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“A mídia é um dos principais reprodutores da lógica racista”

Formado em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e especialista em Política e Estratégia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Paulo Rogério Nunes é fundador e diretor-executivo do Instituto Mídia Étnica. O instituto é uma das primeiras e principais referências da discussão sobre a diversidade étnica na mídia do Brasil, país que, como lembra Paulo Rogério, é composto por uma maioria afro-descendente esquecida pelo “mercado” e escondida pela mídia.

Paulo Rogério é também fellow da Ashoka Empreendedores Sociais, tendo seu trabalho reconhecido nacional e internacionalmente como militante do Movimento Negro e na luta pelo Direito à Comunicação. É articulador do portal colaborativo www.correionago.com.br, gerenciado pelo Instituto Mídia Étnica.

Às vésperas da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, Paulo Rogério ajuda a articular o movimento “Enegrecer a Confecom”, que visa “aprofundar a reflexão sobre o combate ao racismo na mídia”. Nesta entrevista, ele enumera diversas medidas que acredita importante serem defendidas pelos movimentos negro e anti-racistas na Confecom, como a criação de um órgão que fiscalize a diversidade na mídia e o estabelecimento de punições mais duras para os veículos que veiculem conteúdo racista ou que desrespeitem a representação da diversidade da população brasileira.

Atualmente, que avaliação o senhor faz acerca da veiculação de conteúdos racistas ou a violação ao direitos humanos de grupos étnicos na TV, rádio e imprensa brasileira? Algo melhorou desde a promulgação da Constituição de 1988 ?
Apesar dos avanços obtidos após a promulgação da Constituição Cidadã, a imagem dos afro-brasileiros na mídia ainda é, em geral, estereotipada ou manchada de sangue. A contribuição civilizatória dos africanos para o Brasil é constantemente negada, em nome de uma hipervalorização da estética européia. Ainda hoje, no início do século XXI, somos representados como minoria – em um país que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), terá maioria negra até 2015. Nunca fomos e não seremos minoria no Brasil. Somente nos últimos anos que as agências de publicidade começaram a perceber que existe um público consumidor negro sub-representado nas campanhas publicitárias e que é tolice não representar a diversidade étnico-racial brasileira em seus anúncios. Mas, ainda há muito que se fazer na publicidade, no cinema e, sobretudo, no jornalismo. Na realidade, além de leis que coíbam o racismo na mídia, precisamos trabalhar na formação dos profissionais de comunicação que estão saindo das faculdades imbuídos das premissas racistas que estão arraigadas na cultura brasileira. É preciso que os cursos de Comunicação Social incorporem a questão racial como um debate necessário para a formação de comunicólogos. Sem essa formação educativa e sem uma legislação que seja incisiva na punição dos crimes de racismo na mídia a população negra do Brasil ainda sofrerá muitos anos por conta da invisibilidade e dos estereótipos.

Na sua opinião, o movimento negro brasileiro tem debatido comunicação e mídia de forma devida ou ainda estaria pouco atento à esta dimensão ? O que é preciso fazer para fortalecer este envolvimento?
O Movimento Negro sempre discutiu comunicação, pois sabemos que a mídia é um dos principais setores reprodutores da lógica racista. Se passarmos algumas horas monitorando os programas de televisão, não é difícil encontrar insinuações racistas sutis ou até mesmo explícitas. A questão é que a comunicação é tradicionalmente uma área cercada por uma aura de glamour, com seus termos técnicos pouco acessíveis aos “não iniciados”. Esse caráter hermético e “sagrado” da comunicação afasta os movimentos sociais que terminam delegando aos seus assessores de imprensa (quando possuem) toda a reflexão sobre comunicação. Nesse sentido poucos movimentos sociais incorporaram a discussão sobre comunicação como uma agenda estratégica para alcançar seus objetivos políticos. É por isso que o Movimento Negro possui historicamente uma baixa participação nas discussões sobre comunicação o que não o difere de outros movimentos sociais. Mas esse quadro está mudando, hoje várias organizações tradicionais do segmento negro estão participando das discussões sobre a Conferência Nacional de Comunicação e recentemente foi criada uma articulação chamada “Enegrecer a Confecom”, com o objetivo de aprofundar a reflexão sobre o combate ao racismo na mídia. Participam dessa articulação sindicatos de jornalistas, por meio de suas comissões por igualdade racial, organizações nacionais, ONGs e profissionais independentes de todo o país. A idéia é que antes da realização da Conferência em dezembro tenhamos uma plataforma de propostas do movimento negro para serem discutidas e que após a Conferência essa articulação continue para monitorar a implementação das políticas públicas de comunicação e criar uma rede de cooperação entre as entidades.

O sistema de cotas para grupos étnicos historicamente oprimidos (como afro-descendentes) vem sendo adotado em diversas universidades brasileiras. Isso se tornou um símbolo das políticas afirmativas no Brasil. Passado já esta primeira fase, que avaliação o senhor faz deste mecanismo, quais seriam hoje os seus efeitos reais?
O sistema de cotas é apenas um braço do que chamamos “Ações Afirmativas”. Apesar de tanta polêmica, o que mais interessa ao movimento negro e aos segmentos anti-racistas não é somente o acesso de jovens negros nas universidade, mas a permanência destes, a garantia que terão uma boa formação e, sobretudo, o acesso destes ao mercado de trabalho e/ou pós graduação. Nesse sentido, é preciso entender que ainda estamos lutando para garantir a primeira fase dessa batalha, o que significa que a sociedade brasileira é mais conservadora do que imaginávamos. Não é por acaso que grandes emissoras de TV, revistas de grandes circulação e sites de prestígio dão tanto espaço para pretensos acadêmicos condenarem o sistema de cotas, e por conseqüência, toda e qualquer ação reparatória para a população afro-brasileira. Já foi provado que o sistema de cotas tem não somente o efeito prático de garantir a eqüidade no processo seletivo do vestibular, mas que possui um efeito psicológico na vida de muitos jovens negros que acreditavam ser impossível entrar nas universidades públicas sem ao menos tentar. Além disso, o acesso de afro-brasileiro ao ensino superior tem contribuído para melhor diversificar o leque de produções acadêmicas, pois estes jovens trazem a perspectivas de suas comunidades para a sala de aula, e por conseqüência, trazem novos olhares para a produção científica nacional. Por fim, podemos dizer que, assim como o enfrentamento ao grande latifúndio midiático do Brasil, a questão da inclusão dos negros nas universidades é um desafio muito grande que precisa ser enfrentado, a despeito da reação conservadores dos que querem a manutenção do status quo e da supremacia da branquitude.

