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“TV foi a maior tragédia que já ocorreu para a humanidade”

[Título original: Criança e jovem sem tevê: postura radical ou sensata?]

O que ele diz é polêmico, pois está na contramão de tudo o que muitas propostas pedagógicas defendem: o uso integrado da mídia à educação. Professor titular aposentado do Departamento de Ciência da Computação, do Instituto de Matemática e Estatística da USP, Valdemar Setzer é um crítico feroz da mídia, em especial da televisão. Desde 1995, ele mantém um site onde publica seus artigos e ensaios sobre os malefícios da mídia no dia a dia da audiência infanto-juvenil. "Deixe as crianças serem infantis: não lhes permita o acesso a TV, jogos eletrônicos e computadores com internet", é a mensagem que abre o seu site.

A revistapontocom ouviu o professor, que tem pontos de vista bastante radicais para os parâmetros do cotidiano familiar e escolar do início do século 21. Ao publicar suas ideias, a revista cumpre o papel de provocar o debate sobre questões que dizem respeito à educação com ênfase na comunicação, questões que dizem respeito à interface mídia-educação.

Em sua avaliação, as crianças não deveriam ter acesso aos meios de comunicação eletrônicos. Por quê?
Uma das principais razões é que os meios eletrônicos produzem um desenvolvimento intelectual e emotivo indevido. Com isso, crianças e adolescentes perdem uma parte essencial da sua infância e juventude. Metade da humanidade é diariamente colocada em estado de sonolência e é bestificada pelo aparelho de TV e pelos programas transmitidos. Assim, parece-me que a TV foi a maior tragédia que já ocorreu para a humanidade. Todas as pessoas podem ser contra armas e guerras, pois veem a destruição e sofrimentos que elas causam. No entanto, pouquíssima gente está vendo os problemas de saúde e sociais, bem como a destruição da vontade, dos sentimentos e do pensamento que a TV provoca, pois os resultados não são imediatos, e muitos são psicológicos ou psíquicos, invisíveis fisicamente. Existe um verdadeiro ataque da TV no sentido de destruir a humanidade. Esse ataque vai ser cada vez pior. Veja a introdução recente de canais transmitindo conteúdo específico para bebês entre zero e dois anos, como é o caso do horroroso canal Baby TV.
Assisti a um vídeo contendo programas desse canal. Fiquei chocadíssimo com o que vi. Como sempre, figuras grotescas, nada artísticas, balbuciando em lugar de falar, como eu tinha ouvido dizer do programa Teletubbies. Bebês devem ouvir muito a fala correta, para a desenvolverem; pais jamais deveriam imitar a fala dos bebês com seus filhos bem pequenos – não é isso que eles devem imitar e aprender. Não bastava o ataque da TV às crianças, aos adolescentes e adultos, até os bebês estão agora sendo atacados. O que é preciso fazer para conscientizar os pais que eles estão cometendo um verdadeiro crime com seus bebês ao colocarem para assistir a tais programas?

Em que o senhor se fundamenta para defender esta questão?
Estudos e observações e, principalmente, na conceituação e na prática da Pedagogia Waldorf, existente com sucesso desde 1919. Uma das consequências dos meios eletrônicos, e em particular da TV, é uma aceleração do desenvolvimento, principalmente mental. Infelizmente, muitas pessoas acham que essa aceleração é desejável, quando ela é, na verdade, altamente prejudicial. O problema geral da aceleração precoce deve-se ao fato de que o ser humano é um todo, é um ser holístico. Qualquer desenvolvimento unilateral significa a produção de um desequilíbrio. Em educação, há idade para tudo. E é esse um dos princípios fundamentais da Pedagogia Waldorf, que é uma das principais fontes de seu sucesso.
Nela há um cuidado extremo em não acelerar o desenvolvimento das crianças e jovens, com especial ênfase ao cuidado de não haver um desenvolvimento intelectual precoce. Por isso, nessa pedagogia, as crianças só aprendem a ler, e muito vagarosamente, a partir dos seis anos e meio ou sete anos de idade. Visite um jardim de infância Waldorf (prefiro essa linda e tradicional denominação em lugar de Educação Infantil) para entender o que quero dizer com a preservação da infantilidade. Estou para encontrar uma única pessoa que não se entusiasme com o que é feito nesses jardins e que não reconheça que, sob esta pedagogia, as crianças são muito mais felizes e infantis.

O senhor não está sendo muito radical com relação à mídia?
A educação sempre foi radical, evitando qualquer coisa que faça mal às crianças. Não existe meio termo: se algo é prejudicial ou perigoso para as crianças ou adolescentes, deve ser evitado. A grande diferença entre minha posição e a quase totalidade de pais e educadores é que estou ciente dos males causados pelos meios de comunicação, em especial a TV, principalmente com crianças e adolescentes. Não estou totalmente sozinho, se bem que muitas vezes me sinto clamando no deserto. Há outros autores e muitas pesquisas científicas que comprovam o que estou afirmando.

Por exemplo, quais seriam os males da televisão?
Há uma lista de questões: excesso de peso e obesidade; riscos de doenças; problemas de atenção e hiperatividade; agressividade e comportamento antissocial; medo e depressão; intimidação a colegas (bullying); indução de atitude machista; dessensibilização dos sentimentos; indução de mentalidade de que o mundo é violento e violência não gera castigo; prejuízo para a leitura; diminuição do rendimento escolar; prejuízo para a cognição; confusão de fantasia com realidade; isolamento social; problemas de relacionamento; aceleração do desenvolvimento; prejuízo para a criatividade; autismo; vício; indução ao consumismo; condicionamento e não informação; paralisia mental; indução de mentalidade de competição; destruição da vida familiar; falta de ritmo e sono saudável; massificação; indução de impulsividade e negatividade; indução de admiração pelas máquinas; e indução de mentalidade materialista. Todos esses pontos estão justificados, com citações de pesquisas científicas que os comprovam, em meus artigos "A TV antieducativa" e "Efeitos negativos dos meios eletrônicos em crianças e adolescentes".

No mundo tecnológico, como evitar que as crianças assistam à TV?
O mais fácil é não ter o aparelho. Com isso, corta-se o mal pela raiz, evitando problemas de controle de uso e a luta interior para resistir à tentação de vê-la. Isso é especialmente benéfico para as crianças, pois elas não conseguem entender por que alguns programas fazem mal, ou mesmo que ver TV é um mal em si, como mostro em meus artigos. O problema com elas ainda se agrava quando os pais assistem à TV e dizem que elas não devem assisti-la. Em alguns casos, alguém da família acha absolutamente necessário ter um aparelho, para assistir a algo específico. Nesses casos, o aparelho de TV não deve estar disponível.
Não instalar o aparelho de TV no espaço onde são feitas as refeições também é importante. As pessoas também não deveriam instalar, de modo algum, um aparelho de TV no quarto das crianças. Relatório da Associação Americana de Pediatria sobre crianças, adolescentes e televisão recomenda, explicitamente, a remoção das televisões dos dormitórios das crianças. Defendo também a não instalação de TV a cabo, pois as tentações serão ainda maiores. É comum o argumento de que restringir o uso da TV, entre crianças e adolescentes, é introduzir a censura dentro de casa. Acontece que não se deve confundir censura para adultos com censura para crianças e adolescentes. Esta sempre existiu e deverá existir.

E o uso da TV na escola? Como o senhor analisa esta interface?
Qualquer uso da TV na escola antes dos 13 ou 14 anos deve ser evitado. Em particular, fico extremamente chocado ao ver várias creches mantendo TVs ligadas o tempo todo. Os responsáveis certamente não estão cientes do crime que estão cometendo com as crianças. A partir dos 13, 14 anos, se um professor achar importante mostrar ilustrações do que está sendo ensinando, por exemplo, em Geografia, usando um DVD, o trabalho será muito mais rico do que simplesmente projetar dispositivos ou mostrar livros. Só que é necessário levar em conta as características do aparelho de TV e o estado normal de sonolência do telespectador. Assim, o vídeo deve ser mostrado em períodos de tempo muito curtos, de poucos minutos. Após esse período, deve ser desligado e o professor deve discutir com os alunos o que eles viram para, em seguida, repetir o trecho visto. Assim evita-se o pior efeito da TV: induzir um estado de sonolência, semi-hipnótico, no telespectador.
Podemos ir além da questão da TV. Hoje, muitas escolas disponibilizam para seus alunos computadores e internet. Professores estão pedindo para seus alunos fazerem trabalhos usando a internet. Eles estão cometendo um crime educacional. Em particular, a internet é extremamente perigosa para crianças e adolescentes, pois eles são todos ingênuos, como bem salientou Gregory Smith em seu livroComo proteger seus filhos na internet, cuja edição brasileira está para ser lançada pela editora Novo Conceito, baseada em parecer meu muito favorável. Crianças e adolescentes só querem brincar com os meios eletrônicos, não os usam para coisas sérias. Numa pesquisa do Datafolha, constatou-se que, de três mil usuários, apenas 1% usava a internet para estudo. Se fossem contabilizados somente crianças e adolescentes, essa porcentagem seria muitíssimo menor. Pesquisas já mostraram que quanto mais o computador é usado, pior é o rendimento escolar dos alunos.

