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O PL Azeredo e o controle da Internet

O senador tucano Eduardo Azeredo, de MG, escreveu o “AI-5 digital”. Ele é o autor do PLS-76/2000 que torna crime o dono do provedor que não denunciar o que achar suspeito. Com isso, o provedor, sob remuneração, pode espionar livremente as atividades de quem comprar espaço em seu provedor. Ou seja, pode legalizar os crimes de espionagem de Daniel Dantas.

Diz o item III do Artigo 22 do projeto, que trata do “responsável pelo provimento de acesso à rede mundial de computadores …”: “III – (é dever dele) informar de maneira SIGILOSA (ênfase minha – PHA) à autoridade competente, denúncia que tenha recebido e contenha indícios da prática de crime sujeito a acionamento penal público, cuja perpetração haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua responsabilidade.”

Em qualquer democracia do mundo, o provedor só pode revelar sigilo de seu freguês com ordem judicial. Nas democracias, só quebra sigilo quem segue o rito judicial. “Vai dar uma olhada na vida desse cara pra mim.” Pode dizer um policial corrupto que esteja a serviço de um contumaz grampeador, como, por exemplo, Daniel Dantas, flagrado na Operação Chacal. Essa do senador tucano é coisa de stalinismo, nazismo, ditadura militar – ou do Brasil em que vivemos.

Essas reflexões surgiram com a entrevista que Paulo Henrique Amorim fez com o deputado Paulo Teixeira, do PT de SP e membro da Comissão de Ciência e Tecnologia. O projeto de Eduardo Azeredo está em discussão na Câmara. Eduardo Azeredo é aquele do “mensalão tucano”, que inaugurou os serviços empresariais de Marcos Valério. E vai ter o prazer de ser julgado pelo Ministro Joaquim Barbosa.

Eu gostaria de recorrer à sua opinião sobre o projeto de lei já aprovado no Senado Federal, um projeto de autoria do Senador Eduardo Azeredo, do PSDB de Minas, que trata do acesso ou do sigilo da informação no provedor na internet. O que diz esse projeto de lei e qual a sua opinião sobre ele?

Paulo, primeiro esse projeto de lei, ele diz muita coisa, não é? Ele pretende, em primeiro lugar, introduzir no Brasil uma coisa que alguns países estão introduzindo e que no Brasil, na minha opinião, nós não deveríamos permitir que se introduzisse. Ele está querendo introduzir os mecanismos de controle da internet para a garantia do direito autoral. O que que é isso? Por exemplo, esse processo de baixar música, de produzir filme, de montar histórias, não é? Enfim, ele está querendo criminalizar esse tipo de prática e, portanto, embarcar a internet nesse tipo de controle, né? Nos países onde a indústria de entretenimento, a indústria fonográfica, nos países sede dessas indústrias, eles estão conseguindo introduzir e penalizar duramente aquelas pessoas que baixam música na internet, etc, né?

Portanto o que a gente tem que ver é isso interessa a nós no Brasil botar esse controle dentro da internet? Então o nosso país, enquanto país, não assinou a convenção de Budapeste, que é exatamente a tentativa desses países que são de primeiro mundo, desenvolvidos e são sedes dessas indústrias, querer introduzir na internet nos outros países um mecanismo de controle e criminalização dessas práticas. Então, em primeiro lugar, ele quer o que hoje é assim o estágio mais rígido da propriedade intelectual, eles querem introduzir na internet e ao mesmo tempo criminalizar práticas que não tem objetivo comercial. Por exemplo, não sei se você conseguiu assistir a um filme que está passando no YouTube, em que uma pessoa pega uma música americana que traduzindo é “vocês nos seguirão” e botam o Ronaldinho eo Lula.

Nós aqui no Conversa Afiada fazemos isso com muita frequência. Agora mesmo, por exemplo, temos um jingle da campanha de José Serra para prefeito em 2002 como a linha de áudio da relação dos senadores que querem a CPI da Petrobras. Alguém baixou o áudio do jingle do Serra…

É, então, o que que acontece? Hoje você tem um processo de criação pela internet sem fins lucrativos, né, e que é exatamente o espaço de liberdade, de criação. Os adolescentes hoje constroem histórias, filmes, enfim, se utilizam de trilhas sonoras, etc, e o que se pretende hoje é criminalizar esse tipo de prática na internet. Então, esse projeto traz esse interesse e, ao meu ver, ele não deve ser aceito porque engessa a internet, perde a capacidade de ser um espaço de criação e também, digamos assim, estabelece que práticas corriqueiras e comuns e transformam em práticas desvirutosas e estende o código penal até elas. Então, esse é o primeiro aspecto que nós entendemos que esse projeto de lei não seja admitido. O segundo aspecto é que ele também tenta criminalizar coisas que em últimos projetos não está discutido. Não que a sociedade não deva discuti-las, mas por exemplo, essa história da pessoa fazer uma ligação clandestina de TV a cabo, não é?

Ta lá no projeto dele, portanto, é mais uma maneira de trazer algo que a sociedade não discutiu. Se ele quiser discutir isso, a meu ver, mercê um projeto específico para dizer “olha eu quero criminalizar esse tipo de prática”, e ao criminalizar essa prática discutir em sociedade como fazê-lo. Mas não pode digamos fazer de uma maneira imposta esse projeto. Em terceiro lugar, ele está querendo utilizar de uma prática que, a meu ver, é criminosa. Isto é, ele está permitindo que todo o provedor de acesso, então, por exemplo, quem usar um provedor de acesso e esse provedor tiver alguma desconfiança que alguma pessoa praticou crime pela internet esse provedor terá que avisar a polícia. Certo?

Deputado, para ajudar  aqui o nosso internauta, ele diz o seguinte, o parágrafo terceiro deste artigo: “informar de maneira sigilosa a autoridade competente denúncia que tenha recebido que contenha  indício da prática de crimes sujeito acionamento penal público incondicionado, cuja perpetração haja ocorrido no âmbito da rede de computadores sob sua responsabilidade”. Aqui ele está tratando de um provedor exatamente.

É. O que ele está permitindo que um provedor faça: quebre o sigilo das comunicações. A proteção ao sigilo das comunicações é uma proteção constitucional. Só pode haver uma maneira de quebra do sigilo, segundo a nossa Constituição: com ordem judicial. Então, o que eles estão querendo fazer. Fazer do provedor um delator. Isto é, tem dois valores embutidos aí. O primeiro valor é, você, provedor, ao saber de alguma irregularidade denuncia à polícia. Então você vai ser o delator de qualquer ato que seja uma anomalia dentro da internet. O segundo, tem outro valor. Quando a pessoa souber, na verdade ela vai bisbilhotar a comunicação. Ela vai quebrar o seu sigilo sem ordem judicial. O que não quer dizer também que o provedor pode ter alguma informação sobre você sem que tenha o rito judicial para que ele tenha essa informação.

Então ela pode também entrar no comércio do grampo clandestino e vender essa informação…

Isso pode servir para espionagem, para disputas comerciais, disputas profissionais.  Eu posso pedir ao provedor, olha, você poderia dar uma olhada na vida de tal sujeito para mim. Percebe? Portanto, e também você dá superpoderes à polícia, não é? A polícia, se ela quiser investigar, ela tem que ter tecnologia para investigar. Se ela desconfia de algum tipo de prática, a legislação permite que ela instaure um inquérito, peça a quebra do sigilo para a investigação criminal.

Ela não está tolhida do direito e do poder de fazê-lo. Agora, nós estamos num Estado de Direito. Estado Democrático de Direito, portanto, para você quebrar o sigilo que é parte, digamos, do direito à privacidade da pessoa, você só pode fazer com um rito. E o rito que se permite é o rito judicial. Então esse projeto está sendo chamado de um projeto “vigilantista”. Isto é, que estabelece uma sociedade de vigilância.

Isso deveria funcionar muito bem no stalinismo, não é?

