foram aprofundados. Como a questão, que para a gente é a principal, de que quem transmite sem legalização fica automaticamente desclassificado de um processo de legalização. Ou seja, foi uma forma de impedir que as pessoas exerçam seu direito à comunicação independentemente da legislação burocrática que criminaliza os movimentos sociais, as rádios comunitárias.

Hoje na própria lei não há uma isonomia entre as rádios comunitárias e comerciais. Se uma rádio comercial interferir em uma rádio comunitária, nada acontece. Agora, se uma comunitária interferir em uma comercial, ela tem que desligar o seu transmissor. E a rádio privada, na verdade não é nem rádio comercial, é rádio privada, ela pode ter anúncio na sua programação, o que em grande parte é o que viabiliza sua sustentabilidade. E a rádio comunitária é proibida de fazer publicidade, ou seja, a rádio comunitária, no Brasil, é sinônimo de rádio pobre, por conta da lei.

Há como mudá-la?

A norma 1462 foi um retrocesso. Os movimentos sociais reclamaram, tanto a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), como a Amarc fizeram mobilizações e agora o governo está com uma proposta de alteração da norma. Esse processo está na Casa Civil e toca em pontos que para o movimento são muito importantes. Um exemplo é a autorização de publicidade comercial, desde que essa publicidade seja do comércio local e desde que não sejam veiculados os preços e condições de pagamento. E a rádio comunitária é muito importante para incentivar o comércio local, porque o pequeno comerciante não consegue anunciar na grande rádio (NR: No Rio de Janeiro, por exemplo, média de R$ 700 por 30 segundos de veiculação). Então quem tem acesso aos meios de comunicação vai comprar nas grandes lojas, e o comércio local fica enfraquecido. A rádio comunitária é um espaço para fazer essa economia local girar.

Outra questão é o alcance do transmissor. A norma de 1998 colocava o alcance do transmissor em um quilômetro. Ou seja, além de 25 watt ser uma transmissão de muito baixa potência, a questão de 1 Km de raio é até aonde a rádio pode pegar. E isso desconsidera a formatação territorial da comunidade. Pode haver uma rádio comunitária que atende a um município que tem muito mais do que 1 km de raio. Então a proposta de modificação da norma é que o alcance do transmissor seja equivalente ao território da comunidade atingida. Mas de qualquer forma essas pequenas melhorias não atendem ao que a gente precisa, que é mudar a lei.

Um novo marco regulatório?

O marco regulatório brasileiro das telecomunicações está fazendo 50 anos. E não dá para continuar, ele é muito antigo, não contempla rádios comunitárias, sites e comunicação digital. Ele precisa ser atualizado do ponto de vista tecnológico e do ponto de vista da comunicação que hoje temos, porque não dá para 99% das rádios e 99% das televisões serem privadas comerciais. É preciso ter maior democracia nas comunicações e hoje isto não existe. O marco regulatório precisa tratar disso.

O marco regulatório é a principal pauta do movimento de comunicação como um todo hoje. O FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), do qual a Amarc faz parte, luta pela aprovação do marco regulatório. A partir das contribuições da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) o governo fez um esboço do que seria esse marco e está prometendo colocar em consulta pública o mais breve possível. Então o movimento social pressiona o governo para que isso aconteça e que esse processo também seja o mais democrático possível, com audiências públicas discutindo os pontos do marco e que ele seja aprovado o mais urgentemente.

É importante também que o debate sobre comunicação seja feito junto. Seja feito com uma certa coerência entre as leis. A Amarc verifica que o governo tem aprovado leis recentemente, a lei da EBC em 2008, a norma de rádio comunitária em 2011, a lei de TV por assinatura, o marco civil da internet, que também está quase sendo aprovado, ou a própria lei dos direitos autorais. Ou seja, é uma série de questões da comunicação que estão sendo aprovadas sem nenhuma ligação entre elas. É preciso que exista uma consolidação, uma coerência entre as normas. Não dá para ter um marco civil da internet que é bem avançado e uma norma de rádios comunitárias que é um retrocesso feitos pelo mesmo governo. O governo tem que manter uma coerência e tratar a questão da comunicação como algo único, essencial para a consolidação da democracia no Brasil.

Fazendo um comparativo, qual a situação das rádios comunitárias em outros países?

As rádios comunitárias, principalmente na América Latina, têm uma realidade bem parecida com a do Brasil. Só que em alguns países têm avançado, como por exemplo Equador, Uruguai e Argentina. Na Argentina, com a lei dos meios, todas as comunicações foram divididas entre estatais, ou seja, controladas pelo estado, independentemente se têm finalidades públicas, culturais, educativas; as emissoras privadas com fins lucrativos, que são o que a gente chama hoje de emissoras comerciais, e as emissoras privadas sem fins lucrativos. E nesse último segmento estão contempladas as rádios comunitárias, quilombolas e livres.