Então, as experiências entre mídia e escola não podem ser benéficas para a constituição dos alunos?
Os prejuízos são infinitamente maiores do que os benefícios.

Qual é o papel da escola neste mundo midiático?
Alertar os pais e alunos para que não usem os meios eletrônicos. O problema é que os professores ignoram os males que eles produzem e embarcam na onda de alta tecnologia, como se ela fosse educacionalmente benéfica, quando a realidade é a contrária.

Qual é o papel dos pais (na educação de seus filhos) neste mundo midiático, neste mundo de nativos digitais?
Estudar e observar os males que os meios eletrônicos fazem e, chegando às mesmas conclusões que eu, evitar que seus filhos crianças e adolescentes os usem, como eu fiz com meus filhos e minhas três filhas estão fazendo com meus seis netos.

“Rever política de concessões é prioridade na Confecom”

[Título original: Confecom: os novos paradigmas.]

A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que será realizada em dezembro, tem uma importância histórica porque o Brasil jamais fez um debate público sobre sua política de comunicação. Os diferentes segmentos da sociedade e mesmo os partidos políticos demoraram muito a dar a merecida importância a este tema, embora os meios de comunicação social tenham fundamental importância na vida do país e no desenvolvimento da democracia. De outro lado, os empresários da comunicação, os donos de jornais, revistas, rádios e TVs sempre se opuseram a este debate, temerosos de que a definição de uma política de comunicação social venha interferir nos seus negócios e na “liberdade de imprensa”.

O movimento pela democratização da comunicação existe pelo menos desde a Constituinte de 1988. Depois da Constituinte, e até como resultado dela, alguns segmentos organizaram o Fórum Nacional da Democratização da Comunicação (FNDC). A partir daí se estabeleceu um debate sobre o tema. Mas, como lembra o jornalista Marcos Dantas, professor do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, trata-se de um debate difícil. Mesmo nos meios acadêmicos, ele praticamente não existe. Há, em todo o país, professores e pesquisadores que debatem essa questão isoladamente, sem uma institucionalidade. Durante muito tempo, a discussão ficou restrita a sindicatos de jornalistas e algumas entidades da área. Além disso, os meios de comunicação não pautam essa discussão, e tudo o que se discute na sociedade é pautado por eles. Daí a importância de o governo ter convocado a Confecom, cuja organização tem envolvido muita polêmica. Nesta entrevista, Dantas, um estudioso do papel dos meios de comunicação e de sua influência social, traça um panorama histórico da comunicação no Brasil e discute como será o futuro.

Como se chegou à convocação da Conferência?
Há três ou quatro anos, começou a crescer no Brasil o movimento pela convocação da Conferência, por meio das comissões pró-conferência. Organizou-se uma comissão nacional, que funcionava em Brasília, e começaram a se formar as comissões estaduais. Em alguns estados funcionou melhor, em outros pior. Essa comissão nacional conseguiu uma articulação no Congresso Nacional, pela ação de deputados ligados aos partidos de esquerda (PT, PSOL, PSB, PCdoB). Com isso, foi possível construir uma massa crítica, adensar o processo para arrancar a Conferência, que tinha de ser convocada pelo Executivo. Agora existe uma comissão organizadora formalmente nomeada pelo presidente da República e integrada por representantes do governo, das empresas e da sociedade civil não-empresarial. Essa estrutura deve se repetir, na medida do possível, nos estados e municípios.

E já há uma disputa na comissão organizadora…
Há um enorme impasse. A comissão organizadora precisa baixar um regimento estabelecendo como a Conferência será realizada. Os interesses opostos são muito fortes. O segmento de radiodifusão queria que o regimento definisse a agenda, a pauta da conferência, e queria que isso se resumisse à discussão de regulamentação da internet. O setor social quer discutir um enorme contencioso do campo da comunicação social, que tem a ver com política de concessão, com regulamentação do conteúdo de rádio e TV nos termos da Constituição brasileira, que nunca foi regulamentado.

Que contencioso é esse?
A Constituição de 1988 tem um capítulo sobre Comunicação Social. Esse capítulo define a missão da comunicação social e, sobretudo, a missão da radiodifusão. Porque a radiodifusão é um instrumento fundamental de cultura, educação, informação. A televisão está presente em 99% dos lares e a grande maioria da população se informa e se forma pela televisão, quando não pelo rádio. Desde que o rádio, o primeiro instrumento de comunicação eletrônica de massa, começou a se organizar economicamente e socialmente, nos anos 1920, foi visto como um instrumento de política de Estado. Na maioria dos países, o Estado monopolizou o rádio, entendendo sua capacidade – e depois a da televisão – para formar mentes e mobilizar opiniões.
No Brasil, até os anos 1960, não havia lei muito clara em relação ao rádio. Havia uma rádio estatal forte, a Rádio Nacional, que foi muito importante na formação da mentalidade brasileira ao longo dos anos 1940 e 1950. Havia rádios comerciais, mas não regras claras de concessão, cassação, regulamentação, nada disso. Em 1962, o então presidente Jânio Quadros cassou uma rádio e deflagrou-se uma mobilização no sentido de que era preciso organizar juridicamente esse cenário. Naquele ano, foi redigido o Código Brasileiro de Telemunicações. Uma das questões mais importantes definidas pelo Código foi que só a União, em nome da federação, pode conceder frequências de rádio e de TV. O Código estabeleceu isso em um plano muito técnico. A única questão política ali, que depois nossa Constituição abrigou, era a necessidade de que o concessionário fosse brasileiro nato ou naturalizado. Que fosse uma pessoa física. Isso, na verdade, é uma herança dos tempos em que o rádio era visto como uma questão de segurança nacional.
Em 1964, houve o golpe e tudo o que o Código organizou foi executado pelos militares. Que, diga-se de passagem, efetivamente modernizaram as comunicações deste país. Houve uma revolução nas comunicações brasileiras no período que vai de 1965, com a criação da Embratel, até 1985. Depois surgiram novas questões. Não apenas porque começou o período democrático, mas porque nos anos 1960 o celular não existia, a TV por assinatura não existia, a internet não existia, a TV digital não existia. O satélite estava nascendo naquele momento.

O que mudou com a Constituição de 1988?
A Constituição estabeleceu, no artigo 221, uma novidade fundamental em relação ao Código. Estabeleceu princípios de uma política de conteúdos. A finalidade cultural e educativa da radiodifusão. Definiu a radiodifusão como um serviço público, que pode ser concedido a agentes privados, mas tem obrigações públicas a cumprir: cultura, educação, informação de alto nível e regionalização da programação, para valorizar outros setores culturais do país. Mas uma coisa é estabelecer isso em uma Constituição, outra é colocar em prática. Precisa haver uma lei para dizer como esses aspectos vão ser executados. E essa lei nunca existiu. O Brasil não tem uma lei de comunicação. Temos a Lei do Cabo e a Lei Geral das Telecomunicações, que tratam do serviço de transporte de comunicação. Mas isso também mudou. Aparentemente, a Claro ou a TIM são operadoras de telecomunicação. Operar telecomunicação é transportar voz, dados. Mas hoje dá para ver TV no celular, entrar na internet pelo celular, baixar música. Isso não é mais telecomunicação. Hoje, essas operadoras também são provedoras de conteúdo.