Isso num estado totalitário, tem um sentido. No stalinismo, nazismo, a ditadura militar que nós tivemos, ta certo? O projeto foi equiparado ao AI5 digital. Foi chamado assim pela sociedade, pelos movimentos pela liberdade na internet. Por quê? Porque no AI5, quem morava em prédios, o zelador tinha que comunicar sobre o novo morador para o DOPS. Então agora, digamos assim, o provedor terá que dizer se há alguma irregularidade  Olha, se a pessoa denuncia, denuncia à polícia. Você vai co-responsabilizar o provedor, estabelecendo um teor de insegurança na privacidade das pessoas. Porque o provedor, no Brasil nós temos inúmeros provedores, mais de 200, então numa cidade pequena, do interior, se alguém quiser saber da intimidade de uma pessoa, seja ela mulher, seja ela um homem, poderá buscar junto ao dono do provedor, porque ele terá a informação, e portanto…

Me permita a liberdade, isso aí é a legalização do que faz o Daniel Dantas?

É. É basicamente isso, ta certo? Você vai legalizar aqueles que vivem do expediente de quebrar a privacidade das pessoas, ta certo? Uma pessoa como ele, que vivia da espionagem dos seus adversários, que pagava pessoas para profissionalmente fazer isso, o que aconteceu é que nós vamos garantir que pessoas dessa natureza tenham uma atividade legal. O que eu acho que é importante colocar, Paulo, é o seguinte: desse processo todo, da internet, ele vem sendo feito para discutir crimes que são praticados na internet. Então, o que nós precisamos discutir? Nós precisamos ter que a internet é um espaço da liberdade. Então, antes de nós querermos criminalizar todas as práticas, nós temos que estabelecer um plano de direitos para discutirmos o que tem que ser tipificado como… Por exemplo, eu diria o seguinte: subtrair dinheiro pela internet é crime? Ora, subtrair dinheiro é crime pela internet e fora da internet. Isso já existe, é o crime de furto.

Número dois: como é que os bancos vão se proteger do ponto de vista dos procedimentos e do ponto de vista tecnológico. Como assim do ponto de vista dos procedimentos? Por exemplo, uma empresa emite seis cheques. Claro que a compensação há uma conferência entre o banco e o emissor. Será que nossas instituições financeiras vão estabelecer os procedimentos corretos? Será que a tecnologia também é uma tecnologia que o investimento nela, apesar dos bancos hoje terem os seus juros altos, será que eles estão investimento adequadamente em tecnologia e procedimentos para proteger o correntista? Bom, então, nós vamos dizer, o crime é praticado na rua, então, doravante, para você sair na rua vai ter que dar publicidade, para você sair na rua você vai ser filmado. E se eu desconfiar que você pode praticar algum crime eu vou, então, denunciar. Isso vai criar uma sociedade de terror. Aquela história do Big Brother está aí sendo configurada.  C

Certamente, como se configura isso? Você cria um ambiente de medo. Foram aí para a questão da pedofilia, foram averiguados 18 mil logs. Dezoito mil pessoas foram investigadas para se achar 167 computadores que praticavam pedofilia. Isso antes da decisão judicial. O que nós precisamos fazer também é um diálogo. Que a Polícia Civil, que o Ministério Público, doravante, se quiserem fazer investigação, façam e peçam a quebra do sigilo. Nós não podemos criar uma base na sociedade que é a base da insegurança em relação à privacidade. Senão, já, já, você vai tornar a internet um lugar inseguro para se comunicar, para manter o que a Constituição coloca como um valor que é a proteção da privacidade, da intimidade da pessoa.

OK, deputado, muito obrigado.

Muito obrigado, Paulo. Quero dizer a você que nós seremos radicalmente contra esse projeto e queremos pedir a seus internautas a opinião sobre ele. Teremos muitas opiniões.

Confecom: um marco histórico para o Brasil

Embora o governo federal tenha trabalhado com a questão da Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav) e do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) de uma forma que a sociedade não esperava, ele acaba de convocar a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Esse evento, que deve ocorrer em dezembro deste ano, é resultado de uma luta histórica da sociedade organizada. Esta espera que, a partir das discussões a serem feitas ao longo da organização e da realização da conferência, aconteça o surgimento de um marco regulatório justo para todos os brasileiros. Até que a Conferência aconteça, o sítio do IHU (Instituo Humanitas Unisinos) abrirá espaço para se debater os temas que devem ser abordados no evento.

A IHU On-Line conversou com o professor Valério Brittos sobre a realização desta conferência. Segundo ele, a universidade tem um papel fundamental nesse processo. “As universidades devem estar na conferência, fazer propostas, discutir com seus alunos, solicitar conferências locais. É o momento em que a própria universidade pode se sentir desafiada e cumprir o seu papel histórico”, afirmou na entrevista, concedida pessoalmente.

Valério Cruz Brittos é formado em Direito, pela Universidade Federal de Pelotas, e em Jornalismo, pela Universidade Católica de Pelotas, com especialização em Ciências Políticas. É mestre em Comunicação, pela PUCRS, e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente, é professor do PPG de Comunicação da Unisinos e presidente da ULEPICC – União Latino-americana de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura.

O que precisa estar em discussão durante a Conferência?

Eu espero que essa conferência seja o marco histórico que o Brasil precisa, ou seja, um espaço para se discutir o papel da mídia. Além disso, espero que sua realização possa evoluir para um arcabouço regulatório, capaz de fazer avançar nos processos de regulação da mídia, o que considero fundamental. Nesse sentido, minha expectativa é de que haja, ao mesmo tempo, um processo prévio de discussão. Isso já ocorre, de certa forma, através de um conjunto de mecanismos alternativos, como o próprio IHU, o FNDC, o Intervozes. Mas, se não passar pela discussão na mídia, o debate ficará restrito. A discussão sobre saúde, por exemplo, passa pela mídia, havendo, então, um outro nível de impacto. A fim de se atingir esse objetivo, o ideal seria que o governo pudesse liberar, previamente, uma pauta que fosse necessariamente midiatizada, para que a grande mídia pudesse tratar desse tema, preparando a sociedade para debatê-lo.

Como o senhor vê o interesse da grande mídia nesse tipo de discussão?

Em princípio, tradicionalmente, eles não têm muito interesse nesse tipo de discussão, pois uma conferência como essa, com o grau de representatividade que se espera que tenha, com participação da sociedade, não é o palco ideal no sentido dos interesses do mercado. A grande mídia, normalmente, prefere discutir internamente, nos gabinetes do Legislativo e com o próprio Executivo, para poder contornar o mercado a partir dos seus próprios interesses, fazendo a legislação do seu jeito. Por isso, afirmo que precisa haver algum tipo de deliberação que simule esse tipo de discussão.

De qualquer forma, além desse debate prévio e do debate durante o desenvolvimento da conferência, o ideal é que se tenha (1) consequências objetivas no plano material, que é justamente, na área da comunicação comunitária ou alternativa; (2) uma chamada anistia para todas as emissoras de rádio que foram fechadas e perseguidas porque não tinham outorga; (3) uma legislação que permita o funcionamento da comunicação alternativa de forma mais ampla, com mais concessões, processos mais ágeis e com modelo de financiamento para eles; e (4) recursos, porque não adianta montar a conferência e não ter a possibilidade para sobreviver. Pode ser com recursos do próprio governo (que investe muito em publicidade) ou até um fundo até da publicidade comercial para a comunicação alternativa. Então, que se pense nisso, numa efetiva complementaridade do sistema privado, do sistema público estatal e do sistema público não estatal. Isso é fundamental.