O senhor acredita que é necessário estabelecer cotas na programação do rádio e da TV voltadas especificamente para veicular conteúdo sobre as diversas culturas e etnias como os afro-descendentes ou povos indígenas nativos ? Como garantir que essa diversidade seja constante na programação radiofônica e audiovisual?
O Estatuto da Igualdade Racial – que tramita há aproximadamente dez anos no Congresso Nacional – possuía um capítulo de comunicação, no qual exigia uma quantidade não inferior a 25% de atores negros nas produções audiovisuais. Infelizmente, assim como o capítulo que trata das terras quilombolas e o que propõe ações afirmativas na educação, a questão da comunicação foi retirada por pressão dos segmentos conservadores. Essa foi uma grande perda para o Movimento Negro no Brasil. Apesar disso, sabemos que, mesmo com a legislação coibindo a invisibilidade dos negros da mídia, na prática precisamos, com urgência, de discussão com os produtores de mídia no sentido de convencê-los a mudarem prática e valores. Não é possível que nem mesmo a TV pública, conforme pesquisa do doutor Joel Zito Araújo, incorpore a questão da diversidade étnico-racial como um valor. Os números mostram que cerca de 90% dos apresentadores e jornalistas das TVs públicas são brancos. Espero que a Conferência Nacional de Comunicação possa refletir sobre essa negação de nossa identidade e busque se espelhar em modelos já adotados por outras sociedades multirraciais, como é o caso do Canadá, que possui uma agência que monitora a diversidade dos veículos; a África do Sul que, depois do apartheid, entende a eqüidade racial como um princípio; e os Estados Unidos, que já tem uma longa tradição de promover a igualdade racial na mídia. Esses são modelos disponíveis que precisam ser estudados. O mundo espera do Brasil uma resposta histórica no que diz respeito à inclusão da população negra. Todos os países que acabei de citar, por exemplo, já elegeram chefes de estado negros, até mesmo a África do Sul que teve um regime considerado o mais racista do mundo. O que estamos esperando?

Em muitos países onde existem sistemas públicos de comunicação, há canais especificamente voltados para veiculação de programação de diferentes etnias ou culturas que constituem suas populações, como é o caso da Austrália (com a SBS). O senhor acha benéfica a existência desses canais específicos ou acredita que tal especificidade é ruim por colocar tais culturas num patamar separado ?
Seja qual for o modelo que adotemos, caso a eqüidade racial e de gênero se configure como um princípio inviolável estaremos no caminho certo. Penso que canais específicos para grupos sociais e étnico-raciais são importantes, pois concentram vozes que estão na mesma sintonia. Gosto da idéia de termos uma concessão de TV para o Movimento Negro, como espero que tenhamos um canal específico para o movimento LGBTT. Não penso que um canal voltado para discutir as especificidades dos afro-brasileiros não irá colocar a cultura negra em um patamar diferenciado, pois com a nova conjuntura de convergência de mídias e a própria TV Digital, a segmentação será quase uma imposição técnica, o que pode ampliar o número de vozes no debate público. Porém, mais que tudo, penso ser muito importante que nosso novo marco regulatório possa punir, inclusive com perda da concessão, veículos que promovam o racismo em sua programação e que não possuam o número de negros condizente com a realidade racial do país. Além disso, não podemos pensar em igualdade racial na mídia sem ter em mente que isso implica em repensar as políticas de recursos humanos dessas empresas. Qual o motivo do jornalismo ser a profissão no Brasil com o menor número de negros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE)? Portanto, penso que devemos ter um órgão fiscalizador da diversidade na mídia como existe em alguns países.

Diante da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, que acontecerá de 14 a 17 de dezembro neste ano em Brasília, o Instituto de Mídia Ética tem propostas a apresentar? Poderia nos fazer uma síntese ou nos indicar as principais diretrizes para a relação saudável entre etnias, multiculturalismo e meios de comunicação?
Estamos sistematizando e estudando uma série de propostas elaboradas pelo Movimento Negro em fóruns, encontros e até mesmo em outras conferências como a de Juventude e Igualdade Racial, nessa última, por exemplo, criamos, em 2005, um Grupo de Trabalho que tinha como principal bandeira a necessidade da realização da Conferência Nacional de Comunicação. Em geral nossas propostas são relacionadas ao fim da invisibilidade dos negros na mídia, a criação de mecanismos para punir o racismo nos meios de comunicação e a necessidade da apropriação das tecnologias de comunicação e informação pela comunidade negra tendo como meta o fim do apartheid digital. A articulação “Enegrecer a Confecom” realizará alguns encontros antes da Conferência com objetivo de criar uma plataforma comum de propostas dos vários grupos e segmentos do Movimento Negro. Nós do Instituto Mídia Étnica já apresentamos algumas na Etapa baiana da Confecom. Em geral queremos a incorporação da diversidade étnico racial em todas as políticas de comunicação seja na produção, distribuição ou regulação dos meios.

O senhor foi eleito na etapa baiana da Confecom e estará em Brasília como delegado pelo seu estado. No plano regional e nacional,o senhro acredita que esta primeira Confecom pode de fato mudar a comunicação do país? Ou terá efeitos limitados? Que saldo poderemos esperar ao fim deste processo?
Estamos diante de um momento realmente histórico. Nós que militamos no Movimento pela Democratização da Comunicação sonhamos há anos por esse tipo de conjuntura, na qual de norte a sul do país existem mobilizações em torno do tema. Isso por si só já seria um resultado positivo do processo das conferências estaduais. É claro que isso é pouco, pois esperamos que a Conferência de Comunicação possa dar as diretrizes políticas para a comunicação brasileira. É claro que sabemos que existem limitações objetivas, como o fato dessa mobilização acontecer quando as primeiras luzes do governo começam a ser apagados e que não há garantia, ao que parece, de que as propostas sejam implementadas. Mas creio que o efeito dessa discussão dentro dos movimentos sociais, ONGs, partidos políticos e demais grupos de interesse possam gerar uma atmosfera de cobrança e mobilização continuada. Além disso, creio que será difícil para os candidatos no próximo ano não tocarem nas resoluções que serão aprovadas na Conferência, o que significa que a discussão sobre comunicação não será mais um tabu. Mas para que tudo aconteça, será necessário muita articulação dos movimentos sociais e uma entendimento melhor sobre a conjuntura política na qual estamos inseridos.

“O mundo mudou e as formas de propriedade também ”

Um dos principais defensores do compartilhamento de arquivos pela Internet, Sérgio Amadeu, conversou, por telefone, com a IHU On-Line sobre pirataria, autoria, banda larga entre outros temas que cercam a questão da troca de informações via rede digital. Segundo ele, “a indústria fonográfica está em crise, a imprensa e a ideia de gatekeeper estão em crise e também os partidos estão em crise porque no mundo das redes existem várias formas de articulação direta entre os cidadãos”.

Sérgio explica que as redes digitais não substituem o Poder Legislativo ao proporcionar uma participação direta da população, mas “permitem que as pessoas que defendem uma determinada causa possam ter essa defesa ampliada para o escopo político sem necessariamente se ligar a um ou outro partido”.

Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo formado pela Universidade de São Paulo, onde também obteve o título de mestre e doutor em Ciência Política. Atualmente, é professor na Faculdade Cásper Líbero e é consultor do Instituto Campus Party. Entre os livros que escreveu, destacamos: Exclusão Digital: a miséria na era da informação. (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001), Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento (São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004) e Ciberespaço: a luta pelo conhecimento (São Paulo: Editora Salesiana, 2008).

Confira a entrevista


IHU On-Line – Entre os brasileiros que têm Internet em casa, 45% revelam que baixam conteúdo pirata. No mundo, os números são parecidos com a realidade brasileira. A pirataria venceu

Sergio Amadeu – Não. Eu acho que copiar arquivos digitais ou baixar um arquivo que estava disponível na rede não tem nada a ver com pirataria, porque a metáfora é feita para manter um modelo, são negócios construídos no mundo industrial que não têm mais sentido nas redes digitais. No mundo das redes digitais, quando alguém copia um arquivo, não está tomando nada do original. A metáfora da pirataria não é nada mais do que uma metáfora, ou seja, quando o navio pirata encostava num outro navio e o roubava, ele levava os bens materiais, e o navio que foi roubado fica sem aqueles produtos. Agora, quando você entra num repositório e copia, por exemplo, uma música, isso não tem nada a ver com aquilo que era feito pelos piratas no passado. Aquilo é uma imagem que é equivocada, assim como é equivocada a ação das indústrias de copyright no mundo das redes digitais. É uma coisa completamente absurda. A Internet é uma rede baseada em computação digital.

Os computadores digitais baseiam-se em cópias o tempo todo, quando abro uma página no meu navegador, o que eu fiz foi copiar instruções binárias e que mandam orientações para meu browser. Toda a Internet é baseada, portanto, em cópia. Falar para não copiar nas redes digitais é ir contra a natureza técnica das próprias redes. Não é à toa que a indústria de copyright está afundando. Isso está acontecendo não por cópia não autorizada por eles, mas por causa da diversidade de produtos culturais que temos disponíveis na rede e que eles nunca tiveram no mundo controlado pelo mass-media. Na semana passada, tive acesso a uma pesquisa que mostra que as pessoas que mais baixam músicas pela Internet são as que mais compram cd’s. Então, o alvo criminal deles é o que sustenta a velha indústria da intermediação. O que está acontecendo com a Internet é basicamente a crise dos vários intermediários, porque ela permite que um grupo de música, por exemplo, entre em contato diretamente com seu fã sem a necessidade da intermediação da indústria do copyright. O mundo digital está alterando muito esse “ecossistema” da produção e distribuição de bens culturais.

IHU On-Line – Processar piora a situação para a indústria de filmes e músicas?

Sergio Amadeu – Eles vão ficar processando pessoas comuns. Veja o caso do Pirate Bay, um site que tinha um cracker, ou seja, tinha um mecanismo de busca onde os próprios internautas se registravam no site e quando alguém buscava alguma música ou vídeo, não baixava do site, mas dos computadores das pessoas diretamente. Essa prática de compartilhamento é muito comum, é uma prática antiga. Um exemplo: antigamente, as pessoas pegavam o vinil, botavam no seu aparelho de 3 em 1, gravavam uma fita cassete, emprestavam para os amigos, e isso não era considerado um grande problema. A questão virou um problema quando essa prática, que é comum, encontrou um meio técnico que permite que a prática seja feita com mais intensidade. Então, processar as pessoas é tão ridículo quanto a frase do Elton John que, há algum tempo, disse: “as pessoas não compram mais minha música por causa da Internet, então peço a vocês que fechem a Internet por alguns anos”. Isso é ridículo!

IHU On-Line – Como você vê iniciativas como a do Partido Pirata?

Sergio Amadeu – O programa do Partido Pirata é baseado na liberdade de compartilhamento, de fluxo de bens culturais, de conhecimento. Eles utilizam o nome pirata num sentido bastante irônico, porque trabalham contra a ideia de que existe a pirataria. Mas eles utilizam esse nome para poder chocar e fazer com que as pessoas prestem a atenção para o que está acontecendo no mundo dos bens culturais e do próprio conhecimento. A tentativa dos grandes grupos é a de bloquear ao invés de garantir a livre disseminação da cultura, o que é muito importante numa sociedade que se baseia cada vez mais em informação. Então, acho que a iniciativa é extremamente interessante nesse sentido.

Por outro lado, acho que é bastante complicado montar um partido só sobre um tema, por isso acho que ele cumpre um papel importante, mas ele é limitado porque é um partido monotemático. Penso que hoje os partidos têm de ter um papel muito mais amplo. Por isso acho que o que está em crise hoje é um conjunto de intermediários, como já havia dito. A indústria fonográfica está em crise, a imprensa e a ideia de gatekeeper estão em crise e também os partidos estão em crise porque no mundo das redes existem várias formas de articulação direta entre os cidadãos. Não estou dizendo que o Poder Legislativo está em crise e que vamos substituí-lo por participação direta da população, mas estou dizendo que hoje as redes digitais permitem que as pessoas que defendem uma determinada causa possam ter essa defesa ampliada para o escopo político sem necessariamente se ligar a um ou outro partido.

IHU On-Line – A banda larga deveria ser regulada? De que forma?

Sergio Amadeu – Na verdade, no Brasil, precisamos que antes ela seja ampliada. O Brasil tem uma carência muito grande de banda larga, ela está presente em apenas alguns lugares. Na maioria dos municípios, a banda larga ainda não chegou, o que gera uma conexão completamente assimétrica, distante das possibilidades de uso multimídia, o que é um absurdo. Além disso, a banda larga nas periferias das grandes cidades também não chega como deveria. Nós temos que exigir uma regulamentação que faça com que essas operadoras – que são oligopólios que controlam a conectividade – levem a banda larga a ser um serviço universal como é a telefonia fixa.

Também devemos incentivar que os municípios liberem o sinal e criem nuvens de conexão gratuita. Está mais claro que isso reduz o custo enormemente. Várias cidades estão abrindo o sinal e aumentando a conectividade, incentivando as pessoas a comprarem computadores. Um dos grandes problemas no Brasil é o alto custo da telecomunicação. Aqui, o megabitt chega a ser 20 vezes mais caro do que na Europa. Nós temos um modelo absurdo de precificação da comunicação de dados da banda larga. E tem outro problema: mesmo quando a cidade abre o sinal, essa prefeitura tem que comprar o sinal de uma rede de alta velocidade. Geralmente, ela mensura a sua rede para 200 usuários, por exemplo, mas isso incentiva a conectividade e esse número pula para mil. Com isso, vai querer aumentar a disponibilidade de banda no provedor, e esta empresa que provê a rede passa a cobrar o que quiser do município. Ou seja, essas empresas cobram cada vez mais caro quando aumenta o uso, o que acaba gerando uma megacrise nesses municípios que implantam o programa Cidades Digitais. Temos que ter uma regulamentação que seja completamente diferente do que a ANATEL faz hoje no país.