E quais são os interesses em disputa?
Quem controla a comunicação, controla o poder político e o poder econômico. Nessa questão não há acordo, na sociedade brasileira. E é esse o problema que atravanca a comissão organizadora da Confecom. O que nos mostra a experiência internacional, principalmente na Europa, é uma tendência de se considerar a convergência e romper com a divisão entre radiodifusão e telecomunicações, que não tem mais sentido, e considerar uma nova divisão, que seria entre conteúdo e infraestrutura. Existe uma infraestrutura para levar conteúdos e existe a produção de conteúdo. E você passa a regulamentar esses dois blocos, em vez de regulamentar por segmentos verticalizados, que estão sendo ultrapassados pela evolução tecnológica.
Sempre cito, como exemplo, a regulamentação inglesa. Poucas pessoas sabem, mas a BBC não é uma emissora de televisão. É uma programadora de televisão. As frequências usadas para chegar na casa do espectador são operadas por uma empresa chamada Crown Castle. Então, tem uma programadora de TV que não detém mais a frequência VHF, assim como a Fox não detém o cabo da NET nem a frequência do satélite Sky. Ela chega nas casas por outros distribuidores, de outras empresas.
A separação democratiza a produção e o acesso à informação. Se você define os elementos da cadeia produtiva (quem produz, quem programa, quem empacota, quem distribui), passa a ter poder (e isso é papel do Estado) de criar regras que impeçam acordos, dentro da cadeia, que gerem monopólios ou que obriguem os diferentes segmentos da cadeia a abrir espaço para outros fornecedores – que não sejam necessariamente comerciais, comandados apenas pela audiência. E isso tem como consequência democratizar e pluralizar o acesso e a produção. A TV por assinatura funciona assim: se a revista ARede criar um canal de TV, não entra na Net se a Globosat (que é do mesmo grupo econômico da Net) não concordar. Existe um acordo contratual de que qualquer proposta para transmitir um canal na rede da Net tem de receber a concordância da Globosat. Então, tem canal que não entra na Net. Agora, se você identifica esses elementos da cadeia, se cria um órgão regulador para intervir nessas coisas, começa a abrir espaço. Se estabelece, como a Lei do Cabo estabeleceu, que é obrigatório ter um canal do Senado, um canal do Judiciário, que tem de ter espaço para canal comunitário, tem que transmitir os canais abertos… tudo isso é o Estado quem decide, por lei.

Qual é a maior demanda da sociedade civil em relação à política de comunicação?
Rever, por exemplo, a política de concessão, sobretudo porque ao longo desses anos, desde o Código de 1962, já não se sabe direito quem tem concessão para quê. Sem falar que muitos parlamentares têm concessões ilegalmente, por meio de laranjas. Isso, sem dúvida, precisa ser revisto. Mas você poderia abrir espaço para rádios e tevês comunitárias. Esse é um aspecto que o pessoal está querendo: um espaço maior para a manifestação da sociedade não comercial. Também se reivindica a regulamentação. A lei brasileira estabelece, por exemplo, que o concessionário está obrigado a ocupar aquela concessão com programação. Ou devolvê-la. Mas não existe regra sobre como se ocupar o espectro. Então, uma porção de gente ocupa com leilão de gado, venda de tapete, igrejas. E não é ilegal, porque não existe regra. Essas coisas têm de ser regulamentadas.

Por que os radiodifusores consideram prioritário regulamentar a internet?
Confesso que ainda não entendi o movimento dos radiodifusores. Não sei se não perceberam o mundo, não entenderam direito o que vem por aí. A TV brasileira aberta, comercial, ainda é o grande veículo de comunicação no Brasil. TV a cabo e internet são para 10%. Pode ser, também, que estejam fazendo uma cortina de fumaça, tentando confundir. Quando eles propõem regulamentar a internet, uma coisa tão difícil de regulamentar e que ao mesmo tempo gera uma grande reação, criam uma polêmica em um campo que não afeta seus interesses comerciais e causa grande confusão. A tendência é a população consumidora no Brasil daqui a cinco, dez anos, estar na TV paga, no celular, na internet. Não mais na TV aberta. Em países como Estados Unidos, Japão, Holanda, Itália, Inglaterra, França, a TV aberta está desaparecendo: 90% das residências americanas têm TV por assinatura e uns 60% têm banda larga em casa.

Quais as questões fundamentais para o futuro?
Duas coisas são importantes e têm que vir unidas. Uma é a universalização da banda larga. Precisamos de uma política que faça com que, em um prazo exequível, digamos, dez anos, a banda larga seja tão disseminada no Brasil quanto é a TV hoje. É óbvio que isso demanda uma política pesada de Estado; senão, não vai acontecer. Outra é ter uma política de conteúdo. Assegurar que, por meio dessa infraestrutura, se garanta aos mais variados produtores de mídia a capacidade de se expressar, de produzir, de fazer com que sua informação, seu produto, sua ideia, sua mensagem esteja ali, da maneira que você queira colocar. Pode ser uma página de internet, um canal de rádio comunitária, de TV comunitária… É preciso assegurar o espaço, pois não há capacidade infinita de transporte, há um número limitado de canais de TV, de áudio, de TV sob demanda, de canais interativos.

Por que as discussões sobre comunicação social não mobilizam outros setores?
Falta, na sociedade brasileira, uma visão clara sobre comunicação. O problema da comunicação fica restrito aos comunicólogos. O do petróleo, aos petroleiros; o de saúde, ao pessoal da saúde. Não se discute isso em um sentido sistêmico, em um projeto de país. Faltam educadores, falta a turma de saúde nesse debate. Faltam também os cineastas. Todos os que criam conteúdo têm de estar nessa discussão, porque política de comunicação social é também política de conteúdo. E a política de conteúdo deve assegurar não apenas os conteúdos comerciais, mas um espaço amplo para a produção não comercial, a produção social, a produção cultural. Isso implica não só espaço para transmitir, mas apoio do Estado, fomento para produções. Uma questão que me preocupa muito é a do conteúdo nacional, inclusive no espaço comercial. Nada justifica que você não tenha cotas para produção nacional até mesmo nos canais estrangeiros. Esse é um princípio aceito internacionalmente. Os países têm direito a proteger sua cultura. Na Europa, os países da comunidade são obrigados a implantar uma política de cotas para a produção europeia. Cada país tem sua política de cotas da produção nacional.

Como definir uma política diante de posições tão divergentes?
É preciso desarmar os espíritos e construir consensos. Em toda discussão tem de haver concessão, a democracia passa por aí. Não dá para querer tudo e não perder nada. Os noticiários, por exemplo, têm de ser mais neutros, é preciso abrir espaços para vozes divergentes nos meios de comunicação. Na TV brasileira há absolutos consensos, não há espaço para o debate, para a veiculação de posições efetivamente antagônicas. Tem que fazer concessões, entender que temos uma sociedade plural. O papel do governo seria construir esse consenso.

Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RJ. Foi Secretário de Educação à Distância do MEC, secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações, representante do Poder Executivo no Conselho Consultivo da Anatel, representante do MEC no Conselho Deliberativo e no Comitê Gestor do Programa TV Digital, representante do governo no Comitê Gestor da Internet-Brasil.

“Liberdade de expressão convive com outros direitos”

Por Luiz Egypto – Observatório da Imprensa

[Título original: O direito na imprensa]

Este Observatório [da Imprensa] apraz-se em anunciar a chegada do jurista Dalmo de Abreu Dallari ao seu time de colunistas regulares. Ele escreverá quinzenalmente sob a retranca "O direito na imprensa" e seu foco preferencial serão as "imperfeições da imprensa no tratamento de matéria jurídica", como adianta na entrevista a seguir.

Dallari nasceu em Serra Negra (SP) há 77 anos, neto de imigrantes italianos. Em depoimento ao site Direito do Estado, ele lembra da biblioteca de sua mãe e da sua paixão pelos livros – o que foi decisivo para que o jovem Dalmo se interessasse pela leitura – e do hábito de seu pai ler o jornal, em voz alta, a uma platéia de colonos italianos reunidos em sua loja de sapatos para, em seguida, explicar as notícias lidas – o que teria despertado naquele garoto a vocação para a docência.

Aos 15 anos transferiu-se para a capital São Paulo, onde estudou e descobriu bibliotecas públicas que permitiam o empréstimo de até quatro livros por quinzena. Foi uma festa para o ávido leitor. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1953. Estudava à noite e durante o dia trabalhava como propagandista de produtos farmacêuticos. Como lia muito e gostava de escrever, já no primeiro ano assumiu a função de redator-chefe do jornal do Centro Acadêmico XI de Agosto. Graduou-se em 1957 na faculdade da qual posteriormente foi diretor e, hoje, é professor emérito. Desde 1996 é professor da cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância, criada na Universidade de São Paulo. Alguns dos seus livros são “Elementos de teoria geral do Estado”, “O poder dos juízes”, “O futuro do Estado”, “Direitos humanos e cidadania”, “O que é participação política” e “O que são direitos da pessoa”.

Eis sua entrevista, feita por e-mail.