É preciso pensar, também, em mecanismos de controle do público pelo privado, ou seja, que mesmo a comunicação privada, estabelecida como negócio, possa ser rentável para aqueles que a controlam. Além disso, que ela traga dividendos sociais para o conjunto da sociedade, e exista controle público sobre os atos da midiatização. Controle público sempre há. No entanto, precisamos substituir o controle privado daquelas famílias que controlam uma empresa na questão específica do midiatizar por algum nível de controle público, com criação de conselhos, enfim. A expectativa acaba sendo muito grande. Num país como o Brasil, onde a questão da mídia sempre foi tratada como uma caixa-preta, decidida em gabinetes e corredores, a realização de uma conferência nacional é um marco, um momento de maior importância e assinala algum nível de mudança.

Frente ao cenário de convergência tecnológica, o que precisa ser modificado na legislação brasileira em relação aos meios de comunicação? Existe espaço para todos?

Espaço sempre houve, mesmo no analógico, embora o meio fosse menor. Agora, ao mesmo tempo, sem dúvida com a multiplicação de espaços existe, hoje, um grau de facilidade de ocupação deles. Mesmo com essa questão da digitalização, há dois aspectos que precisam ser considerados. Por um lado, não adianta apenas os meios alternativos terem acesso às mídias segmentadas específicas. É necessário, também, que os grandes espaços massificantes e massificados da produção de sentido se abram para a diversidade, como as grandes redes de televisão, os grandes telejornais e jornais. Por outro lado, é preciso que mesmo os veículos alternativos tenham possibilidade de financiamento. Hoje, isso existe no Brasil apenas na base do voluntariado, mas é preciso que algo seja feito da melhor maneira para obter uma quantidade de público grande, torná-lo fiel. Atualmente, ele é educado para a grande mídia e quer também um conjunto de códigos que possa reconhecer e se reconhecer.

No mínimo há 15 anos no Brasil, fala-se na necessidade de uma lei de comunicação de massa. Eu diria que o Código Brasileiro na área das comunicações, que vige o campo de radiodifusão, tem mais de 40 anos. Claro que nessa época não existiam internet e outras possibilidades para a televisão. Temos até discutido, no âmbito do grupo Cepos, que o próprio conceito de televisão hoje se transforma, pois ela pode trazer outros serviços e, ao mesmo tempo, ser disponibilizada em outras plataformas tecnológicas. Tudo isso não está contemplado na lei das comunicações. O Brasil precisa de uma grande lei. Eu nem chamaria de comunicação eletrônica. Antes de tudo, o país necessita de uma grande lei de Comunicação Social. E, a partir, daí criar uma grande código que dê conta dessa diversidade. Essa lei deve criar fatos novos e fazer proposições, assim como regulamentar questões já existentes.

Qual é o papel das universidades dentro desse processo de “repensar a comunicação”?

A universidade, seja estatal, federal ou privada, tem um papel fundamental e acho que esse é seu momento de reafirmar seu papel de compromisso público. Todas têm um compromisso público histórico, o que precisa ser reforçado, na medida em que as atitudes mostram a vinculação social – função social com os interesses do país – por parte dos seus cursos de graduação e pós-graduação na área da Comunicação Social. Deve haver provocação para o debate junto aos seus alunos, além da comunidade, fazendo essa relação da sociedade com a comunidade universitária. Elas devem fazer propostas, discutir com seus alunos, solicitar conferências locais. É o momento em que a própria universidade pode se sentir desafiada e cumprir o seu papel histórico.

O governo resistiu bastante para anunciar a Conferência Nacional de comunicação. Que papel ele deve ter nesse evento?

Haver uma conferência de comunicação, sabendo que a comunicação sempre foi tratada de forma privada e que os empresários pressionam para que ela não seja discutida e não seja mudada, é um marco histórico, embora tenha saído somente no segundo mandato do governo Lula. Ou seja, apesar do histórico que o Brasil tem da não-discussão da comunicação, existir uma conferência é um fato de grande importância. Nesse sentido, apesar do grau de contrariedade que é o governo Lula, ele quebra um paradigma, acaba sendo ousado e merece ter uma consideração. Aliás, toda essa contrariedade se expressa nisso. Esse é o mesmo governo que cedeu ao padrão japonês de TV digital, que não era o que a comunidade queria.

Também é o mesmo que não avançou no conselho federal de jornalismo, uma luta histórica da classe, nem avançou na lei do audiovisual. Ainda assim, criou, com todas as imperfeições que tem, a TV Brasil, uma TV pública, de que o país precisa. Desta forma, o governo já teve um papel fundamental ao convocar essa conferência e segue tendo, ao liberar recursos necessários, criando situações para que o debate aconteça. E, depois, continuará tendo papel importante, sendo permeável para que as decisões da conferência venham a se transformar em marco regulatório efetivo.

Limites no modelo de gestão da TV Brasil

Com apenas um ano e meio da vida, a rede pública de televisão criada pelo governo federal já se meteu em um bocado de confusões. A cada diretor ou funcionário demitido, farpas são trocadas nos jornais e o modelo de administração da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que congrega a TV Brasil, é colocado em xeque.

Em entrevista ao colunista Daniel Castro, publicada hoje (28/4) na Folha de S. Paulo, o diretor de programação Leopoldo Nunes, demitido do cargo, ataca de frente a presidente da TV Brasil, Tereza Cruvinel. Nunes acusa Cruvinel de ter “rasgado” 100 milhões de reais, de ser autoritária e não ter compromisso com o projeto da tevê pública.

Para falar sobre o assunto, procurei, na manhã de hoje (28), Diogo Moysés, membro do coletivo Intervozes, um dos mais ativos espaços de discussões sobre a comunicação no Brasil.

Leia a seguir a entrevista:

A TV Brasil, mais uma vez, aparece no noticiário por causa de desavenças internas. Isso não reforça a imagem da emissora como um espaço mais de política que de produção de conteúdo?

Em qualquer projeto dessa natureza, divergências são saudáveis. A EBC, para que seja bem sucedida na tarefa de liderar a construção de um sistema público de comunicação, precisa ser objeto de reflexão permanente. A questão está na forma como essas divergências aparecem e como são, digamos, superadas. Acho que chamar a presidente da empresa de má gestora não adianta muita coisa. Aumenta a tensão, mas politiza pouco o debate. O conselho curador é que deveria funcionar como o locus de discussão sobre essas questões.

Mas o Conselho funciona?

Está evidente que a opção por um conselho nomeado pelo Presidente da República foi pra lá de equivocada. O conselho é manso, passivo, somente reativo, exatamente o inverso do que deveria ser. E isso não é culpa dos conselheiros, pois eles não poderiam recusar o convite do Presidente, mas sim do modelo de gestão. Aposto contigo que mais da metade dos conselheiros não assiste a TV Brasil ou acessa a Agência Brasil. O fato de três deles terem pedido “demissão” por falta de “tempo” para ir às reuniões também é bastante simbólico.

O próprio presidente do conselho (o economista Luiz Gonzaga Belluzzo), apesar da respeitabilidade que possui, não parece ter se concentrado realmente nesta função. Agora que é presidente do Palmeiras, certamente tem a EBC como prioridade secundária. Isso não é um julgamento do Belluzzo, mas uma constatação necessária. Se o presidente do conselho não respira a EBC, quem é que vai fazer isso? Há ainda um entendimento equivocado sobre o que deve ser o conselho. Já ouvimos mais de uma vez que ele deve somente zelar por eventuais desvios políticos. O conselho precisa ser muito mais do que isso. Deve ajudar a formular os caminhos a serem trilhados pela EBC.

O Intervozes sempre foi favorável à tevê pública. Mas, quando a TV Brasil surgiu, vocês já tinham algumas críticas ao modelo. O que estava errado, de saída?

O erro mais grave foi certamente em relação ao modelo de gestão, no qual tanto a diretoria-executiva quanto o conselho curador são indicados pelo presidente da República. Não foram estabelecidos mecanismos que permitam que a sociedade, de fato, participe da construção da EBC. É preciso que o governo assuma o erro que cometeu em relação a essa questão e reformule o modelo urgentemente, sob o risco de o projeto perder legitimidade. E, sem legitimidade, não há como consolidar um sistema público de comunicação. As experiências internacionais são a maior prova disso. O equívoco, vale dizer, não foi da direção da empresa, apesar da Tereza ter assumido a defesa do atual modelo quando foi preciso aprovar a Medida Provisória que criou a EBC, mas a mesma [a direção da EBC] pode e deve ajudar a reformá-lo.