IHU On-Line – De que forma o conceito de autoria foi modificado com a Internet?

Sergio Amadeu – A sociedade cria os seus arranjos culturais, jurídicos e políticos. A autoria, antes do Renascimento, era uma coisa pouco importante para a criação. Com a industrialização, nasce o processo de divisão do trabalho que existe no mundo das fábricas para o mundo das artes. O compositor passa a ser um cara que não executa, o executor é uma função especializada, e isso vai acontecendo com o conjunto das artes. Isso faz parte do desenvolvimento histórico social que está ligado aos processos e contradições na sociedade, principalmente a ocidental. A ideia de autoria se disseminou a partir do Renascimento, antes não fazia sentido isso, a arte era de domínio comum. Quando a sociedade muda e acaba apostando num tipo de tecnologia que é baseado na troca de bens e materiais, que não tem desgaste nem escassez, de arquivos digitais que podem ser copiados uma vez ou um milhão de vezes sem nenhuma alteração do seu original, nós estamos numa outra fase.

Essa fase dissolve a autoria e coloca novos problemas para essa ideia e retoma noção de que a cultura é um bem comum e que a maior parte das criações têm como base a própria cultura. Aí começamos a ver que não tem sentido sustentarmos uma indústria da intermediação que vive efetivamente do controle da produção cultural. Exemplo: que sentido tem a proteção de uma obra, como diz na nossa legislação, 70 anos depois da morte do autor? Lá atrás diziam que faziam isso para incentivar o criador. O criador morreu há 70 anos, ou seja, não há incentivo ao criador, mas sim estamos mantendo uma indústria da intermediação, que é a maior afetada pelas redes digitais. O mundo mudou e com ele as formas de propriedade também mudam.

IHU On-Line – O senhor já afirmou que a Internet sofre grande influência da cultura hacker. Como podemos compreender essa cultura?

Sergio Amadeu – A Internet é fortemente influenciada pela cultura hacker. No início da Internet, esse grupo de programadores talentosos enfrentava desafios por livre e espontânea vontade. Ao superar esses desafios, eles compartilhavam com todos os outros as soluções. Essa prática de compartilhamento foi combatida pela indústria de software e hardware e passou a chamar de hackers ou crackers, ou seja, passou a confundir o hacker com um criminoso. Isso é uma disputa semiológica e ideológica. A imprensa é financiada pelos grandes grupos, e, assim, passou a disseminar a ideia do hacker como um criminoso. Os historiadores da rede e da Internet apontam, como no livro A Galáxia da Internet (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003), escrito por Manuel Castells, que a cultura hacker é uma das culturas fundamentais na criação da rede aberta, não proprietária, que nós temos hoje, que se chama Internet. É uma rede que permite que se crie formatos, novos conteúdos e novas tecnologias sem pedir permissão a ninguém. Uma rede que é de controle, mas que a cultura hacker garante que esse controle não chegue ao indivíduo porque garante a comunicação anônima. Toda essa construção é baseada também e principalmente na cultura hacker.

“Confecom deve quebrar tabu na discussão da comunicação”

Em entrevista ao Observatório do Direito à Comunicação, o professor Giovandro Marcus Ferreira, diretor da Faculdade de Comunicação da UFBA e membro da Comissão Organizadora Estadual da Conferência de Comunicação da Bahia, fala sobre o processo pioneiro do seu estado na realização, ainda em 2008, da 1ª Conferência Estadual de Comunicação e também sobre as interfaces da academia com o processo conferência.

Coordenador do recém fundado Centro de Comunicação Democracia e Cidadania (CCDC), o professor explica a função do projeto que une organizações sociais e academia na busca pela promoção e garantia do Direito à Comunicação, realizando, dentre outras coisas, o monitoramento da mídia local.

Giovandro Ferreira é doutor e mestre em Ciências da Informação pelo Instituto Francês de Imprensa e Comunicação (IFP), Universidade de Paris 2 (Panthéon-Assas) e, atualmente, além de professor da graduação da UFBA, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da mesma Universidade.

A conferência de comunicação da Bahia, realizada ano passado, foi pioneira neste processo que hoje ocorre em todo o país, com a conferência nacional. Na sua opinião, qual foi saldo daquela experiência no estado? É possível dizer que houve mais integração, acúmulo ou maior sensibilidade para o tema da comunicação entre entidades civis e movimentos sociais no estado?
É preciso destacar que o pioneirismo da Bahia na organização da 1ª Conferência Estadual de Comunicação já faz parte de um acúmulo de manifestações e lutas pela democratização da Comunicação. Desde 2004, 2005 que temos atividades em conjunto, que reúnem sindicatos, associações, ONG's e instituições de ensino. Organizamos várias Semanas de Comunicação ao longo destes últimos anos, oferecemos disciplinas na Facom-UFBA sobre o tema, atuação no interior e na região metropolitana na formação de comunicadores comunitários, etc. O problema é que muitas destas atividades não têm visibilidade pública, não fazem parte do interesse da grande mídia, infelizmente. Porém, o ponto de maior aglutinação foi na última campanha eleitoral para governo do estado, quando analisamos os programas dos candidatos e percebemos pouca coisa no tocante às políticas públicas de comunicação. Elaboramos um documento intitulado “Proposições de entidades da sociedade civil para uma política de comunicação democrática no Estado da Bahia” e apresentamos, na ocasião, à equipe de transição, pois, a redação final do documento, elaborado por diversas mãos, ficou pronta logo após o resultado que confirmou vitória ao governador Jacques Wagner. Um dos pontos de reivindicações foi a realização da conferência, que acredito, deu um salto qualitativo a discussão na Bahia. Mobilizamos mais de 2.000 pessoas numa discussão sobre um tipo de política pública sem grandes lastros históricos, que assiste a sensibilização da esquerda recentemente.

Ainda sobre a conferência baiana de 2008, do ponto-de-vista prático, o governo estadual tem levado em conta ou realizado algumas das resoluções tiradas?
Quero, inicialmente, dizer que houve uma ousadia do governo em ser um ator na realização de tal conferência. O mundo político tem muito medo e dedos em abordar questões relacionadas aos meios de comunicação. As eleições batem à porta a cada dois anos em nosso país e a maioria dos políticos tem uma atitude de bajulação em relação aos meios de comunicação, diria mesmo um comportamento serviçal. É uma espécie de atropelamento do projeto político pelo projeto de poder, o equilíbrio entre esses dois projetos não é nada fácil. Especificamente sobre os encaminhamentos das resoluções da 1ª. Conferência, há realizações e também omissões. Por exemplo, o Irdeb – Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia – tem realizado formação de comunicadores comunitários, um bonito trabalho. Mas ainda falta implementar o conselho estadual de comunicação, a formação de uma secretaria estadual de comunicação entre outras.