Professor Dalmo, seja bem-vindo ao Observatório da Imprensa. Como será sua coluna "O direito na imprensa"? Quais os temas prioritários desse espaço
Participar do Observatório da Imprensa é, verdadeiramente, um privilégio e também uma enorme responsabilidade. O grande prestígio do Observatório e o respeito de que ele goza oferecem a possibilidade de falar a um público muito numeroso e também muito exigente, que não recebe passivamente as informações, os comentários e as críticas, mas tem opinião própria e avalia o que está sendo transmitido.
Tenho sido crítico, numa roda íntima, das imperfeições da imprensa no tratamento de matéria jurídica, tanto pela imprecisão de muitas informações, às vezes até mesmo erradas, quanto pela avaliação do desempenho de autoridades e instituições da área jurídica, revelando desconhecimento de peculiaridades básicas dessa área fundamental para a sociedade democrática e para a busca de justiça nas relações sociais. O que pretendo com a coluna "O direito na imprensa" é chamar a atenção para as lacunas e impropriedades nas informações e nos comentários, falando com serenidade e independência, externando lealmente e com imparcialidade meu pensamento, sem perder de vista que minhas palavras serão avaliadas por especialistas de outras áreas e também por conhecedores do direito.

Decisão recente do STF extinguiu a lei de imprensa, um dos tantos entulhos autoritários herdados ditadura. Sua eliminação pura e simples foi de fato a solução mais acertada? Os códigos Penal e Civil dão conta de regular as cada vez mais intrincadas relações da cidadania com a mídia?
A lei de imprensa, herança de um período ditatorial, continha muitos pontos incompatíveis com os princípios democráticos consagrados na atual Constituição brasileira. Creio, entretanto, que foi exagerada sua completa eliminação, pois em muitos pontos ela atendia a necessidades da sociedade e dos indivíduos, como, por exemplo, na fixação de responsabilidades.
A meu ver, existe a necessidade de uma lei de imprensa que estabeleça, ou pelo menos procure estabelecer, o equilíbrio entre direitos e responsabilidades. As condições atuais da vida social e as tremendas inovações ocorridas no instrumental de comunicações, o novo relacionamento do povo com a mídia, estão exigindo a fixação de regras legais adequadas, inclusive em linguagem apropriada a essa esfera de atividades, exigência que não encontra resposta adequada e suficiente nos códigos Civil e Penal.

Como garantir, à luz da legislação atual, celeridade e relevância ao instituto democrático do direito de resposta?
Para que seja dada a necessária celeridade ao instituto democrático do direito de resposta é necessária a criação de instrumentos processuais próprios, ágeis, não sujeitos a embaraços e questionamentos formais. Nos últimos anos já foram introduzidas inovações importantes na própria organização judiciária brasileira, com a criação de juizados especiais. Esse também é um aspecto importante que deve ser considerado, para que o direito de resposta seja efetivo e possa ser exercido oportunamente, para minimizar os efeitos de comunicações erradas ou imperfeitas, divulgadas de boa ou de má fé, que podem trazer enormes prejuízos a direitos fundamentais de pessoas e instituições.

Quando se discutem mecanismos de regulação dos meios de comunicação – em especial os de radiodifusão, que operam sob concessão pública –, a maior resistência ao debate se dá sob a alegação de que quaisquer movimentos nesse sentido colidiriam com os direitos à liberdade de imprensa e de expressão. É um argumento válido? Por quê?
Os direitos à liberdade de imprensa e de expressão fazem parte do núcleo básico dos direitos fundamentais numa sociedade democrática. Entretanto, não se pode perder de vista que eles convivem com outros direitos, havendo sempre a possibilidade de conflito de direitos numa determinada situação concreta. Isso quer dizer que nenhum direito é absoluto, de tal modo que devam ser ignorados os efeitos sociais de seu gozo e seu relacionamento com os demais direitos. A Constituição consagra princípios fundamentais que devem ser tomados como base para a solução de eventuais conflitos dessa natureza, como, por exemplo, a dignidade humana e a cidadania, que podem ser invocados, não como limitações mas como condicionantes do uso dos direitos fundamentais.

Como avalia a desenvoltura com que magistrados, quase sempre de primeira instância, exercem o que chamamos neste Observatório de "censura togada"? Onde reside a legitimidade dessas decisões?
A afirmação da ocorrência do que muitas vezes tem sido chamado de "censura togada" é um dos pontos que exigem mais informação, busca de compreensão dos parâmetros jurídicos e serenidade na avaliação. Ainda agora foi desencadeada uma série de acusações ao juiz que estabeleceu restrições a um noticiário relacionado com a família do senador José Sarney. Mas, concreta e precisamente, o que foi que o juiz proibiu e como fundamentou sua decisão? Para uma avaliação correta e responsável de sua decisão é fundamental o conhecimento dos termos precisos da proibição, os dados de fato e os fundamentos legais em que se apoiou o juiz. Entretanto, nem o jornal que se considera vítima de censura nem qualquer órgão de comunicação publicou o texto da decisão.
Observe-se que, por exigência legal expressa, o juiz é obrigado a fundamentar sua decisão e ele deve ter feito isso, pois a falta de fundamentação ou a invocação de fundamentos errados já teriam levado à anulação da proibição pelo tribunal que apreciou o recurso e que, ao contrário disso, manteve a decisão. Casos desse tipo deverão ser objeto de avaliação crítica na coluna "O direito na imprensa", sempre tendo como base as exigências do Estado Democrático de Direito.

E no caso do impedimento da divulgação, pelo jornal Estado de S.Paulo, de informações sobre a investigação da Polícia Federal acerca do filho do presidente do Senado? O que pensar da proximidade do desembargador Dácio Vieira com a família Sarney e da demora na apreciação do recurso impetrado pelo jornal?
Essa questão remete à anterior: o que foi, exatamente, que o juiz proibiu? Como o juiz fundamentou sua decisão? Há poucos anos tive oportunidade de participar de um debate no [programa televisivo do] Observatório da Imprensa a respeito da decisão de um juiz do Rio de Janeiro, que, segundo alguns jornais, tinha proibido a publicação de qualquer crítica ao então governador Anthony Garotinho. Tendo sido convidado para o debate procurei e obtive o texto da decisão e verifiquei que o juiz proibira, tão só, a publicação da transcrição de uma gravação feita ilegalmente. Nada mais do que isso. Assim, pois, insisto na necessidade de conhecer os termos reais da decisão do juiz para fazer sua avaliação jurídica.

Há uma linha de argumentação a sustentar que, no caso do Estadão, a proibição de noticiar o assunto justifica-se pelo fato de o processo correr em segredo de Justiça. A imprensa deve eximir-se de noticiar o que apurou sobre o andamento de processos com esse caráter? Por quê?
São raros os casos em que um juiz determina que o processo corra em segredo de Justiça. Isso se faz, quando ocorre, para que a revelação antecipada de certos dados não prejudique a investigação ou, então, para que não seja dada publicidade a elementos cujo verdadeiro significado ainda depende de outras investigações ou de avaliação jurídica. Quando, depois disso, um elemento de fato é considerado válido como prova da prática de ilegalidades desaparece o caráter sigiloso e a imprensa fica absolutamente livre para divulgá-lo.
A imprensa deve ser livre, mas também responsável, não estimulando a prática de ilegalidades nem colaborando com elas, abstendo-se de divulgar informações que sabe terem sido obtidas ilegalmente e cuja divulgação apressada pode comprometer a apuração da verdade, a avaliação serena dos dados e a realização da Justiça.

“A mídia é um grande poder, mas está mais vulnerável”

No livro “A Ditadura da Mídia” (Editora Anita Garibaldi), Altamiro Borges descreve o que chama de paradoxo da mídia hegemônica: nunca teve tanto poder, mas nunca esteve tão desacreditada. Nesta entrevista, explora novamente este paradoxo desde a perspectiva de quem se coloca na “trincheira contra a ditadura midiática” – como aponta o subtítulo de seu Blog do Miro (altamiroborges.blogspot.com). Em suas respostas, o jornalista, membro do comitê central do PCdoB e autor de outras publicações sobre comunicação e sindicalismo, faz um resumo provocador dos dilemas da mídia hegemônica e daqueles movimentos que tentam – ou deveriam tentar – derrubá-la. 