Depois de um ano e meio, você acha que a TV Brasil teve, de fato, alguma utilidade? Quais são pontos fortes e seus pontos fracos?

Um ano e meio é pouco tempo para avaliar se o projeto será ou não bem sucedido. O que é possível dizer é que a EBC não é hoje um projeto de Estado, vigoroso, com potencial para ser uma real alternativa à comunicação comercial. Há certamente pontos positivos, como a instituição de um operador de rede para o conjunto das emissoras públicas e estatais, e a formação de uma rede nacional descentralizada, mas tudo parece tímido em relação ao tamanho dos desafios que temos que enfrentar no campo da comunicação pública.

Te parecem claros os parâmetros editoriais da emissora?

Olha, devo ser um dos poucos que assiste o principal jornal da TV Brasil. Faço isso pelo menos três vezes por semana e assumo que ainda não entendi direito que tipo de jornalismo se pretende praticar. Isso não significa que o jornalismo da emissora seja viciado ou chapa-branca. Mas também não adianta fazer um jornalismo "correto". É preciso que o jornalismo público ajude o Brasil a refletir sobre si mesmo, que seja transformador, sem ser panfletário, evidentemente. Em relação ao conjunto da obra, é preciso considerar que a construção de uma grade de programação é um processo difícil, penoso, que leva algum tempo.

Na era da Internet, ainda tem sentido imaginar uma tevê nos moldes da TV Brasil como alternativa à Globo e à Record? Não estariam todas repetindo um modelo esgotado?

Sim e não. Sim, se a TV Brasil pautar-se pelos mesmos princípios das emissoras comerciais ou se limitar sua atuação à televisão. Mas, mesmo no século XXI, não é possível dizer que a televisão pública é algo dispensável para a construção da democracia brasileira e para a garantia da diversidade cultural. A tevê continua sendo o meio de comunicação mais relevante do país, de longe com a maior penetração. Mas acho que ninguém mais defende que a EBC atue somente na televisão. O grande desafio é construir uma ou mais emissoras de TV e rádio relevantes e, simultaneamente, promover a comunicação pública no mundo digital.

Você acha que, nas próximas eleições, a TV Cultura e TV Brasil serão realmente importantes para PSDB e PT, respectivamente?

Acho que não. A TV Cultura está com o jornalismo cada vez mais esvaziado. A tendência é que evite críticas ao Serra, coisa que já é evidente hoje, mas não acho que isso será decisivo nas próximas eleições paulistas. Já a TV Brasil ainda é um projeto em construção e, exatamente por isso, há um cuidado muito maior com a cobertura jornalística. Para afundar o projeto da EBC bastaria que, nas eleições, a cobertura se tornasse chapa-branca. Não acho que isso irá acontecer.

Entrevista originalmente publicada em 28 de abril de 2009 no Blog Babel [veja aqui].

O desvirtuamento do projeto da TV Brasil

Na última sexta-feira (24), o agora ex-diretor de programas e conteúdos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Leopoldo Nunes, foi personagem de uma tumultuada polêmica. Abaixo, reproduzimos a provocativa entrevista dada por Nunes à Revista Fórum, que escancarou as diferenças entre ele e a diretora presidente da Empresa, Tereza Cruvinel.

Horas depois de sua divulgação no site da Fórum, o entrevistado alegou que havia sido comunicado naquele momento de sua saída. Em nota, a direção da EBC afirmou que o diretor havia sido demitido no dia 13 de abril, tendo solicitado licença de 15 dias para buscar um novo posto profissional.

Nunes é documentarista e ex-diretor da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Comandava a Diretoria de Programas e Conteúdos, responsável pela matéria-prima do principal veículo da empresa: a TV Brasil. Era o único dirigente remanescente do grupo ligado ao Ministério da Cultura, que ocupou cargos estratégicos na criação da EBC e da TV Brasil.

O senhor avalia que a TV Brasil tem desempenhado o papel para a qual ela foi criada?

Acho que de alguma forma sim. O mais positivo de tudo é em relação à produção nacional de audiovisual. Porque a mídia comercial e a televisão aberta sempre estiveram alijadas de todo o processo de produção audiovisual brasileira. A TV aberta no Brasil se constitui como uma TV de qualidade basicamente nos anos 1960 com a TV Globo, que numa aliança com a ditadura militar e num acordo com o grupo Time Life cria uma grande empresa de comunicação. Foi ali que se criou uma referência, um padrão de televisão brasileira.

Tudo o que se faz em televisão brasileira hoje é derivado ou imitação daquilo que foi a Rede Globo, principalmente no modelo de negócio. Por exemplo, o cinema brasileiro foi substituído pela teledramaturgia. A teledramaturgia é uma produção de baixíssima qualidade, mas de grande interesse popular. Vende xampu, exporta seus produtos para o mundo. As pessoas ouvem como se fosse rádio, ela vem da matriz cubana da radio novela. Mas mesmo assim é uma coisa de qualidade.

No jornalismo é a mesma coisa. Tivemos experiências como o Última Hora, mas de qualquer forma a matriz é a mesma. É o padrão Rede Globo. Então, quando se cria a TV Brasil, vê-se a aspiração da criação de um modelo de negócio e de um modelo de produção de conteúdo para compor essa televisão. Por exemplo, em relação à programação infantil. Nós temos uma animação no Brasil de altíssima qualidade. Por exemplo, 20% do (filme) “Asterix” foi feito em Águas de Lindóia, o diretor de “A Era do Gelo” é brasileiro, exportamos mão-de-obra da mais alta qualidade para fazer isso. No entanto, a televisão brasileira nunca absorveu a animação brasileira.

Quer outro exemplo? O Maurício de Souza tem uma das maiores famílias de personagens de animação do mundo. E comparado com a Walt Disney seus personagens são mais politicamente corretos. Os árabes usam, os chineses usam, enquanto não usam [os desenhos da] Disney. E aqui no Brasil ele é pouco usado. A verdade é que a TV brasileira está de costas para o Brasil. Bem, acontece que a Constituição brasileira prevê nos seus artigos 221, 222 e 223, o princípio da complementaridade entre o público, o privado e o estatal.

O privado, quer nós gostemos ou não, é o modelo que deu certo; o estatal passou a existir com a Lei do Cabo em 1995, com as TVs Assembléias, das Câmaras Federal e Municipal e do Senado. Já o (modelo) público surge com a criação da EBC. A lei que cria a EBC cria o termo público, porque até então era educativo. Todas as TVs eram educativas. Dentre as educativas, nós temos 26 emissoras e 19 modelos jurídicos diferentes. Desses 19 modelos, temos um que é exemplar, que é o da Fundação Padre Anchieta de São Paulo. Sai governo, entra governo, a TV Cultura de São Paulo está aí. Ela tem um conceito forte, uma diretoria executiva, é ligada ao governo do Estado, tem uma produção de qualidade e exerce bem sua função. É a mais sólida de todas as emissoras que a gente e que inclusive ajudou e muito a criar a TV Brasil. Foi um dos berços que clamava por uma TV pública.

Por isso, quando nasce a TV Brasil, ela vem com toda uma esperança de se colocar no ar uma nova programação. Por exemplo, as pessoas não conhecem a África? Então eu abri uma janela de produção africana chamada “DOC África”, que agora vai passar a se chamar “Mama África”. Toda semana passa um documentário africano. Na semana retrasada, por acaso, entre os 10 programas de maior audiência da casa havia um filme africano. O mesmo que acontece em relação à África, também se dá com a América Latina, ninguém conhece. Por exemplo, você sabia que existe uma cidade andina na Colômbia que respeita as leis incas e tem curso de Direito, uma universidade de 600 anos e que responde a leis incas? Pois então, criamos o Tal Como Somos que apresenta documentários latino-americanos. Além disso, temos uma série de programas com o Ministério da Cultura.