É um enquadramento bem mais amplo do que a gente tem no Brasil, que a constituição diz público, estatal e privado. Até a própria discussão entre o que é público e privado acaba complicando o enquadramento das rádios comunitárias. Por exemplo, rádios comunitárias são privadas, mas são públicas, elas têm caráter público. Já as emissoras, hoje as rádios e televisões que a gente chama de públicas, elas são controladas pelo estado, estatais, mas têm finalidade pública também. Então a definição do que é público é muito importante para isso.

A gente luta, por exemplo, no marco regulatório, para que a definição do que é público, estatal ou privado esteja contemplada nisso. Até para que as rádios comunitárias que a gente entende que estão nesse campo público da comunicação tenham a relevância merecida na lei.

E em outros lugares?

Você tem uma realidade, por exemplo, de países que são muito pobres, onde a comunicação privada não existe, como no Haiti e em alguns países da África. Existe a comunicação pública, que também não tem muito investimento. E a comunicação comunitária é muito forte. Por quê? Porque ela recebe financiamento estrangeiro, de entidades, de outras organizações não governamentais. O Haiti é um exemplo disso, onde as rádios comunitárias têm mais audiência, mais importância, chegam ao país todo com um transmissor com alcance para o país inteiro. E cumprem um papel importante na conscientização da população.

Na própria questão dos desastres naturais, como é o caso do Haiti, elas cumpriram papel superimportante para conscientizar a população para encontrar desaparecidos durante o terremoto daquele país. O que aconteceu aqui também em Teresópolis e Nova Friburgo (RJ) com a Rádio Comunidade de Friburgo, onde foi a rádio comunitária que conseguiu encontrar os desaparecidos. Porque a rádio comercial não tem relações com a comunidade, não é feita pela própria comunidade, é feita por profissionais e tem a finalidade de lucro; e a rádio pública está muito distante da cidade, ela está transmitindo do Rio de Janeiro, então não tem laços tão firmes como uma rádio comunitária.

Isso mostra a importância da rádio comunitária em países que não têm estrutura nenhuma. A rádio comunitária cumpre esse papel essencial, como no caso do Haiti e em países da África também.

Quais os objetivos da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc)?

O objetivo da Amarc mundialmente é a luta pela garantia do direito à comunicação como direito humano fundamental. O ser humano é comunicativo por natureza. Se expressa pelo olhar, pela fala, pelos gestos, mas também por um jornal, um site, um blog, uma rádio e uma televisão. É preciso que o poder público garanta isso através de políticas públicas.

A Amarc atua com foco nas rádios comunitárias em parceria com os movimentos locais de cada país. Ela se junta aos movimentos comunitários locais para lutar para que políticas públicas sejam colocadas em prática, ou sejam criadas para garantir esse direito à comunicação.

Voltando ao Brasil, é possível fazer uma estimativa de quantas rádios comunitárias existem?

Hoje no Brasil a gente tem mais de quatro mil rádios comunitárias legalizadas. Mas a nossa previsão é que existam, entre legalizadas e não legalizadas, mais de 10 mil rádios operando.

Finalmente, para o cidadão que leu essa entrevista e gostou do tema. Como ele acessa as rádios comunitárias?

As rádios comunitárias têm uma frequência apenas por município. Se você está em determinado lugar, você só pode ouvir uma rádio comunitária, porque a lei impõe isso, e elas têm uma separação de quatro quilômetros. Então se você está em casa, ou no trabalho, você só vai conseguir ouvir uma rádio comunitária.

E em cada município ela tem uma frequência diferente. Aí tem que entrar no site da Anatel para verificar qual a frequência específica do seu município. Ou pode entrar no site da Amarc, www.amarcbrasil.org, ou no site da Abraço, www.abraconacional.org, para verificar qual a rádio comunitária mais próxima. E também participar, porque a rádio comunitária é aberta a participação de todos. Não apenas ouvir, mas também fazer locução, ajudar no que puder dentro da rádio comunitária.

“Somos uma ONG cuja missão é produzir e fomentar o jornalismo de qualidade”

[Título original: A aposta da agência Pública em um novo modelo de jornalismo]
        
No Brasil ainda são poucos os jornalistas que se arriscam a explorar novos caminhos para a profissão. Nos Estados Unidos eles são até bem numerosos, mas aqui o projeto Pública é um dos raros a tentar um novo modelo de exercício do jornalismo. Natalia Viana, uma repórter com dez  anos de experiência, com mestrado na Inglaterra e colaborações com publicações estrangeiras, é junto com Marina Amaral e outros dez colaboradores uma das responsáveis pelo projeto Pública, que conta com financiamento da Fundação Ford e da Open Society, duas instituições estrangeiras que apoiam novas iniciativas na imprensa. Natalia explica como opera a agência Pública.