No livro “A Ditadura da Mídia”, você tentou usar uma linguagem mais acessível, menos especializada. Por que esta preocupação?
Um dos problemas da batalha pela democratização dos meios de comunicação no Brasil é que, como tratamos de um tema difícil, que envolve muita tecnologia nova, ela acaba se tornando um debate restrito a alguns setores. Estudiosos já há algum tempo alertaram para o tema como uma questão estratégica, mas o debate geralmente fica entre especialistas. No outro extremo, o movimento social ainda não se deu conta de que a comunicação é uma questão decisiva para as lutas do cotidiano, que é muito difícil realizar um trabalho de conscientização, organização e mobilização da classe se você não enfrenta a manipulação que a mídia desenvolve. E que a mídia é fundamental também para a defesa de direitos – pois dizem que eles são coisa de privilegiados, marajás – e que ela dificulta qualquer luta transformadora.
O movimento social é muito premido pelas urgências. No sindicalismo, por exemplo, a demanda é muito grande. É atraso de salário, pressão da chefia, retirada de direitos… o movimento sindical acaba tendo que correr atrás desse prejuízo, e esse também é o papel dele. Mas isso apenas confirma a tese de Marx: você fica na guerra de guerrilhas cotidiana contra os efeitos e não vê as causas. O movimento fica na luta imediata, econômica, corporativa, mas não vê as causas da exploração. O movimento social, no geral, não se deu conta ainda desta batalha estratégica.

E como foi esse trabalho de “tradução”?
O objetivo do livro foi exatamente tentar fazer uma ponte entre um tema que é meio árido e um público formado por quem nem sempre “caiu a ficha” sobre isso. Este foi o esforço. Participei muito tempo do movimento sindical – fui presidente de uma entidade chamada Centro de Estudos Sindicais, fui assessor de formação em algumas entidades – e conheço um pouco desta realidade. Então, fiz um livro voltado para este público, porque acho que se essa galera dos movimentos sociais – que é extremamente aguerrida e combativa e que, como todo mundo, tem também suas falhas e debilidade – não encarar de frente essa batalha, ela não será ganha.

A pauta da comunicação ainda é subestimada pelos movimentos sociais?
Acho que sim, em vários sentidos. Primeiro, os movimentos e os militantes têm dificuldade de entender o que é a mídia hegemônica. Todos ficam “p da vida” com o tratamento que se dá, por exemplo, a uma greve. Sempre desvirtuam as nossas lutas, colocando a sociedade contra as nossas mobilizações, como se a sociedade não fosse formada também por trabalhadores. Sobre qualquer greve ou manifestação que se faça, o eixo da cobertura é sempre o da criminalização do movimento. O tratamento da Rede Globo para manifestações é sempre “congestionou o trânsito”. São sempre os manifestantes que são os violentos, os baderneiros. O MST, por exemplo, é duramente criminalizado, como se vê no tratamento que a Veja lhe dá. Então, o movimento social é a principal vítima desses meios de comunicação, mas por enquanto ainda permanece apenas reclamando. Ainda não percebeu que a questão da comunicação é decisiva e deveria ser pauta obrigatória de todos os congressos de trabalhadores. Afinal, são os trabalhadores as vítimas desta mídia hegemônica, pois eles ficam no cotidiano do trabalho e, quando chegam em casa, se sentam na frente da TV e lhes é despejada uma carga imensa de material manipulado, publicidade, individualismo, consumismo e rejeição à ação coletiva. A questão é que não adianta só reclamar: o movimento social precisa encarar essa luta de maneira estratégica, e acho que ainda não encara. No próprio processo de construção da Conferência Nacional de Comunicação, os relatos que chegam são sempre os mesmos: baixa participação dos movimentos sociais mais tradicionais. Além disso, também falta investir em instrumentos próprios de comunicação, fazer a luta de idéias na sua base.

Qual o problema com a comunicação dos movimentos sociais?
Muitas entidades ainda encaram a comunicação como um gasto, não como um investimento da luta de idéias. Veja o caso do movimento sindical: existe até uma tiragem razoável de boletins sindicais no Brasil, mas muito fragmentada, muita voltada para as questões do cotidiano e também com muitos problemas de linguagem. O mundo do trabalho sofreu profundas transformações em razão das mudanças tecnológicas e de técnicas de gerenciamento. Existe uma juventude sem cultura sindical e que está presente nas empresas, e como você se comunica com eles? Os boletins sindicais são, geralmente, aqueles “tijolaços”, aquela coisa mal feita. E quando se discute isso, alega-se que o gasto é muito grande. Ou você investe em materiais de qualidade, em novas linguagens, em novas plataformas, ou você vai perder a batalha de idéias. Hoje, a cabeça do trabalhador é disputada no “macro” e no “micro”, pela mídia e também com as técnicas de gerenciamento, pois o patrão está disputando a cabeça do trabalhador com círculos de controle de qualidade.

O quanto as organizações do movimento social tem conseguido usar as novas plataformas de comunicação e se desapegar dos métodos mais “tradicionais”?
Há uma grande mudança de paradigma e acho que às vezes não nos damos conta destas mudanças. Percebo que ainda há muita resistência. É difícil convencer um sujeito acostumado com a máquina de escrever da potência da internet. Eu mesmo sinto essa dificuldade, pois ainda dou muito valor ao conteúdo e pouco à forma, o visual. Eu acho que existem algumas organizações que começam a perceber isso, investindo mais em internet, produzindo sites mais vivos, atraentes, sem dogmatismo ou doutrinarismo. Acho que há um esforço. Eu vejo algumas organizações dos movimentos sociais investindo em outros instrumentos. A experiência do MST com rádio é muito interessante, atingindo 600, 700 rádios. Esta é uma das coisas bonitas que o MST está fazendo, porque é uma comunicação para o interior de São Paulo, onde o rádio tem um papel fundamental. Alguns sindicatos têm investido hoje em TV. O Sinpro [Sindicato dos Professores] de Minas Gerais, por exemplo, investiu em um baita estúdio, fazendo um programa de televisão muito bem feito, que procura ter dinamismo. Ou seja, eles estão fazendo a disputa na sociedade. Existem outros casos, como a Apeoesp [Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo], os metalúrgicos de Caxias do Sul. Mesmo na internet, recebi um relato de que os bancários de Sergipe organizaram uma greve através do Orkut em função das dificuldades de mobilização. Ou seja, já existe na esquerda gente se alertando para isso, mesmo que cometendo erros. Às vezes.

No livro, você fala do “paradoxo da mídia hegemônica”. Qual é o paradoxo?
Nunca a mídia teve tanto poder. Em certo momento, até em uma visão progressista, chegou-se a sugerir que a mídia fosse um quarto poder, como um poder fiscalizador do executivo, legislativo e judiciário, que seria a voz dos sem vozes. Isso acabou. A mídia não é mais hoje um poder de fiscalização da sociedade, se é que algum dia foi, e eu questiono isso. Mas antes ela não era tão forte. Hoje ela é um grande poder. Ela é altamente concentrada. Na França, os dois principais grupos de comunicação estão ligados à indústria de armamentos. Como diz o Ignacio Ramonet, é comunicação e canhão. Você pega nos Estados Unidos, grandes grupos… é um poder econômico violentíssimo, que tem como objetivo o lucro, que faz de tudo um espetáculo, sensacionalismo para ser rentável, no mundo e no Brasil. No nosso caso, ainda há o agravante do tipo de formação dos complexos midiáticos, que é um negócio familiar, propriedade cruzada. A situação do Brasil é dramática, pois o processo de concentração foi pior do que em outros países, já que não existe regra nenhuma. Uma mesma família é dona de rádio, jornal, revista, TV, internet, o diabo! Então, é um grande poder com uma grande capacidade de manipulação.

Quão grande é esta capacidade de manipulação?
Ela consegue convencer que o Saddam Hussein tem armas químicas e bacteriológicas. Se bobear, consegue convencer que o Saddam Hussein estava num daqueles aviões do 11 de setembro. Você vê a manipulação que está se dando agora com o golpe de Honduras… a mídia está relativizando o golpe, está escondendo as manifestações. Ou senão, apresenta as manifestações a favor dos golpistas e as manifestações a favor do presidente deposto como se houvesse esta disputa entre os hondurenhos, tentando negar o golpe. Tem uma episódio recente que achei um absurdo… Sem entrar nos méritos do que representa o governo iraniano – um governo sobre o qual tenho muitas ressalvas, um governo teocrático, conservador, mas é um governo eleito, a mídia fez uma “baita onda” quando o presidente iraniano viria ao Brasil para assinar alguns acordos. Até umas manifestações merrecas foram pra TV Globo. Agora, acabou de sair do país um ministro de Israel [Avigdor Lieberman, ministro das Relações Exteriores israelense] – e sobre este não precisa ter dúvida: o cara fala que tem que jogar bomba, que tem que matar, é um racista assumido, alguém que emporcalha a história dos judeus perseguidos pelo holocausto porque ele propõe um holocausto sionista. E a mídia não fala nada! A Veja ainda publica uma entrevista como se o cara fosse um santo. Então, essa capacidade de manipulação da opinião pública é muito violenta. É só a gente pegar o que foi a eleição de 2006 no Brasil, a eleição de 2005 na Bolívia, a tentativa de golpe na Venezuela… O Dênis de Moraes, que é um brilhante estudioso da mídia, chega a dizer que ela tem um duplo poder: ela é um poder econômico, no sentido de reprodução capitalista, está atrás de lucro, e é ao mesmo tempo – e ele retém o pensamento deste revolucionário italiano Antonio Gramsci – um aparelho privado de hegemonia. Este é o lado do poder, o lado da ditadura midiática.