Na sua opinião, qual seria a importância desta primeira Conferência Nacional de Comunicação para o país e que ganhos poderemos ter após a sua realização?
Primeiramente, quebrar um tabu acerca da discussão sobre os meios de comunicação. As políticas públicas de comunicação são como vacas sagradas, algo que poucos têm “permissão” de tocar. Logo, haverá uma dessacralização deste domínio, e conseqüentemente, uma sensibilização e envolvimento da sociedade brasileira sobre as políticas de comunicação. Pois bem, minhas esperanças ficam por aqui, vendo as contradições e limites da realização desta 1ª Conferência.

O senhor tem acompanhado e participado do processo das conferências de comunicação, desde a conferência da Bahia ano passado, quando ainda não estava definida a conferência nacional deste ano. Na sua opinião, olhando nacionalmente,o senhor tem sentido um envolvimento devido da Academia neste processo?
O envolvimento existe, porém, não devidamente. O envolvimento maior é dos alunos, aliás, como tem sido historicamente no que se refere às lutas por políticas públicas no Brasil. Talvez como acadêmico minha missão deva começar pelo meu local de trabalho, temos consciência disto e procuramos fazer tal aproximação. Devo lhe confessar que não é uma luta fácil, mas necessária. A Academia, o mundo da educação deve refletir sobre sua contribuição na construção de um Brasil mais justo e democrático. Sair dos dois extremos que ora ela é bloqueada e omissa pela bandeira de uma suposta objetividade, a partir da qual se fica nas conclusões das pesquisas e de outras atividades acadêmicas, jamais chegando às conseqüências deste trabalho ao nível social, político; ora ela fica, igualmente, bloqueada e “viajando na maionese” numa espécie de dogmatismo, orgulho ideológico onde o “conceito” transborda a realidade, invertendo a frase de um grande filósofo medieval. Percebo mudança na Aacademia, porém ela ainda são lentas, aquém da necessidade do nosso país, do nosso povo.

O senhor é membro da Comissão Organizadora (CO) estadual da Conferência na Bahia. Tomando a Bahia como exemplo, na sua avaliação, está havendo uma boa sintonia das COs estaduais com a CO Nacional? Ou há problemas e dificuldades que estão sendo enfrentadas nessa relação?
Há, na verdade, nessa relação, uma busca de adequação da COs estaduais às determinações da CO Nacional. Numa futura conferência seria interessante um maior entrosamento entre estas duas instâncias, obviamente. Talvez por termos feito uma 1ª Conferência, nos sentimos, de uma certa maneira, deslegitimados no trabalho anteriormente feito. Digo isso, acerca de alguns encaminhamentos, que já não eram de consenso entre os membros da antiga comissão organizadora. Porém, este é um dos riscos do pioneirismo. Há a abertura do caminho e depois ele é refeito de diferentes maneiras. O importante é que ele não está sendo abandonado, mas sim alargado e colocado em relevo, como é o caso da discussão sobre as políticas públicas de comunicação.

Determinados temas da comunicação são bastante difíceis e muito técnicos ou envolvem dimensões políticas, econômicas ou legais bastante complexas. Algo que pode afastar o cidadão comum, muitas vezes leigo nesses diversos temas. Na sua avaliação, o que precisa ser feito para trazer o cidadão comum para este debate?
Este é o grande desafio nas políticas de comunicação e de qualquer outra política: envolver o cidadão nas suas discussões e, por conseguinte, na elaboração e participação em outros diferentes momentos. Já dizia Gramsci, que todos são filósofos em diferentes níveis. Somos também elaboradores de políticas públicas em diferentes níveis. Eis, então, a importância da realização deste fórum chamado de conferência para termos uma contribuição ampliada e enriquecida, com pessoas que se relacionam e vivem a comunicação em lugares diversos. A articulação das discussões em grandes eixos (produção, distribuição e cidadania) busca facilitar a aproximação com o tema. Tivemos esta preocupação na primeira conferência da Bahia e os eixos de discussão também (1. Comunicação, Cidadania e novas tecnologias de informação e comunicação; 2. Comunicação e desenvolvimento territorial; 3. Comunicação e educação e 4. Políticas públicas de comunicação) facilitaram o envolvimento do cidadão.

De que modo a Academia pode contribuir em um processo como a Conferência de Comunicação?
Talvez uma das contribuições seja a maneira como se coloca a discussão, ajudando a posicioná-la tendo o cidadão comum como o “debatedor modelo”, ou seja, apesar de aspectos complexos, o ponto de partida pode ser algo que é vivido e sentido pela maioria da população. Um outro aspecto é avançando e aprofundando suas atividades acadêmicas (ensino, extensão e pesquisa) no sentido que se tem feito nos movimentos sociais, agora também na conferência, que é a busca por políticas democrática no âmbito da comunicação. Como se tem repetido, só teremos sociedade democrática, se tivermos meios de comunicação democráticos.

A Faculdade de Comunicação da UFBA lançou recentemente em novembro o Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CCDC) em parceria com entidades civis. Qual o objetivo desta iniciativa e quais as ações em curso?
Estabelecemos vários objetivos na criação do centro: (a) reunir pesquisadores, docentes, profissionais, agentes sociais no desenvolvimento de ações diversas no âmbito da Comunicação, Democracia e Cidadania; (b) ser um espaço catalisador de diferentes experiências no tocante à comunicação como construtora de democracia e de cidadania; (C) acompanhar, de maneira crítica, as políticas de comunicação implementadas no país e nos diferentes Estados, em especial na Bahia; (d) estimular e apoiar pesquisas, ações e lutas pela democratização da comunicação e educação pela comunicação; (e) ser um agente na luta pela democratização da Comunicação no país etc. Enfim, grosso modo, podemos sintetizar como uma contribuição para divulgar e efetivar o Direito à Comunicação é o grande objetivo do CCDC, que lançamos no dia 22 de outubro, no auditório da Faculdade de Comunicação (Facom), da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Hoje, estamos empenhados na mobilização, na capital e no interior, tendo em vista uma maior participação das Conferências de Comunicação no Estado e nacional e estamos num projeto de monitoramento de casos de violação dos direitos humanos na mídia televisiva. Juntamente com o Ministério Público buscando colaborar com a melhoria dos meios de comunicação no tocante ao respeito à pessoa humana. A Cipó Interativa e o Intervozes são dois parceiros neste projeto, que conta também com o apoio da Fundação Ford.

E qual a importância ou pertinência da parceria da universidade pública com organizações civis em iniciativas conjuntas como esta do CCDC? O senhor acredita que isso deveria ser uma regra e não uma exceção, como é atualmente no país?
A Universidade não é uma ilha na sociedade, logo temos que explorar as suas interfaces com outras organizações sociais. Todos saem ganhando nessa associação, sobretudo a universidade, que poderá trabalhar com questões que terão repercussão no desenvolvimento do país, na vida das pessoas. Neste âmbito, sou realmente otimista. Tenho visto em diversas universidades, na Universidade Federal da Bahia, e em especial na Faculdade de Comunicação da UFBA, um interesse de alguns professores e alunos em estabelecer essas parcerias. Como tenho uma história de atuação no movimento social, acabei explorando, juntamente com outros colegas, essa parceria em torno do CCDC, que é fruto de toda a história que comecei contando no início desta entrevista, que se inicia com a organização das semanas de democratização da comunicação e outras lutas que travamos ao longo dos últimos anos.