É este o modelo sistêmico que nós criamos na Secretaria do Audiovisual voltado para a TV pública. Além disso, temos uma série de programas voltados para a cidadania, desde questões de idade, de gênero, de trânsito, de educação básica… Mas há outras coisas. Por exemplo, nós temos 180 línguas indígenas no Brasil. Nós temos uma diversidade lingüística maior do que a China, maior do que a Índia, e não reconhecemos. Nós somos brancos ocidentais. Índio, para a gente, é motivo para abate, porque ocupa uma área muito grande onde é possível produzir “x” sacas de arroz, como no caso da Raposa Serra do Sol. Hoje, a TV Brasil apresenta curtas-metragens indígenas. Por fim, sempre entendemos que o público brasileiro gostava de cinema brasileiro. E a TV Brasil está provando que gosta. Das 10 maiores audiências da TV, semanalmente medida, quatro são de cinema brasileiro. O povo ama cinema brasileiro.
 
Você considera que a TV Brasil está fazendo um caminho de construir esse padrão público a partir dessas iniciativas? Ou eles ainda são incipientes e demandariam um investimento maior?

Certamente já são caminhos irreversíveis. Nas audiências da semana retrasada, duas delas são de América Latina, uma de África, uma de DOC TV, quatro de cinema brasileiro. Isso está sendo medido através do Ibope e demonstra que estamos no caminho certo. Quero ver a TV pública brasileira deixar de exibir produção indígena sem revelar os povos indígenas. Quero ver a TV pública sobreviver sem exibir um documentário ou um filme de ficção africano por semana. Isso é irreversível. Outra coisa irreversível é a produção independente. Ela tem muito mais qualidade técnica, humana e tecnológica do que se pode vir a ter na estrutura da TV pública ou mesmo da TV comercial. Porque a TV é um conglomerado de "x" mil funcionários, equipamentos de 5ª, 6ª geração e tal. Eu contrato uma boa produção, exerço meu poder de programação e meu poder editorial e exijo qualidade e preço. No mundo todo é assim. As TVs a cabo no Brasil trabalham com 26 funcionários, incluindo estagiários.
 
Existe uma disputa dentro da TV que a gente que está de fora não consegue entender direito? Aliás, isso até foi matéria na CartaCapital, os cineastas versus os jornalistas…

Existem disputas e existem falsas disputas. Por exemplo, a disputa que foi colocada na CartaCapital, jornalistas versus cineastas, é uma falsa disputa. Agora, uma disputa real, que existe, é o fato de nós termos um projeto que foi gestado há muitas mãos durante décadas, que a gente acredita que são valores brasileiros da diversidade cultural – nós assinamos e lideramos a Convenção da Diversidade Cultural –, a riqueza e a qualidade da produção independente, da informação, isso tudo é o projeto original, porque esse projeto está escrito nos cadernos do Fórum da TV pública, e na Carta de Brasília. Esse documento é fundante da esperança, porque nós conseguimos fazer um pacto. Nós juntamos sindicatos de jornalistas e outros, o FNDC, as associações de produtores independentes, governo, órgãos de controle e fizemos um grande pacto.

Ele foi traduzido em alguns documentos, o presidente Lula lançou esse programa. Mas existe conflito com outro programa que está sendo desenvolvido pelos remanescentes de outras emissoras de televisão que não tem qualquer compromisso com esse projeto a não ser dizer “eu ajudei na Constituição de 1988”. Ajudar, pode ter ajudado, mas nós também, não é verdade?  Então, coisas que nós criamos que estão consagradas hoje como valor da TV Brasil foram sendo apropriadas e tocadas por pessoas sem o menor compromisso e sem a menor referência com esse movimento de criação da TV.
 
Você poderia nomear as pessoas?

Não, não dá. Acho que tem coisas como, por exemplo, o Conselho Curador. Qual é o papel do Conselho Curador?
 
Esse Conselho Curador deveria ter sido eleito, você não acha?

Eu acho. Sou um homem de governo e, acima de tudo, alguém que representa um setor, um campo da cultura. Tenho uma vida muito mais identificada a minha luta setorial no âmbito da cultura e do audiovisual do que a um projeto político partidário, apesar das relações políticas que tenho e que, aliás, tenho orgulho de tê-las. Mas preciso dizer que não estou na TV Pública para servir apenas um governo. Estou trabalhando para um projeto duradouro, para um projeto de Estado. Por isso, não tenho o direito de não ser franco com você a quem conheço de muito tempo e dessas tantas lutas pela democratização das comunicações, discordo inteiramente da forma como foi constituído esse conselho e da forma como ele vem se desmelinguindo. O Conselho hoje mal se reúne…
 
Como assim?

Vários conselheiros pediram demissão, vários são demissionários, o presidente (Luiz Gonzaga Belluzzo) não vai, até porque ele hoje é presidente do Palmeiras. Sinceramente esse conselho deveria convocar uma audiência pública, com as entidades interessadas e legítimas que compõem todo esse rol entre o conteúdo e a comunicação, para discutir o seu papel e os próprios rumos da TV. Hoje uns poucos tem decidido tudo e, infelizmente, mesmo eu que sou diretor muitas vezes não sou convidado a participar dessas decisões.
 
Isso que você está dizendo é muito grave. Você está me falando que há uma relação autoritária na TV até nos espaços de diretoria?

Sim, de certa forma é isso que você entendeu. Não há relação horizontal na TV. Hoje a relação lá é completamente vertical. Quem manda na TV é o Conselho de Administração e o ministro Franklin Martins. Depois que o Orlando Senna, que é uma figura pública reconhecida, e o Mario Borgneth saíram quem assumiu a diretor-geral é uma pessoa completamente sem qualificações para o cargo. Renato, não tenho coragem de dizer outra coisa para você. O Paulo Rufino, responsável pela diretoria-geral, é alguém cujo trabalho, por exemplo, absolutamente desconheço. Não posso dizer o mesmo da diretora de Jornalismo, a Helena Chagas, com quem eu tenho uma excelente relação.
 
E a presidente, a Tereza Cruvinel?

A Tereza Cruvinel não é uma pessoa aética, longe disso, mas como te disse que seria franco nesta entrevista preciso dizer que desconheço qualquer experiência dela em gestão pública. E acho que tem feito uma falta danada a ela. A EBC é uma empresa muito completa e acho que lhe falta experiência para tocá-la. Eu torço muito para que tudo dê certo, porque o ano que vem é um ano eleitoral, nós vamos seguir a partir de 1º de junho uma legislação específica, ou seja, nós temos três meses para fazer todas as coisas e, dentre as nossas atribuições, está a constituição de uma rede nacional.
 
A crítica que você faz à Tereza é bastante específica. Você disse que o problema é que ela não tem experiência de gestão. Esse poderia ser um dos motivos que está levando ao atraso da constituição da Rede Pública?

Sem dúvida nenhuma. Por exemplo, ela devolveu R$ 18 mi aos cofres públicos no ano passado.

Como assim… isso não foi divulgado?

Não. A sua categoria (jornalistas) é muito corporativa. Não foi divulgado. Mas 18 milhões viraram pó, superávit primário.

Qual o orçamento da TV, o que isso representaria?

Foi em torno de R$ 300 milhões em 2008.
 
Mas, por exemplo, qual era o custo da produção de rede, no ano passado?

Era de R$ 12 milhões. Com R$ 12 milhões, eu teria produzido em todas as regiões do Brasil programação infantil, programação científica, história dos rios brasileiros, estradas brasileiras, estradas de tropeiro, turismo, tudo. Poderia ter sido feito no ano passado e estaria estreando agora em março ou abril. Com R$ 6 mi que sobrariam poderia ter sido feito, por exemplo, reformulação dos programas da casa que são importantes, reconhecidos, de grande valor público cultural e informativo.