Observatório da Imprensa – Como você compararia o projeto Pública com o ProPublica, dos Estados Unidos? Existem outros projetos similares em curso noutros países, como o Notify, o Wikinews, Spot Us, NewsMill e Locast, só para citar alguns. Quais os grandes diferenciais do Pública em relação a esses projetos?

Natália Viana – A Pública tem uma ligação direta com o modelo da ProPublica; ela é inspirada nos centros de jornalismo investigativo sem fins lucrativos que surgiram nos Estados Unidos e hoje em dia começam a aparecer em diversos países. O ProPublica não é o primeiro deste tipo de organização nos EUA, longe disso. Desde o fim da década de 1970, organizações sem fins lucrativos para jornalismo investigativo, pautado pelo interesse público, existem nos EUA. Um dos mais antigos é o Center for Investigative Reporting, com o qual temos parcerias em alguns projetos. O ProPublica era até recentemente o mais “rico” destes centros, com um orçamento de cerca de 10 milhões de dólares por ano.  Muitos desses centros são parceiros da Pública, como o Center for Public Integrity, o Bureau of Investigative Journalism, o CIPER-Chile, 100 reporters e Florida Center for Investigative Reporting. A Pública participa, em nível internacional, do Global Investigative Network, uma rede de organizações similares do mundo todo.

A Pública vem dessa tradição, mas voltada para o contexto brasileiro. Ela é obviamente uma organização muito menor que a ProPublica — estamos ainda no nosos primeiro ano de existência — mas tem uma missão semelhante: a de produzir reportagens de fôlego, pautadas pelo interesse público, visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos. Seus principais pilares são o interesse público e o jornalismo independente.

Os outros projetos que você citou são muito diferentes. O Spot.us é um site de crowdfunding; o Wikinews é um site de jornalismo colaborativo; o News Mill é um site de opinião; e o Locast é um site que permite formatos de mídia interativos para as pessoas montarem  suas histórias. O que eles têm a ver com a Pública? O fato de serem iniciativas jornalísticas novas, baseadas na internet, que exploram os limites de modelo, formato, organização da produção e financiamento do jornalismo. Eu encaixaria o WikiLeaks no mesmo rol de iniciativas. Nesse sentido, a Pública busca tanto uma experimentação de modelo (sem fins lucrativos ou comerciais), de formato (com vídeo, uso de mídias sociais e reportagens longas e aprofundadas, por exemplo, raras de serem encontradas na web) e de organização do trabalho através de modelos de parcerias com repórteres, organizações e veículos.  

Qual a audiência procurada para o projeto Pública?

N.V. –
A Pública não é um site e, portanto, não tem um público-alvo. Somos uma ONG cuja missão é produzir e fomentar o jornalismo de qualidade. Sempre dizemos que o nosso site (www.apublica.org) é um veículo-meio e não um veículo-fim. Colocamos toda nossa produção ali para que seja “roubada” por outros veículos (temos até uma seção que se chama “Roube nossas historias”). Tudo é feito em creative commons para que seja utilizado livremente por outros veículos, desde que citada a fonte e com link para o nosso site. Nosso objetivo é que o maior número possível de jornalistas e veículos utilize nosso material. A ideia é espalhar nossas histórias. Acreditamos que a informação de qualidade deve ser livremente disseminada, já que é essencial para qualificar o debate democrático sobre os grandes temas nacionais.

Qual a relevância que vocês atribuem à curadoria informativa no projeto do Pública?

N.V. –
Total. Nossas pautas são definidas de acordo com temas que consideramos de alta relevância pública para o momento e para o futuro próximo no Brasil. Por isso definimos três eixos investigativos que orientam nosso trabalho nesses primeiros anos: "Tortura e Ditadura", sobre a violência do Estado sobre o cidadão (publicamos reportagens sobre a ditadura, como "Mr. Dops", e tortura); "Amazônia", tema diretamente ligado ao modelo de desenvolvimento que o país elegeu,  com uma série de reportagens sobre uma líder ameaçada de morte por madeireiros no sul da Amazônia e outras, de reportagens a jornalismo de dados; e, por fim, os "Megaeventos", oportunidade e risco para o país e para a população com a proximidade da Copa e Olimpíadas. Nesse terceiro eixo desenvolvemos desde o início do ano uma experiência de jornalismo cidadão – o Blog Copa Pública – e produzimos reportagens investigativas sobre o mundo do futebol.

Qual a importância que o modelo de sustentabilidade financeira do projeto Publica atribui ao chamado micro-funding? E qual a estratégia que desenvolvem para viabilizá-lo?