“Desafio é manter dinâmica colaborativa da web”

[Título original "Intenção é respeitar a natureza colaborativa da web, diz Ministério da Justiça"]

Regras de responsabilidade civil para provedores e usuários. Medidas para preservar a liberdade de expressão e a privacidade. Princípios e diretrizes para garantir o bom funcionamento da rede. Essa é, em linhas gerais, a temática do processo colaborativo para estruturar o Marco Regulatório Civil da Internet, lançado no dia 29 de outubro pelo Ministério da Justiça (MJ) em parceria com a Fundação Getulio Vargas.

O blog que concentrará essa construção coletiva está hospedado na página do Fórum da Cultura Digital Brasileira, no endereço www.culturadigital.br/marcocivil. O Fórum constitui uma rede permanente de formulação e construção de consensos por meio da qual atores governamentais, estatais, da sociedade civil e do mercado consolidarão diretrizes para uma política pública da área. Sua realização é propiciada por parceria do Ministério da Cultura com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).

"A opção do Ministério da Justiça em realizar o processo de formulação na rede social do Fórum sinaliza a sensibilização do governo para a importância de buscar novas formas de interlocução com a sociedade", comenta o gerente de Cultura Digital do MinC, José Murilo Jr., da Secretaria de Políticas Culturais. "Fomentar esta reflexão ampla se valendo dos modelos de debate e colaboração nativos da rede pode viabilizar modelos de coordenação pública descentralizada capazes de criar soluções inovadoras para as questões apresentadas pelo século 21."

A formulação do marco civil se dará em duas fases, previstas para durar 45 dias cada. Na primeira, a discussão parte de texto-base produzido pelo Ministério da Justiça, e em cada parágrafo os usuários do portal www.culturadigital.br podem inserir comentários e avaliar os postados por outras pessoas. Na segunda, a metodologia será a mesma, mas o debate ocorrerá em torno da minuta de anteprojeto de lei.

A discussão, segundo o MJ, não se aprofundará em temas que vêm sendo discutidos em outros foros ou que extrapolam as questões da Internet, como direitos autorais, crimes virtuais, comunicação eletrônica de massa e telecomunicações.

Existe hoje um descompasso entre o direito e as práticas estabelecidas na internet, avalia o coordenador do projeto de construção colaborativa, Guilherme Almeida de Almeida, da Secretaria de Assuntos Legislativos do MJ. O objetivo da proposta, explica ele, é superar a insegurança jurídica resultante e embasar políticas públicas, mantendo o caráter de espaço de colaboração da rede. Confira entrevista em que o coordenador fala sobre a consulta.

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A Internet ainda é associada, para o bem e para o mal, à imagem de "terra sem lei". Essa realidade está mudando, não? Várias propostas de legislação vêm tratando do tema, inclusive a reforma eleitoral, sancionada no fim de setembro…

Guilherme Almeida de Almeida – Sim. Sem entrar no mérito das decisões ou dos projetos recentes, a impressão geral é que a Internet afirma-se cada vez mais como um espaço público de interação entre indivíduos. O que acontece é que este espaço é estruturado a partir de uma série de regras tecnológicas (os protocolos, por exemplo) e de princípios (como a neutralidade, a liberdade de expressão, o livre acesso, a capacidade de que os indivíduos e as organizações inovem criando novas formas de comunicação a partir da estrutura já existente), e este espaço ampliado permite mais e novas formas de interação. Estas regras e princípios já existentes – a despeito da imagem de "terra sem lei", ou talvez justamente por causa dela – nem sempre são compreendidos por aqueles que trabalham com o direito, ou por aqueles responsáveis por implementar políticas públicas.

Em que sentido?

G.A.A. – De certa forma, a Internet "amplifica" a vida real. Tanto a capacidade de comunicação dos indivíduos quanto os impactos dessa comunicação ficam aumentados em comparação com nosso contexto off-line. Isso muitas vezes desorienta tanto os legisladores quanto os operadores do direito. O maior risco, na regulação da Internet, seria ignorar sua própria natureza e os princípios que a fizeram ser o que é hoje. É preciso preservar a dinâmica da Internet como espaço de colaboração, sob pena de, a médio prazo, anularmos as vantagens que esta nova forma de se comunicar trouxe à sociedade.

Que pontos devem ser abrangidos pelo marco regulatório civil?

G.A.A. – A proposta colocada para discussão orienta-se a partir de três eixos. O primeiro deles tem por objetivo afirmar os direitos dos indivíduos, bem como criar meios para que sejam efetivamente implementados e interpretados a partir desta nova realidade comunicacional. Isso implica, por exemplo, buscar meios legais para proteger o direito dos cidadãos à privacidade e à liberdade de expressão, assim como reconhecer o direito de acesso à Internet como evolução natural do direito à comunicação, à informação e à própria liberdade de expressão.

O segundo eixo tem por foco uma definição clara da responsabilidade dos intermediários envolvidos nos processos de comunicação via Internet. As regras atuais – de direito civil ou de direito do consumidor, por exemplo – nem sempre levam em conta a natureza, as regras tecnológicas e os princípios da Internet. Essa lacuna tem levado frequentemente a interpretações contraditórias. Uma mesma situação pode levar a decisões extremamente divergentes – um questionamento com relação a uma demanda de direito de imagem pode ser simplesmente ignorado por um juiz, ou pode levar ao fechamento por completo ou ao bloqueio de acesso a um portal, por exemplo. Essa insegurança jurídica é nociva para os indivíduos, para os empreendedores e para a sociedade como um todo.

Que efeitos negativos essa insegurança pode gerar?

G.A.A. – Ela desincentiva o potencial de criação, inovação, colaboração e participação da Internet, na medida em que os atores não têm consciência ou previsibilidade sobre as possíveis consequências de seus atos. Também é necessário pensar em formas extrajudiciais de solução de conflitos, e da determinação de eventuais obrigações aos intermediários para que garantam e sigam os princípios e a natureza da Internet – como a neutralidade da rede, fundada na não discriminação dos conteúdos que nela circulam.

O terceiro eixo busca identificar princípios de convergência, ainda que em nível abstrato, para a atuação estatal em relação à Internet. Essa tarefa já é feita, de forma propositiva e consultiva, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil. O que pretendemos é dar força mais vinculante a estas diretrizes, para que elas possam fundamentar futuras iniciativas de regulamentação e de formulação de políticas públicas.

Como a discussão da proposta se relaciona com outras em curso, particularmente o Projeto de Lei (PL) 89 de 2003?