Outra coisa grave, em termos de gestão: foi aprovado em agosto de 2007 o Plano de Cargos e Carreiras, porque nos temos três anos para promover concursos internos, aprovado pelo DEST, que é o departamento de estatais. Aí a presidente resolveu interferir na negociação, e para o azar dela e nosso, veio a crise internacional. A não ser que seja uma benevolência muito grande do presidente Lula, tudo indica que não teremos o concurso neste ano. Ou seja, perdemos outra oportunidade.
 
Pelo tom da sua entrevista, você parece estar muito decepcionado, você pretende ficar na TV Brasil ou está de saída?

Eu não só pretendo ficar, como sou uma referência no setor audiovisual, dos longas-metragistas, dos curtas-metragistas, dos animadores, dos documentaristas. É uma responsabilidade minha ficar e fazer o debate. E ajudar a construir a TV Pública que nós sonhamos, que nos lutamos para criar. O que acontece é que a gente vê o tempo passando e algumas pessoas se aproximando da TV sempre como salvadores da pátria, mas são pessoas que nunca participaram desse tipo de discussão. O trabalho que nós fizemos está todo aí feito, colocado, reconhecido. Agora, tem gente que porque trabalhou na televisão comercial fazendo programas como "Sex Shop" em Shoptime se acha no direito de dizer que sabe mais.
 
Isso é uma metáfora ou você está dizendo algo que de fato existe?

Não é metáfora não. Tem gente lá assim. Claro que não é uma pessoa que participou do debate da TV pública como você participou. Não é uma pessoa que tem alguma história pela democratização dos meios de comunicação como eu e você temos. E tampouco quer dizer que você seja o máximo ou que eu seja o máximo. Mas há pessoas que não têm a menor referência, aí eu vejo um risco enorme de a TV se perder.
 
O que estou entendendo é que há um grupo que não tem compromisso público e que está se tornando majoritário na TV Brasil, é isso?

Talvez fosse melhor dizer que quando você entra em uma época de crise, aparecem dois tipos de pessoas: os oportunistas e os puxa-sacos. Isso é muito comum e está acontecendo agora na TV Brasil. E me preocupa muito, porque este movimento é histórico da sociedade brasileira, e eu não o vejo sendo conduzido com a responsabilidade que ele merece. E mais: vejo a preocupação de muita gente na Esplanada, nas bancadas parlamentares do setor progressista, nos movimentos sociais, nas áreas setoriais e organizadas em relação a isso.

E por isso decidi que é hora de tornar esse debate público. E escolhi fazer isso para você porque sei dos seus compromissos. E sei que você não vai transformar isso num ataque ao projeto, mas num debate sobre ele. Tenho um nome, uma história e por isso me cabe colocar esse debate de forma legítima. E coloquei isso internamente antes de ter ligar dizendo que aceitaria te dar essa entrevista que na verdade você já havia me solicitado no final do ano passado.
 
E como está sendo realizado esse debate internamente?

A presidente não gostou. Ela sugeriu que eu peça uma licença, que eu me afaste um tempo. Ela me chamou e disse isso, o que te parece? A coisa está ficando grave. O projeto democrático de comunicação e de conteúdo está perdendo a luta interna. Uma luta, aliás, que não deveria existir. Por exemplo, no ano passado por decisões equivocadas da presidência rasgamos R$ 100 milhões em editais.

Havia a possibilidade de se conseguir para a produção independente R$ 60 milhões de um programa chamado PEF (Programa Especial de Fomento) em parceira coma a Ancine (Agência Nacional de Cinema) e R$ 40 milhões que o Ministério da Cultura preparou para a TV pública, chamado “Mais Cultura”, que era destinado ao Audiovisual. Criaram tantas dificuldades que esse dinheiro não veio. Ou seja, rasgamos R$100 milhões. Isso poderia ter significado uma revolução na produção audiovisual brasileira. Literalmente uma revolução. Mas ao contrário, travou-se uma disputa de poder interno, onde rolou a cabeça do Orlando Senna e do Mário Borgneth.
 
O Orlando saiu por causa dessa disputa?

Sim.
 
E na época você decidiu ficar…

Para conduzir o projeto até o outro lado da margem.
 
Pelo que estou entendendo a Tereza Cruvinel está pedindo que você saia…

Ela quer hegemonia. Ela quer fazer a TV dela, não a pública. Infelizmente do jeito que está o projeto da TV pública não sai. O que vai ficar aí vai ser um pastiche. Agora, é preciso dizer também que hoje a TV pública tem uma equipe fabulosa. Eu, aliás, trabalhei como um louco para construir essa equipe. E tirando o jornalismo, tudo que está na TV foi essa equipe que fez. Agora, o presidente Lula não sabe disso. Na verdade, quem entendia e defendia no governo uma TV realmente pública era o Gilberto Gil. Porque quem fez o Fórum de TVs Públicas foi ele. Quem quis peitar a Ancinave (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) foi o Gil. Quem quis peitar a Lei Geral de Comunicação de Massa foi Gil. Quem deveria tocar a TV Brasil era o Gil. Eu acho que se isso tivesse ocorrido ele teria ficado no governo. E hoje teríamos caminhado muito mais, teríamos um projeto a essa altura muito melhor, de altíssima qualidade.
 
Você saiu da Ancine com mandato para ir pra TV pública, hoje você considera que errou?

Abri mão de um mandato eleito pelo Senado em comissão e em plenário. Meu mandato iria até dezembro de 2010. Mas de forma nenhuma me arrependo de ter tomado essa decisão. Eu contribuí demais com a TV Pública e quero continuar contribuindo. Não vou tirar a licença sugerida, minha intenção é continuar na TV e com esse debate público redirecionar seus rumos. Agora, se a presidente quiser me demitir ela pode fazê-lo. Mas não deixarei de fazer o debate por conta disso. Já disseram antes, né? Mas não custa repetir. Sou o mesmo no planalto e na planície. Eu precisava tornar público esse debate. E espero que a presidente da TV tenha tranqüilidade para realizá-lo. Não podemos nos amesquinhar, o que estamos construindo é muito maior. É algo que não pode ficar restrito a fulanizações, a disputas de poder.
 
Mas pelo jeito há uma grande diferença de projetos, é possível trabalhar juntos?

Sim, com republicanismo e legalidade. Em lei, há marco legal, que define competências. República é um pacto.
 
Sinceramente, Leopoldo, qual o seu objetivo ao trazer esse debate a público neste momento?

Nós estamos no mês quatro de 2009 e pela lei só temos até junho de 2010 para tocar as coisas. Depois termina o mandato do presidente Lula. E em TV é tudo demorado, não dá pra decidir hoje e fazer amanhã. O que eu quero com essa entrevista é chamar a atenção das pessoas que são co-responsáveis pela criação desse projeto, um projeto que não tem dono, um projeto público, para os riscos que ele está correndo. Nós temos algumas agendas importantes nesse ano, vai ter uma Conferência Nacional de Comunicação, nós temos conferência da CUT, uma série de preparatórias e acho que a TV pública deve ser o centro de tudo. Eu quero chamar a atenção do movimento social para lutar pela TV Pública, pelo projeto original dela.
 
Ou seja, na tua opinião esse projeto de TV pública está sob alto risco?

Acho que sim. Se um outro setor político vier a ganhar a próxima eleição ele fecha a TV pública com certa tranqüilidade. A atual direção não está conseguindo consolidá-la por uma certa incompetência na gestão. E não estou dizendo que é fácil. Não é. Mas poderíamos estar num outro patamar.
 
Mas sinceramente, não me parece que basta apenas trocar a condução.