Uma ditadura poderosa, pelo visto…
E este poder se agravou muito, a meu ver, por três fatores. Um: as mudanças tecnológicas, muito profundas. Dois: a desregulamentação neoliberal. O desmonte do Estado e o fim de leis deram à mídia este poder. Ela se coloca acima da Constituição, acima do Estado, acima das leis. E um terceiro fator, este totalmente endógeno: o capitalismo tende à concentração. A lógica do sistema é ser concentrador. Então, a monopolização, o desmanche neoliberal e as novas tecnologias aumentaram este poder. E onde está o paradoxo?

Pois é… se estamos falando de um poder que vem crescendo nos últimos tempos, onde está o paradoxo?
É que este poder também está sendo questionado. E onde ele está sendo questionado? No meu entender, pelas próprias mudanças tecnológicas. Elas abriram determinadas brechas – que eu acho que não duram muito, mas são brechas importantes. A internet, hoje, é uma coisa aberta. Isso fragiliza a mídia. Essa mudança de paradigma sobre o qual a gente falava que o movimento social tem dificuldade de compreender, eles [a mídia hegemônica] também estão com dificuldade. É falência de jornalões, é queda de audiência de TV… Acho que estas mudanças tecnológicas criam o paradoxo: é um grande poder, mas que está mais vulnerável. A outra coisa que eu acho que afeta muito é que a mídia, esta mídia hegemônica, vem perdendo credibilidade. Porque como a manipulação fica muito agressiva, tem hora que a sociedade vai despertando. Os estadunidenses, por exemplo, foram intoxicados e entorpecidos com toda aquela mensagem do Bush. Mas depois eles perceberam que aquela mensagem do Bush, da guerra, da desregulamentação da economia conduziu os Estados Unidos a uma crise enorme, tanto é que se produziu um fenômeno: a eleição de um negro para a Presidência em uma sociedade que tem características racistas muito fortes. Tal foi o descontentamento que se teve com o Bush. Com o Bush e também com a mídia.

No livro, você cita alguns exemplos na América Latina.
Acho que no nosso continente a mídia sofre um forte questionamento da sua credibilidade. O golpe de 2002 na Venezuela foi um golpe todinho organizado pela mídia. Inclusive as reuniões dos golpistas eram feitas na sede da RCTV e na sede do Cisneros. E o povo não aceitou. O povo desligou as televisões, se comunicou através de rádios comunitárias, internet e motoboy, desceu o morro, ocupou o [Palácio] Miraflores e obrigou o retorno do Chávez. Isso é uma derrota da mídia. Você pega a eleição na Bolívia. O Emir Sader fez uma pesquisa interessante: 87% das matérias de rádios, jornais e TVs na Bolívia foram contra o Evo Morales, inclusive com conteúdo racista. E o povo vai lá e elege o Evo Morales. Pega aqui mesmo no Brasil, com todas as limitações do governo Lula, a onda que se fez contra o governo Lula… e o povo reelege.

A gente percebe quando a mídia passa do ponto…
A mídia passou do ponto, sim. E o povo percebe… Mas acho que não tem jeito: a mídia vai exagerar na dose. Voltando ao Gramsci, ele fala o seguinte: quando os partidos das classes dominante entram em crise, a imprensa assume o papel do partido do capital. Isso que o Gramsci falava na década de 1920 está se confirmando hoje: como as instituições burguesas estão em crise – até porque todas elas apostaram no receituário neoliberal de desmonte do Estado, da nação e do trabalho, e afundaram na crise que elas próprias ajudaram a criar –, cada vez mais a mídia vai ocupar este papel e ser mais agressiva. E com isso ela vai perder credibilidade. Esse menino que organizou o
Rebelión, que é um dos grandes portais da internet hoje no mundo – é o Pascoal Serrano –, tem um livro que ele fala: a mídia vai perdendo credibilidade. Ela perde credibilidade porque surgem fontes alternativas, porque exagera na sua autoridade e isso vai corroendo a mídia. E quando ela exagera demais ela se estrepa. Pega o episódio da Folha de S. Paulo quando qualificou a ditadura militar de ditabranda… ela perdeu assinantes! Por isso está fazendo estas campanhas falsárias, dizendo que é plural, que ouve todo mundo, pela democracia…Quem apoiou o regime militar, deu carro pra levar preso político pra tortura e quer falar de democracia tem que começar fazendo autocrítica do que fez no passado. Então, é por tudo isso que se dá o paradoxo: a mídia nunca teve tanto poder assim, mas as coisas estão se corroendo. E há ainda um terceiro fator que leva a este paradoxo: a mídia reflete a luta de classes no seu país e no mundo e, no caso do nosso continente, esta luta se radicalizou. De laboratório das políticas neoliberais, virou a liderança de oposição. Isso produziu uma radicalização da luta política na América Latina e a eleição de governos anti-neoliberais – uns mais avançados, uns mais recuados, uns mais radicais no sentido pleno da palavra, de ir na raiz dos problemas, outros mais moderados e conciliadores, mas isso começou a produzir mudanças. Mais cedo ou mais tarde estes governos iam ter de enfrentar o problema da mídia. E eles começaram a enfrentar.

Como tem sido este enfrentamento?
Alguns países estão enfrentando de forma ousada. Na Venezuela, o governo bate duro, não brinca com a mídia. A mídia não está acima do Estado, acima da sociedade. Bate duro. Se a RCTV é golpista, se a RCTV não paga os funcionários, se a RCTV transmite programa fora do horário que afeta crianças e adolescentes, programas de prostituição inclusive, se a RCTV pratica evasão de divisa, acabou a concessão pública. Acabou. Pode chorar, mas vocês não têm mais a concessão pública. É bandido! Não tem mais concessão pública, vocês não têm esse direito. O governo venezuelano vai tomando medidas. Agora mesmo fechou um bocado de rádio com concessões irregulares. O governo boliviano também vem tomando medidas. A Constituição do Equador é impressionante neste sentido. A auditoria das concessões que foi feita no Equador… impressionante. Esses governos vão tomando estas medidas e a mídia vai ficando cada vez mais como bicho acuado… Eu acho que isso tudo vai vulnerabilizar a mídia hegemônica. Por isso o paradoxo: nunca teve tanto poder, mas nunca esteve tão vulnerável.

O senhor vê alguma especificidade no caso brasileiro? Por exemplo, no Brasil não tem definições como: tal jornal é conservador, tal colunista é progressista. A Folha, por exemplo, diz em relação à imprensa norte-americana: o jornal The New York Times é progressista, o colunista tal é conservador, mas não usa essas coisas para si mesma. Por quê? Por que essa especificidade brasileira, onde não é possível nem fazer este tipo de questionamento acerca da filiação dos diferentes veículos a determinadas posições políticas?
Eu acho que isso tem a ver com a própria formação dos monopólios no Brasil. O processo de concentração no Brasil se deu totalmente desregrado. Nos Estados Unidos, com todos os problemas dos Estados Unidos – uma potência imperialista agressiva -, mas lá você teve, até mesmo como fruto da luta contra o nazifascismo, a elaboração de leis que controlavam um pouco a mídia, que proibiam a propriedade cruzada. Você tem uma agência reguladora, tem lei anti-truste – é verdade que o Bush tentou acabar com todas elas … –, você tem duas redes públicas razoáveis. Na Europa, tem ainda mais cuidado com isso, porque, no processo de derrota do nazifascismo, você teve toda uma construção de redes públicas fortes, com capacidade de audiência. Você pode até ter críticas à BBC, mas ela é uma televisão de alta qualidade pública. Então, houve a experiência da televisão portuguesa no final do salazarismo, teve a Itália no final do fascismo. No Brasil, não teve nada disso, nunca teve uma rede pública forte. Getúlio Vargas até tentou criar com a Rádio Nacional – que chegou a ser a 4ª maior do mundo – , investiu também em um jornal alternativo que foi o Última Hora, mas exatamente por isso ele é tão detestado pela elite brasileira e principalmente pela elite paulista. Aliás, São Paulo é o único estado do país onde não tem uma rua Getúlio Vargas. É o único lugar onde tem um feriado para comemorar a tentativa de uma revolução oligárquica, dia 9 de julho.