G.A.A. – As manifestações da sociedade em relação ao PL 89 demonstraram claramente que a sociedade realmente se importa com este tema, que existe um grande potencial de mobilização. Mostraram também algo óbvio, mas que estranhamente estava fora do debate: que o direito penal é uma forma de controle social extrema, a ser usada apenas como último recurso. Iniciar o debate ou a regulamentação sobre o tema pelo aspecto criminal, apesar de várias demandas nesse sentido, é inverter essa lógica do ordenamento jurídico. A proposta atual é a de seguir o caminho correto: definir e afirmar, primordialmente, os direitos dos cidadãos.

Quanto a demais propostas, a intenção do projeto é dialogar com elas. A ideia do marco civil é justamente construir uma base mínima de definição de direitos, responsabilidades e parâmetros para regulamentação da Internet no país. Temas específicos, como a publicidade eletrônica, poderão usar essas premissas para sua eventual regulamentação.

O Ministério da Justiça parte de experiências de outros países ao propor essa legislação?

G.A.A. – Sem dúvida. Uma das vantagens em nossa demora para definir normas mais claras a respeito do assunto é poder aprender com os resultados positivos e negativos de experiências internacionais. Um caso exemplar é o da privacidade. A União Europeia, por exemplo, possui já há um bom tempo diretrizes relativas à proteção de dados pessoais, inclusive em meios eletrônicos. Regulamentações posteriores, como aquelas relativas à retenção de dados de indivíduos para fins de investigação criminal, foram colocadas apenas depois, e partindo desse arcabouço prévio de respeito aos direitos individuais.

É preciso estar atento também a efeitos perversos de algumas iniciativas estrangeiras. A implementação de mecanismos extrajudiciais ou pré-judiciais de solução de conflitos nos Estados Unidos levou, no início, a algum cerceamento da liberdade de expressão. Na França, a tentativa de estabelecer uma legislação que punisse com restrição de acesso a pessoas que tivessem violado direitos de terceiros vem sendo fortemente questionada, por ferir o direito fundamental ao acesso. Estamos atentos a esses e demais casos na condução de nosso processo.

Com a decisão de formular o projeto de modo colaborativo, qual é a expectativa do MJ?

G.A.A. – Talvez esta seja a maior novidade e o maior desafio com relação a este projeto: respeitando a dinâmica da Internet como espaço de colaboração, resolvemos construir o marco civil juntamente com todos aqueles que tenham interesse em participar, numa espécie de consulta pública, num blog criado especialmente para o projeto. Estamos usando outras ferramentas, como o twitter e foros de discussão, para buscar dar maior alcance e densidade ao debate.

Pensamos que esta pode ser uma nova forma de implementar a democracia na prática, ao gerar canais não só de escuta, como também de participação e de interferência, abertos a cada cidadão. Caso a iniciativa tenha sucesso, a intenção é replicá-la para novos projetos, de forma cada vez mais aberta e colaborativa. A amplificação trazida pelas novas tecnologias pode significar também a amplificação da democracia. Essa é nossa maior expectativa.

“Nossa lei de direitos autorais não dá mais conta dos desafios da internet”

Mesmo com o advento da digitalização mundial e dos downloads pela Internet, a lei com relação aos direitos autorais no Brasil ainda não se adaptou à nova realidade. Buscando modificar os impedimentos dessa lei, o licenciamento de obras em Creative Commons possibilita a autorização prévia de artistas sobre os usos de suas obras. É sobre este mecanismo que conversamos com o professor Sérgio Branco. Em entrevista, por telefone, à IHU On-Line, Branco fala sobre o funcionamento, os usos, a função social e os impactos econômicos do Creative Commons. Segundo ele “quanto maior o aproveitamento de obras legais por terceiros, maior a possibilidade de criação de obras. Com esta criação, movimenta-se o mercado econômico também por criações novas, ainda que sejam por obras derivadas”.

Sérgio Branco é professor na Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV e doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como funciona o Creative Commons?

Sérgio Branco – Em primeiro lugar, é importante falar sobre nossa lei de direitos autorais, cuja proposta de mudanças está sendo discutida em São Paulo. Nossa lei atual é extremamente restritiva e proíbe uma série de coisas, inclusive proíbe a cópia integral de qualquer obra. Mesmo que eu, por exemplo, como autor de uma música, queira que as pessoas baixem minha música pela Internet, a lei só permite que os usuários gravem pequenos trechos de cada obra. O Creative Commons serve como um mecanismo de ajuste do impedimento da lei. É um licenciamento pelo qual o autor autoriza previamente quais usos podem ser feitos de sua obra pela sociedade. Se eu sou músico e quero licenciar minha obra em Creative Commons, eu crio uma licença que irá permitir, no mínimo, que as pessoas possam copiar minha música na íntegra, ao contrário do que prevê nossa lei atual.

IHU On-Line – Como funciona hoje a lei dos direitos autorais no Brasil?

Sérgio Branco – A lei atual é de 1998, que aparece quando o mundo já está se digitalizando. A Internet não tinha ainda a abrangência que tem hoje, mas já existia, já existiam CDs, o mundo já era digital. Porém, a lei de 1998, ao contrário da lei anterior, de 1973, não permite a cópia integral de obras, permite apenas a cópia de pequenos trechos. Faz poucas exceções para usos educacionais, não faz exceção nenhuma para uso por meio de organizações não governamentais, asilos, presídios e escolas públicas. É uma lei bastante restritiva. Comparada a outros países, e eu já analisei as leis de diversos países, é uma das mais restritivas do mundo. E como a lei impõe todas essas restrições, a sociedade se organizou de modo a buscar um mecanismo que estivesse em conformidade com a lei, mas permitisse um uso mais flexível das obras intelectuais. É neste contexto que surge a licença Creative Commons.

IHU On-Line – Como o Creative Commons muda essa lógica?

Sérgio Branco – Uma vez que o autor tem maior autonomia para dispor de sua obra, ele poderá, dentro do exercício livre de seu direito como autor, determinar que usos poderão ser feitos com a mesma. Ele que irá dizer se a sociedade pode usar a obra com ou sem fins lucrativos, se poderão somente copiá-la, se poderão modificá-la e criar outras derivadas. Eu posso compor um tipo de música e autorizar que as pessoas modifiquem a letra, a melodia, transformem minha música em outra. No mundo em que vivemos hoje, do remix, do reaproveitamento de obras, o Creative Commons se presta muito bem para esta finalidade, uma vez que, por meio da licença, permite que as pessoas legalmente possam usar de uma obra com os fins determinados por seu autor.

IHU On-Line – Como funciona a criação de uma licença Creative Commons? Como são as classificações dessas licenças?