Não, você tem razão. É preciso discutir e gerar um novo modelo de negócio. Esse modelo tem que distribuir recursos para a sociedade. E a sociedade precisa em contrapartida produzir com qualidade. Sem demanda interna, você não faz economia. E para que isso se implemente o Conselho é fundamental. Esse Conselho foi feita de uma forma muito esquisita. Por isso, está esvaziado e não tem poder. Por isso, acho que entidades como o Sindicato dos Jornalistas e o FNDC deveriam ir pra cima, exigindo uma audiência pública para que se institua o controle social devido na TV Pública. Esse projeto não é de um governo, não é de um grupo, esse projeto é da sociedade. Então ele tem que ser para todos.
 
Vou insistir, esse não é uma entrevista de quem está se despedindo do projeto. Você não sai da TV pública?

Não saio. Só se me saírem (risos). Sou legítimo, sou orgânico, sou de governo, sou da base que deu origem a criação dessa TV. Não quero dizer com isso que quem vem de uma empresa “x” ou “y” também não mereça respeito. Claro que merece. Mas precisa respeitar os outros também. A respeitar as outras experiências e histórias.

O conflito é entre os oriundos da TV comercial e dos que tinham relação com o Ministério da Cultura?

Não necessariamente. Eu e a Helena Chagas temos uma excelente relação. Ela foi gestora, ela tem experiência de gestão. E nós temos uma relação extremamente respeitosa.

E essa relação não existe com a Cruvinel?

Sinceramente, de certa forma não. A Tereza vem trazendo, por exemplo, consultores e colocando-os acima dos diretores. Está dando a esses consultores poderes maiores do que aos diretores da EBC. Isso se deve a um erro de origem na constituição da empresa. O Brasil tem 117 empresas na União e a TV Brasil é a única onde um presidente da empresa pode nomear diretor, ou seja, onde isso não é atribuição do presidente da República. Tenho receio de que depois do presidente Lula ter tomado a iniciativa de bancar a criação dessa televisão e passar a sua constituição por medida provisória por diferença de apenas três votos no Senado ela venha a se tornar um mico. Porque ela já poderia estar numa velocidade muito maior. Nós poderíamos hoje estar assistindo uma TV pública de alta qualidade. E ainda não estamos.
 
Por quê?

Ineficiência de gestão.

A verticalidade das redes sociais na web

A permanência de hierarquias e verticalidades nas ferramentas de redes sociais é um fato, aponta a Profa. Dra. Suely Fragoso, na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Segundo ela, o “novo modelo distributivo da comunicação em redes digitais implica uma alteração importante, cujos desdobramentos ainda estamos tentando compreender”. As redes sociais na web, explica, são bastante utilizadas para manter laços sociais que já existem, e bem menos para conhecer novas pessoas.

“Parece que as ferramentas digitais para interação social têm sido mais utilizadas para o fortalecimento e a expansão das 'velhas' redes sociais do que para a criação de novas”, assinala. De acordo com a pesquisadora, “muitas pessoas que antes não tinham interesse na internet ou na web foram atraídas para as tecnologias digitais quando perceberam seu potencial para a interação social”. Em seu ponto de vista, essa apropriação da tecnologia digital voltada para fortalecer as redes sociais é extremamente positiva, mas não é um consenso.

Suely Fragoso é professora no curso de Comunicação e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos. Graduada em Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade de São Paulo (USP), é mestre em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), e doutora em Estudos da Comunicação, pela Universidade de Leeds, Inglaterra, com a tese Towards a Semiotic Toy: designing an interactive audio-visual artefact for playful exercise of meaning construction. É autora de O Espaço em Perspectiva (Rio de Janeiro: E-Papers, 2005) e uma das organizadoras de Comunicação na Cibercultura (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001). Escreveu, também, artigos técnicos e vários capítulos de livros.

É possível falar em uma revolução na comunicação a partir do surgimento de novas ferramentas como o Twitter e o Facebook? Por quê?

A popularização da internet (nos anos 1990) aumentou exponencialmente o número de pessoas que passaram a publicizar suas ideias e, ao mesmo tempo, também um grande aumento do número de pessoas a que as mensagens produzidas poderiam chegar, causando uma alteração importante no cenário da comunicação. Ferramentas como o Twitter e o Facebook ajudam a popularizar ainda mais a internet e, portanto, ampliam ainda mais o espectro dessa mudança. Esse é um primeiro modo em que elas afetam o cenário comunicacional, mas elas também têm uma especificidade que é bastante importante e que implica uma guinada no processo – enquanto os websites seguem um modelo de comunicação baseado na ideia de publicação (você publica seu site e os outros podem acessar para ler/ver), o Facebook, Twitter e outros sistemas baseados em redes sociais têm um funcionamento mais horizontal, que, para diferenciar da ‘publicação’, poderia ser descrito, por exemplo, pela palavra “disseminação” (você comunica a outros que comunicam a outros e assim por diante).

Essa descrição enfatiza a diferença entre esses três modos de distribuição, mas é preciso estar atento também para o que ela esconde, que é a permanência de hierarquias e verticalidades nas ferramentas de redes sociais. Embora possa parecer perfeitamente horizontalizada, a comunicação em sistemas de rede social também tem uma estrutura vertical, regida por centros e hierarquias. O dinamismo e a complexidade das redes sociais são decisivos para essa verticalidade, que pode ser percebida com alguma facilidade a partir do reconhecimento das diferentes quantidades de conexões estabelecidas pelos participantes desses sistemas. Algumas pessoas têm mais ligações que as outras (mais seguidores no Twitter, mais amigos no Facebook) e isso acarreta variações de seus impactos potenciais no processo de disseminação. Falo da diferença entre uma pessoa com meia dúzia de seguidores no Twitter, cujas mensagens a princípio seriam lidas por no máximo aquela meia dúzia, e outra que tem milhares de seguidores, e portanto um público potencial de milhares de leitores.

Reconhecer as limitações da horizontalidade dos processos de comunicação nos sistemas de rede social não significa, entretanto, desvalorizar suas diferenças em relação à comunicação que chamávamos de “massiva”, na qual havia pouquíssimos centros de distribuição (costuma-se dizer “um” centro, mas na maioria dos casos seria mais preciso reconhecer a existência de “alguns” – poucos – centros produtores/emissores). O novo modelo distributivo da comunicação em redes digitais implica uma alteração importante, cujos desdobramentos ainda estamos tentando compreender.

Como essas ferramentas ajudam a alterar a concepção de subjetividade e intimidade de seus usuários?

Em primeiro lugar, essas ferramentas são adicionadas às fontes de informação que temos sobre o mundo e sobre nós mesmos e, portanto, se integram ao amplo e complexo conjunto de fatores que afetam nossa subjetividade. Além disso, como eu já mencionei, elas permitem que um número maior de pessoas fale a um número igualmente maior de outras. Voltando ao exemplo dos dois usuários imaginários do Twitter, um com seis seguidores e o outro com milhares, é possível pensar na situação de ambos com a seguinte analogia: a pessoa que tem meia dúzia de seguidores se manifesta no Twitter como quem está na sala de sua casa, na presença de uns poucos amigos e/ou parentes. Quem tem milhares de seguidores, por outro lado, se manifesta como se estivesse diante de um auditório enorme e lotado. Ainda estamos aprendendo a lidar com essa nova escala do alcance possível das nossas vozes, mas já é bastante evidente que, ao reconfigurar nossas possibilidades de relação com os outros, elas alteram as significações que instituímos para nós mesmos.