N.V. – Não tenho certeza do que você quer dizer com micro-funding. Se quer dizer pequenos projetos apoiados de maneira individual (digamos, com valor até R$ 10 mil), nós achamos muito importante, mas tivemos poucas experiências do tipo. Recentemente fechamos uma parceria nesse sentido com a Rede Brasil Atual, que está co-financiando quatro microbolsas de reportagem selecionadas por meio do Concurso de Microbolsas que lançamos no nosso site. Fizemos uma chamada de projetos de reportagem, recebemos 70 projetos e premiamos quatro. Como havia outros muito bons que não foram contemplados, a Rede Brasl Atual entrou com uma parceria para financiar outros projetos.   

O modelo de sustentabilidade financeira é hoje o grande dilema de quase todas as novas iniciativas voltadas para o desenvolvimento do jornalismo na web. Existe algum modelo que vocês tomam como benchmark?

N.V. – A sustentabilidade financeira é o grande dilema do mundo hoje – não só no jornalismo e nem só na web! O jornalismo entra dentro de um caldeirão de novas iniciativas integradas à chamada cultura digital, e que questiona inclusive a organização econômica com novos modelos. Não é à toa que a Pública está sediada na Casa da Cultura Digital, em São Paulo. Não há, na web, um modelo que consideramos mais bem-sucedido neste sentido. Veja: o Facebook acabou de abrir o seu IPO; o Twitter busca uma maneira de arrecadar dinheiro com propaganda; o Youtube recentemente se encharcou de anúncios. Há três anos, nada disso teria sido previsível. Essa é a maior riqueza deste momento: não há modelos. Temos que inventá-los.     

Uma das propostas do Pública é desenvolver o jornalismo investigativo, mas existem duas vertentes possíveis: a de consumo imediato para atendimento de questões da agenda noticiosa diária; e investigações de maior profundidade e complexidade que demandam mais tempo e dinheiro. Qual das duas é prioritária para o Publica?

N.V. – O termo jornalismo investigativo é polêmico. Para nós, o jornalismo investigativo é aquele que se aprofunda num tema de maior complexidade e o estuda a fundo. Aqui no Brasil, é a boa e velha reportagem – e por isso somos uma “agencia de reportagem e jornalismo investigativo”. Não é à toa que as duas coordenadoras da Pública aprenderam jornalismo com Sérgio de Souza  – fundador e editor de dezenas de publicações baseadas em reportagem desde sua participação no dream team  da Realidade – e a sua turma. Somos de uma linhagem de jornalistas que acreditam na reportagem, e acreditam no repórter.

Não fazemos notícia. Há uma frase do jornalista americano T. D. Allman que gosto muito, e resume o que  sentimos com relação ao jornalismo investigativo: “Jornalismo genuinamente objetivo é aquele que não apenas apura os fatos, mas compreende o significado dos acontecimentos. É impactante não apenas hoje, mas resiste à passagem do tempo. É validado não apenas por 'fontes confiáveis', mas pelo desenrolar da história. E dez, vinte, quinze anos depois ainda serve como espelho verdadeiro e inteligente do que aconteceu”.

Fazer jornalismo sério na web, levando em conta o público, coloca vocês numa rota de colisão com a chamada grande imprensa. Este conflito pode alterar a estratégia editorial e a sustentabilidade financeira do projeto?

N.V. – Não acredito que haja uma rota de colisão. A Pública não é um veículo, e portanto não vem buscar o espaço que um veículo ocupa. Ela pretende ser uma agência, um produtor e distribuidor de conteúdo em creative commons. Queremos que a mídia tradicional utilize também o nosso material. [Creative Commons é um projeto global, presente em mais de 40 países, que cria um novo modelo de gestão dos direitos autorais. Ele permite que autores e criadores de conteúdo, como músicos, cineastas, escritores, fotógrafos, blogueiros, jornalistas e outros, possam permitir alguns usos dos seus trabalhos por parte da sociedade.]

Há uma forte tendência entre os projetos de jornalismo na web de explorar a vertente local, hiperlocal e comunitária. Como vocês veem esta alternativa?

N.V. – Pessoalmente acho excelente. No contexto brasileiro, de uma grande concentração da mídia, acho realmente fantástico. E pode ser bem feito sem grandes recursos. Há um enorme campo para o que chamamos de jornalismo cidadão. Além das reportagens aprofundadas que produzimos a partir deste ano (que é o primeiro ano de funcionamento da organização com estrutura, financiamento da Ford Foundation e da Open Society Foundation), temos esse blog que é uma experiência de jornalismo cidadão: o Copa Publica, cujo objetivo é acompanhar como as organizações populares estão se preparando para debater tudo o que envolve a Copa do Mundo de 2014. Um evento que vai mexer com o Brasil de uma maneira poderosa, não só estruturalmente como simbolicamente. E já está.