Sérgio Branco
– Acho que o Creative Commons é extremamente simples de se entender. O site mostra o que é preciso fazer para criar a licença, que é simplesmente responder a duas perguntas: se você permite que se faça uso econômico de sua obra e se permite que sejam criadas obras derivadas a partir dela. Uma vez que você responda a essas duas perguntas principais, o próprio site gera uma licença que é absurdamente autoexplicativa, ela indica para a sociedade o que os usuários podem fazer com sua obra independentemente de uma nova autorização do autor. Essa licença pode ser colocada em meios físicos. Eu mesmo lancei dois livros já licenciados em Creative Commons e a licença está impressa no próprio livro, de modo que para o usuário é bastante simples, só abre o livro e vê de que forma ele está licenciado e de que forma ele pode se valer daquela obra. Para o autor é simples também, é só criar a licença, que tanto pode estar em um meio físico como pode ser colocada nos sites, no licenciamento de música ou textos e fotos de um site. Surgem as licenças a partir da combinação dada às duas perguntas do site. Haverá uma série de licenças que surgem a partir da combinação das respostas, quer o autor tenha autorizado o uso comercial ou não, quer ele autorize obras derivadas ou não. É uma análise combinatória das respostas possíveis, por isso surgem licenças diferentes, mas elas nada mais são do que o respeito à manifestação de vontade do autor quando ele determina quais usos podem ser dados àquela obra licenciada em Creative Commons.

IHU On-Line – Qual setor hoje é o que mais usa o Creative Commons?

Sérgio Branco – Eu não saberia dizer exatamente qual setor, mas vejo muito uso em música e em sites. A Internet tem essa natureza de dar muita visibilidade a obras, e, ao mesmo tempo, um controle menor sobre o que a outra pessoa vai ou não poder fazer. Quando se coloca a própria obra na Internet, e o autor pode fazer isso, é muito difícil ter um controle. O Creative Commons vem apenas para legitimar aquilo que as pessoas geralmente fazem, que é copiar as obras que estão disponíveis na Internet, quer a lei permita ou não. Por meio do Creative Commons, legaliza-se um uso que as pessoas fariam de qualquer jeito, por isso para a Internet é tão importante. Se você licencia um site com Creative Commons, autorizado o uso comercial ou não, obras derivadas ou não, de qualquer forma, você permite que as pessoas possam, no mínimo, copiar o conteúdo do site. É importante dizer que até na licença que permite apenas copiar o uso, e não permite qualquer utilização na obra, é indispensável dizer a origem. Se você tem um site onde coloca seus textos e outra pessoa os copia, essa pessoa, por meio de uma licença Creative Commmons, está obrigada a indicar o site de onde tirou o texto ou seu autor.    Para a Internet, isso é extremamente útil, e tenho visto muitos sites usando licença Creative Commons.

IHU On-Line – E que setores ainda podem utilizá-lo?

Sérgio Branco – Qualquer obra protegível por direito autoral pode ser licenciada em Creative Commons. O mais difícil hoje em dia são filmes. As obras audiovisuais têm tradicionalmente usado menos as licenças Creative Commons, acho que por conta dos custos que são mais elevados e pela produção mais escassa. Não é muito comum haver essas licenças, sobretudo de longas metragens. Mas nada impede que filmes venham a ter licenças Creative Commons. A licença pode ser utilizada para absolutamente qualquer obra que possa ser protegida por direito autoral.

IHU On-Line – Podemos dizer que o Creative Commons, da forma como está se desenvolvendo e sendo utilizado, gera uma cultura da economia do conhecimento?

Sérgio Branco – Sem dúvida. Vivemos hoje em uma expansão gigantesca do conhecimento, e o Creative Commons estimula as pessoas a licenciarem suas obras e a legalizar aquilo que a sociedade vem fazendo à margem da lei: a cópia integral de obras sem autorização do autor. A licença permite a difusão do conhecimento de um modo legal, permite o uso de obras em instituições de ensino e ONGs, tem um papel social extremamente relevante a cumprir.

IHU On-Line – Qual é o impacto econômico que teremos com a flexibilização dos direitos autorais?


Sérgio Branco
– O impacto econômico pode ser medido de diversas formas, mas, quanto maior o aproveitamento de obras legais por terceiros, se tem maior possibilidade de criação de obras. Com esta criação, movimenta-se o mercado econômico também por criações novas, ainda que sejam por obras derivadas. Obras em domínio público são extremamente relevantes do ponto de vista econômico porque, embora não se tenha a obrigação de pagar direitos autorais para utilizá-las, como peças de Shakespeare, ou músicas de compositores clássicos, como Chopin e Mozart, gera uma grande movimentação econômica com o reaproveitamento, com a modificação e a criação de novas obras a partir de uma dessas.

IHU On-Line – Como o senhor vê as iniciativas paralelas ao Creative Commons?

Sérgio Branco – A nossa lei de direitos autorais não dá mais conta dos desafios que a Internet impõe, porque, hoje em dia, o mais comum é que muitas pessoas baixem obras, copiem e modifiquem, independentemente das proibições legais. Os artistas vêm buscando novos modelos de negócios. Temos um problema hoje que se divide em dois: um problema legal e de modelo de negócio. O problema legal, temos que resolvê-lo modificando a lei, e é nesse sentido que o Minc está promovendo seminários, consultas e debates públicos, para tentar ajustar e modificar a lei e torná-la mais em conformidade com as novas tecnologias e com o que a sociedade vem fazendo. Mas temos também um problema de modelo de negócios, que é tentar ajustar a forma de ganhar dinheiro com obras intelectuais ao tempo em que vivemos, e não se aproveitar de obras intelectuais para ganhar dinheiro com modelos de negócios dos anos 1970 ou 1980, que não existem mais porque o suporte, a tecnologia e o acesso são outros. Nos anos 1980, o direito autoral só interessava para quem tinha uma gravadora, uma editora, e hoje interessa a todo mundo, pois todos têm acesso a obras pela Internet, todos modificam, criam, remixam e disponibilizam. Então, a forma de remuneração também tem que ser repensado, não basta repensar só a lei. Por isso, iniciativas como do Radiohead (que disponibilizou em seu site suas músicas para serem baixadas) são louváveis, pois é uma busca por um novo modelo de negócio, sabendo que o anterior já não funciona mais.

Uma coisa importante é que não existe uma incompatibilidade entre o licenciamento gratuito das obras, o que o Creative Commons promove, de modo geral, e o fato de que o autor não vai ganhar dinheiro. Esta busca por novos modelos de negócio gera também novas formas de remuneração. Há casos de autores, sobretudo de música, que licenciaram suas obras em Creative Commons e, ainda assim, ganham bastante dinheiro com outras formas, como shows, por exemplo. O BNegão, que integrava o grupo Planet Hemp, é um exemplo disso. Ele licenciou todas suas músicas em Creative Commons e tem vivido a partir de shows na Europa etc. Então não há uma incompatibilidade entre as obras estarem gratuitamente disponíveis na Internet e o fato de o autor ganhar dinheiro com elas. Isto é possível. Só deve ser pensada uma forma de acontecer, e aí cada caso é diferente, mas há vários casos de sucesso.