Essa possibilidade de alcançar grande visibilidade impacta os sentidos do público e do privado em uma diversidade de maneiras. Por exemplo, algumas pessoas recusam essa visibilidade e procuram evitar níveis de exposição que já se tornaram corriqueiros, como a divulgação de fotografias em álbuns no Orkut ou Facebook, ou comentários sobre atividades cotidianas no Twitter. Outros preferem cultivar a visibilidade e se esforçam para atrair e manter o “seu público”, por exemplo, procurando divulgar um fluxo contínuo de informações relevantes. Há aqueles que encontram na publicização de sua própria intimidade o caminho para o “sucesso”, o que não deve ser confundido com a situação, bastante diferente, de divulgação não autorizada da intimidade alheia. Finalmente, há os casos de exposição acidental da própria intimidade, por exemplo quando uma webcam é esquecida ligada ou quando se divulga uma informação sem dar conta de sua inconveniência para alguns públicos. Essas ações, tanto as positivas quanto as negativas, tanto as legítimas como as criminosas, não constituem novidade em si mesmas – o que é novo é a enormidade da escala em que podem agora reverberar.

O que esses comportamentos revelam sobre o jovem contemporâneo e a formação de redes sociais na web?

Eu vejo mais similaridades que diferenças entre o comportamento dos jovens contemporâneos e o dos jovens de outros tempos. Quando se olha através do aparato tecnológico que sustenta as interações sociais em redes digitais, ao invés de para ele, percebe-se que tanto o desejo de visibilidade quanto os caminhos escolhidos para alcançá-la permanecem praticamente os mesmos. O que mudou, mais uma vez, foi o alcance dessa visibilidade e, com ele, as reverberações das estratégias utilizadas para alcançá-la.

Quanto à formação de redes sociais, há indicações de que essas ferramentas de interação social são utilizadas com maior frequência para cultivar os laços sociais já existentes, e mais raramente para conhecer novas pessoas. Ou seja, é mais comum conversar no MSN com os colegas de escola do que com pessoas desconhecidas. Assim também, a maior parte das relações sociais nascidas da interação em redes digitais não decorre de encontros aleatórios, mas de redes sociais pré-existentes: as pessoas se aproximam em função de amizades mútuas. Em suma, parece que as ferramentas digitais para interação social têm sido mais utilizadas para o fortalecimento e a expansão das “velhas” redes sociais do que para a criação de novas.

O jornalismo tende a mudar a partir de inovações como o Twitter? Por que e em quais aspectos?

O Twitter encontrou uma vocação para a divulgação de informações de cunho menos pessoal que potencializou sua popularização e reforçou sua utilização como veículo “em tempo real”. Nos últimos anos, com a expansão das redes sem fio, aumentou perceptivelmente a quantidade de pessoas que utilizam o Twitter para comentar palestras que estão assistindo ou congressos dos quais estão participando, por exemplo. Isso criou uma situação muito peculiar, pois a presença a um evento agora ocorre simultaneamente nos registros on-line e off-line: quem está fisicamente presente, mas não está conectado experimenta uma limitação que, em alguns aspectos, remete à da situação inversa, de quem acompanha o evento apenas pela internet.

Evidentemente é possível utilizar o Twitter para acompanhar e comentar acontecimentos que interessam a públicos muito mais numerosos que eventos científicos, como votações no Congresso Nacional, grandes acidentes, finais de futebol etc. As empresas midiáticas e o jornalismo institucionalizado estão muito conscientes do potencial intrínseco à expansão da popularidade do Twitter e já marcaram presença no sistema. Para além de "seguir" pessoas, acompanham-se agora também os tweets da Zero Hora, Folha de S. Paulo, Deutsche Welle, Reuters etc. No momento, parecem predominar os usos informativos, mas os exemplos de uso em eventos científicos sugerem possibilidades para o jornalismo opinativo e para o debate.

E, quanto ao Facebook, qual é a sua perspectiva junto ao comportamento de seus usuários no que diz respeito a uma mudança de paradigma de relacionamentos?

Facebook é um sistema de rede social como o Orkut. As diferenças entre os dois existem, mas me parecem secundárias à função de registro e fomento das redes sociais pessoais, de modo que acredito que a adesão ao Facebook terá desdobramentos muito semelhantes aos do Orkut.

Em termos de exclusão digital, como essas duas ferramentas podem aprofundar ou diminuir esse processo?

O Orkut teve um impacto enorme nas ações de inclusão digital no Brasil. O mesmo é verdadeiro para o MSN [mensageiro instantâneo da Microsoft], que é uma ferramenta de interação síncrona particularmente popular em nosso país. Muitas pessoas que antes não tinham interesse na internet ou na web foram atraídas para as tecnologias digitais quando perceberam seu potencial para a interação social. O número de pessoas que usou um computador pela primeira vez para “fazer um Orkut” é enorme e não são poucos os que buscam informações nos grupos temáticos (que o sistema chamada, inadequadamente, de “comunidades”).

Eu considero essa apropriação da tecnologia digital voltada para o fortalecimento das redes sociais extremamente positiva, mas esta é uma opinião que está longe de qualquer consenso. Nos estado de São Paulo, por exemplo, o uso de ferramentas sociais em telecentros foi proibido (pelo Decreto nº 49.914, de 14 de agosto de 2008). Isso porque o Orkut, MSN e similares são frequentemente vistos como passatempos inúteis, fúteis e, de acordo com o texto daquele decreto, até como fomentadores de criminalidade. Seriam, portanto, uso inadequado dos equipamentos disponibilizados nos telecentros, que deveriam estar servindo a outras causas, como a capacitação profissional, educação etc. Eu me pergunto se as pessoas que compreendem assim o uso das ferramentas sociais já se deram ao trabalho de visitar uma quantidade significativa de perfis do Orkut criados e mantidos por pessoas menos acostumadas às tecnologias digitais.

Os ganhos de refinamento e domínio das ferramentas são perceptíveis nos registros que vão se acumulando ao longo do tempo em cada perfil, por exemplo na “photoshopagem” de fotografias, na adição de elementos encontrados em outros endereços da web, nas informações e ajuda prestadas por “amigos” do Orkut (assim como “comunidades”, “amigo” é uma palavra inadequada para descrever as conexões no Orkut). Há casos em que a própria redação das descrições e recados parece se aprimorar, talvez em decorrência do uso mais frequente da linguagem verbal escrita.

Além disso, como cabe a uma ferramenta de rede social, o Orkut é muito usado para manter contato com a família e os amigos, o que é cada vez mais importante nos tempos de alta mobilidade geográfica em que vivemos. Para além da manutenção das redes afetivas, o sistema viabiliza a circulação de informações sobre empregos, saúde, alimentação e muitos outros assuntos, entre os que estão fisicamente próximos e também entre os mais distantes. Os benefícios dessas apropriações sociais da interação tecnológica ainda estão por ser devidamente percebidos e discutidos.

No caso específico do Orkut, o que a adesão a comunidades como “eu odeio quem odeia” demonstram a respeito da socialização, necessidade de aprovação e gostos dos internautas?

Eu escrevi um artigo cujo título faz menção a essas comunidades “eu odeio quem odeia”, que para mim são um retrato de uma agressividade da cultura brasileira que o senso comum reiteradamente tenta negar. Registros desse tipo estão espalhados por todo o Orkut. O texto ao qual dei esse título usa como exemplo a famosa “tomada” do Orkut em 2004, um movimento violento e xenofóbico que não tinha como objetivo apenas aumentar o número de brasileiros no Orkut, mas expulsar todos os não-brasileiros (especialmente os estadunidenses, vistos como os “donos” do Orkut porque o serviço foi criado e é mantido pelo Google).

Uma das muitas práticas adotadas na época consistia em entupir com mensagens em português as “comunidades” em inglês até tornar insuportável a participação para quem não entendesse a nossa língua. Bastava entrar no Orkut para encontrar “instruções” desse tipo, mas ao mesmo tempo repetia-se na mídia (e também nas universidades) que o elevado número de brasileiros no Orkut era uma prova de que somos um povo amigável, feliz, que gosta de compartilhar e conviver com os outros. Eu conheço estrangeiros que tentaram se comunicar amigavelmente em português naquela época e foram objeto de escárnio pelos seus erros de ortografia ou conjugação de verbos e me pergunto como descreveríamos quem nos tratasse do mesmo modo no Facebook ou no Twitter, por exemplo.