Qual o problema criado pela falta de uma rede pública de comunicação?
Sem uma rede pública forte, o que sempre se teve foi um setor privado que nunca teve regras de controle. Nunca houve regulamentação para essa área. Então, nós não pegamos a experiência européia de público e ainda pioramos o que pegamos dos Estados Unidos, que minimamente tem lei que controla a concentração e o trabalho da mídia. Então, esses caras aqui se sentem os donos da cocada preta, sempre com muita capacidade de interferir. Com exceção do Última Hora e jornais de esquerda, todas essas grandes empresas de comunicação apoiaram o golpe de 64. Todas entraram na campanha do Collor. Até os colunistas progressistas estas empresas foram limpando. Para vozes que destoem, que problematizem, que polemizem, o espaço é reduzidíssimo nestes meios. Eu acho que estes fatores é que geram esta degeneração.

Qual é a correlação de forças no Brasil, hoje, entre os movimentos progressistas que questionam o modelo midiático e estes grandes grupos de mídia? Como você acha que vai ser a Conferência Nacional de Comunicação?
Primeiro, a Conferência é uma grande conquista dos movimentos sociais brasileiros, destas entidades que há muito tempo levantam a importância de se lutar pela democratização dos meios de comunicação: Intervozes [- Coletivo Brasil de Comunicação Social], FNDC [Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação], Abraço [Associação Brasileira de Rádios Comunitárias], entidades que levantam este tema. Uma vitória que foi difícil, pois há sete anos estamos tentando esta Conferência. Ela estava implícita no programa do Lula de 2003, estava explícita no de 2006 e só saiu agora, no final de 2009. E isso tem a ver com correlação de força e com vacilações do governo Lula.

Por que “vacilações”?
O governo Lula fez pacto com o capital financeiro, pacto com o agronegócio e pacto com os barões da mídia. Apanhou muito em 2006, e no segundo mandato começou a romper com esse pacto com os barões, mas foi muito cauteloso. Dos governos progressistas da América Latina, talvez tenha sido o que menos avançou neste processo de democratização dos meios de comunicação. Isso tem a ver com a correlação de forças no Brasil e com a complexidade do Brasil e o próprio problema de convicção do governo. Então, já foi tão duro conquistar a Conferência, não ia ser fácil realizá-la.

Você se refere aos impasses criados pelos empresários…
A conquista da Conferência teve a ver também com um racha no setor empresarial, um racha nas classes dominantes, que, por sua vez, teve a ver com essas mudanças tecnológicas, com essa digitalização e com a entrada dos operadores de telefonia na produção de conteúdos. Então, os radiodifusores brasileiros estão muito preocupados com isso. Inclusive são muito manhosos. Eles que pregaram a desnacionalização da economia, entrega tudo, privatiza tudo e agora estão falando em defesa da cultura nacional. É uma hipocrisia razoável, apesar de que parte de um problema real, porque se as operadoras de telefonia entram, elas têm um poder financeiro… A Telefônica é 60 bi [R$ 60 bilhões] e a Globo que é a Globo é 5 bi. Então se não tiver nenhum mecanismo de controle, daqui a pouco você não tem nenhuma produção de conteúdo nacional, só vai ver porcaria estrangeira. Vai ter que agüentar Bob Esponja de manhã, à tarde e à noite. Enfim: este racha empresarial também facilitou a Conferência. É uma vitória do povo, dos movimentos sociais brasileiros e principalmente destas entidades que entenderam a importância estratégica deste tema. Mas nada vem fácil. Eles perderam por conta do racha deles, mas eles vão tentar interferir no processo da Conferência. Eu acho que se eles sentirem que eles vão levar uma surra na Conferência a tendência é eles não irem para Conferência.

Eles já tem sinalizado esta saída…
É uma postura truculenta, arrogante. O Evandro [Guimarães] representante da Abert [Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV] vem com exigências. E eu pergunto: quem é você para falar pela sociedade? Eles dizem: não pode discutir o passado, só pode discutir o futuro. Discutir “o passado” é discutir o que está na Constituição, nos artigos 220, 221, 222 e 223? Eles dizem: não pode discutir conteúdo. E vem com uma imposição de que tem que reduzir a interferência estatal.. Não existe rede pública no brasil e está querendo reduzir ainda mais? Vem com imposição de critérios: “temos que ter 40% de cadeira cativa para os empresários”. Mas quem são vocês para ter 40% de cadeira cativa? Se os empresários dos meios de comunicação representassem 40% da sociedade brasileira, nós não teríamos o problema de concentração da mídia no Brasil. Eu acho que eles estão medindo, estão tentando enquadrar a Conferência, chantagear o governo e ameaçar sair para tentar enquadrar a Conferência na questão de conteúdo, de critérios para participação. Então é uma batalha difícil, não é fácil. O governo tem manifestado que faz a Conferência com ou sem empresários, vamos ver se peita este tipo de atitude. [O anúncio da saída dos empresários foi feito duas semanas após a entrevista.]

Ocorrendo a Conferência, o que pode acontecer? Qual pode ser o saldo da Conferência?
A realização da Conferência, o seu processo com as etapas estaduais, municipais e a nacional é um processo muito interessante, porque ela se volta para aquela pergunta inicial sobre quem entendeu a importância da comunicação, da luta nesta área estar restrita a um setor ainda pequeno, formado de “especialistas”. Não caiu a ficha para os movimentos sociais e ampla parcela da sociedade acha que a televisão que está aí é ótima. O processo de Conferência eu acho que permite duas coisas: primeira e grande coisa, ela é um esforço pedagógico porque permite envolver mais gente nesse debate, sair da coisa de especialistas, cutucar o movimento social para que ele entre com força e fazer o debate com o amplo setor da sociedade. Se este debate, hoje, está reduzido a mil, dois mil ativistas, no processo da Conferência você pode envolver, sei lá, cem mil pessoas debatendo mídia enquanto direito humano, enquanto requisito da democracia, debatendo mídia enquanto respeito à diversidade. Por si só, mesmo que não tivesse conquista nenhuma na Conferência só isso já seria extremamente positivo. Além disso, eu acho que é possível ter algumas vitórias na Conferência.

Quais seriam estas possíveis vitórias?
Eu acho que se o movimento social brasileiro conseguir elencar propostas concretas, centrar em algumas – não tentar abarcar tudo -, não achar que a Conferência vai acabar com a ditadura midiática, porque não vai acabar… Nem o Chávez que é o Chávez, em um processo mais radicalizado, acabou com o latifúndio midiático na Venezuela! Nós ainda vamos ter que acumular muita força. Mas eu acho que se a gente consegue eleger alguns temas e propostas concretas, não ficar só no diagnóstico, mas ir para a proposição, eu acho que a gente pode conseguir algumas vitórias como: medidas para inclusão digital, medidas para não criminalizar a radiodifusão comunitária, medidas para rediscutir critérios de publicidade oficial, medidas para redefinir atualizar e garantir a discussão dos critérios de concessão publica, medidas de fortalecimento da rede pública – e a gente não está falando só sobre a EBC [Empresa Brasil de Comunicação], mas também os canais comunitários, canais educativos, universitários. Então, eu acho que a Conferência é vitória, os patrões estão fazendo chantagem, mas se ela se realiza, só o processo já é pedagógico. E mais do que isso: acho que conseguimos obter vitórias pontuais, parciais, mas vitórias. Não vai ser uma revolução, mas é um processo acumulativo de ganhar forças.

Por uma internet sem governos

[Título original: ICCAN: internacional, mas sem governo]

O futuro do endereçamento da rede mundial de computadores volta à discussão. Em setembro acaba o prazo do contrato entre o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), corporação internacional sem fins lucrativo responsável pela atribuição de nomes e números na internet. O contrato, firmado em 1998, previa a transição durante a qual a corporação firmaria vários acordos para permitir que o governo norte-americano encerrasse sua função. De lá para cá, o contrato foi prorrogado duas vezes. Para setembro, estão em debate três alternativas, propostas por diferentes países: nova prorrogação, adoção de um outro acordo que conte com a participação multilateral de governos, ou transformar a ICANN em uma entidade internacional, sem governos, como defende o presidente do Nic.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), Demi Getschko.

O acordo da ICANN com o Departamento de Comércio dos EUA acaba em setembro. O que acontecerá depois disso? Será adotado novo acordo, como propõem interlocutores de diferentes países?
A gestão da internet não tem diretamente a ver com governos, mas sim com os diversos setores da sociedade, como a Academia e a área privada. Na verdade, havia um governo que tinha um papel específico que, teoricamente, era um processo para que a ICANN transitasse desde sua inauguração até a maturidade e passasse a tocar a gestão independentemente. O acordo com o departamento de Comércio dos EUA começou em 1998, foi renovado duas vezes e espera-se que em setembro ou entra uma outra coisa no lugar ou tem que sumir. Eu, pessoalmente, espero que não haja nada no lugar, porque o que a ICANN faz não tem nada a ver especificamente com governos, tem a ver com a estrutura da internet como um todo e não é desejável que haja um governo ditando as normas.

O governo norte-americano teve alguma interferência na gestão da rede?
No período em que o Departamento de Comércio Americano esteve tutelando a transição não me lembro de interferências diretas. Mas sempre houve a possibilidade de interferir. Pessoalmente, gostaria que esse acordo terminasse e houvesse a convicção de que a ICANN já está suficientemente madura para gerir e prestar contas à comunidade da internet como um todo, sem necessidade de novo acordo.

Mas existem propostas de se criar um fórum de governança na UIT ou ONU para substituir a ICANN.
É claro que há propostas para substituir o atual acordo. Existe uma de um grupo de países europeus, mas ainda é muito vaga. O ideal é que as coisas andassem somente com um grupo de três ou quatro pessoas, na sede da ONG na Califórnia. Mas se criou uma dimensão política exagerada com base em outros fatores que não são propriamente ligados com a governança da internet básica, como a ICANN, que tem uma posição muito lúcida, de muita credibilidade. Não acho que uma função técnica da rede exija uma gestão intragovernamental, como em controle aéreo, por exemplo. Acho que é uma função que deve ser restrita aos segmentos técnicos da rede e que só em casos de desespero poderia ser possível uma intervenção de outra ordem. A internet não é uma criação só de governo. É uma criação de todos os segmentos e não há uma participação mais forte de um segmento em relação a outro.

Por que os governos estão interessados em intervir na rede?
Os interesses dos governos nessa questão se dá, em primeiro lugar, porque a internet está sendo percebida por diversos setores em ordem crescente. A Academia sabia o que era isso desde o começo, no final dos anos 90. O pessoal de telecom, por exemplo, só foi descobrir a internet em 2003, 2004, quando começaram as ofertas de banda larga, antes nem sabia o que era. Os governos, na minha opinião, são o terceiro ou o quarto segmento a descobrir a rede. Agora, caiu a ficha e estão correndo atrás do prejuízo, elaborando legislação para ver se controlam, mas não controlam. Mas acho que esta posição é uma gangorra, vai e volta. A China é um exemplo disso. O governo de lá tentou controlar fortemente a internet, depois aliviou bastante e encerrou-se o ciclo, porque na verdade é muito difícil controlar. No Brasil também descobriram que o buraco é mais embaixo. O presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Carlos Ayres Britto, por exemplo, disse que a proposta de legislação para eleições no país não está levando em conta o que é de fato a internet. Ele fez um belo pronunciamento em relação o que é a rede, claro que um pouco ousado, romântico, afirmando que a liberdade na rede nunca vai ser tolhida, ou coisa assim.

O controle não é necessário?
É claro que a gente sabe que há bons e maus elementos na rede, mas de qualquer forma, é difícil controlar, difícil regular, não tenho dúvida. A internet tem lá seus problemas, como as fraudes. Mas não podemos tratar a internet de forma discriminatória.

Então o fim do contrato com o governo americano evitará algum tipo de interferência ou controle na rede?
Depois que o contrato for encerrado poderemos discutir outros temas, como, por exemplo, por que a ICANN é uma organização da Califórnia; por que não é uma organização internacional; por que não fica em outro lugar, como Nova Iork, que é sujeita à lei da ONU. Ela não deveria ficar sujeita às leis da Califórnia. Não dá, a priori, para substituir o contrato do Departamento Comercial Americano por um contrato multinacional porque a ICANN é uma ONG da Califórnia e não caberia um contrato com outros países. A questão central é se o contrato continua ou desaparece. No caso de desaparecer, o que será feito para colocar no lugar? Vale a pena colocar algo no lugar? Ou se é melhorar criar um outro tipo de fórum que discuta outros assuntos, que não sejam esses mais técnicos, onde de fato haja uma participação de diversos governos?

Há possibilidade de o contrato com o governo norte-americano ser outra vez renovado?
Há possibilidade ainda de o contrato ser renovado porque sempre que acontecem discussões sobre o assunto, o Congresso norte-americano fica relutante em aprovar o seu fim. Quem toca esse negócio é a agência reguladora do setor, mas o contrato para ser encerrado precisa da aprovação do Congresso. É capaz de os congressistas acharem que o fim do contrato representará perda de poder e, numa posição conservadora, apesar da posição do presidente Barak Obama, podem criar uma nova prorrogação, mas espero que isso não aconteça.

O senhor fez parte do conselho da ICANN. Tem possibilidade de ser indicado de novo para lá?
Fiz parte da ICANN até maio deste ano. Fiquei lá durante cinco anos como membro, mas continuo acompanhando as reuniões como ouvinte. A diretoria é composta de 15 membros, que vem de vários lugares do mundo, e da América Latina agora só tem um chileno. Existem três vagas a serem ocupadas até o final do ano e esperamos que uma delas venha para a América Latina.

E como vai a internet no Brasil?
No Brasil, a rede corre muito bem. Houve um crescimento no mercado brasileiro acima dos índices da América Latina, acima dos outros índices brasileiros de um modo geral. Quanto aos domínios, estão bastante fortes. Não há nada que indique uma desaceleração, pelo contrário, vamos continuar num ritmo de crescimento de 20% ao ano e ainda estamos numa fase bastante intensa de investimentos, que deve durar ainda dois ou três anos. Depois disso, diminui um pouquinho e o crescimento ficará na casa de 15% ao ano. É claro que ainda existem muitas pessoas que não têm acesso à rede, muitos rincões que não têm conexão, pessoas que não conseguem comprar um micro e outras barreiras de entrada que continuam a impedir um crescimento maior.
Vários setores da sociedade defendem a adoção de uma política pública que dissemine o acesso à internet. O senhor concorda com isso?
O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) acompanha tudo o que acontece e tem posições importantes, como a defesa do unbundling, mas não temos um papel de propor políticas públicas, que é uma coisa do governo. Mas acho importante para o Brasil ações de inclusão digital, mesmo que não seja com banda larga. Porque a banda larga é uma forma de se estabilizar o usuário na rede, sem que ele tenha que se preocupar com o tempo de conexão. Mesmo que isso não seja factível agora em muitos lugares, porque depende de infraestrutura, pelo menos a inclusão digital é fundamental. Nas estatísticas do CGI, as lan houses são um grande elemento de inclusão digital, então, seria importante aumentar os pontos de acessos públicos. O programa banda larga nas escolas deu um grande avanço. E acho que o programa de banda larga rural poderá trazer benefícios semelhantes. Eu não sei se dá para defender banda larga nas casas de todos os brasileiros, porque ainda tem locais de difícil acesso para se chegar com infraestrutura, mas é preciso aumentar os pontos de acessibilidade nesses rincões, de forma que os moradores dessas regiões consigam usar. Muitas vezes as operadoras levam a banda larga onde há facilidade de meios e de públicos. Nos rincões, elas não irão porque necessitam de grandes investimentos e o retorno comercial é baixo. Nesses lugares o governo precisa complementar.

A utilização da rede elétrica para levar internet às casas, por meio da tecnologia PLC (Power Line Communication), poderá facilitar um programa desse tipo?
A rede de energia elétrica será muito boa para usar em pequenas distâncias. Eu não acredito que possa ser usada para fazer backbone ou para fazer conexão de alta velocidade em pontos distantes. Acho que o backbone tradicional precisa chegar lá de alguma forma, aí poderá ser distribuído localmente nas casas. E isso é ótimo porque é mais um competidor na área, mais um fornecedor de acesso à última milha, mas não é uma forma de se chegar lá.