Arquivo da categoria: Análises

A mídia na ordem do dia

Os últimos anos têm sido pródigos em mudanças no Brasil. E elas ocorrem não aos saltos, mas por força de uma nova hegemonia que se vai construindo, que se vai tecendo pouco a pouco, conquistando corações de mentes, e vão se desenvolvendo, sobretudo, depois que o presidente Lula tomou posse em 2003. O que quer dizer que são resultado do milagre da política. Esta, no dizer de Hannah Arendt, é a única com possibilidades de produzir milagres, e certamente ela, ao dizer isso, não queria agredir aos homens e mulheres de fé, que não se discute.

Temos já outra Nação, com mais autonomia, com auto-estima elevada, exercendo a sua soberania, distribuindo renda, começando a enfrentar os nossos gigantescos problemas sociais. A presidenta Dilma dá sequência, com muito vigor, ao projeto iniciado em 2003, especialmente preocupada com o combate à pobreza extrema, ainda tão presente em nosso País. Ainda há muito que mudar. E cito problemas que teremos que enfrentar, como o da necessidade da reforma política e o da regulação dos meios de comunicação audiovisuais.

É especificamente sobre a regulação dos meios de comunicação que pretendo me debruçar nesse artigo. E o faço porque tenho me preocupado com isso desde há muito, dada a minha condição de cidadão, militante, jornalista e professor de Comunicação, e, também, pelo fato de o líder de minha bancada na Câmara Federal, deputado Paulo Teixeira, ter me destacado para contribuir na articulação da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e pelo direito à comunicação, ao lado de parlamentares de partidos diversos, entre os quais destaco a deputada Luiza Erundina, que sempre se dedicou à luta pela democratização da comunicação no Brasil.

Não é necessário estender-me muito para dizer da importância dos meios audiovisuais ou da mídia enquanto um todo, incluindo a impressa. Desde o seu surgimento em sua forma mais moderna, a imprensa ocupou um papel essencial na construção ou desconstrução de hegemonias políticas. E ocupou o centro também da construção de novas formas de convivência, de existência na humanidade. A mídia é construtora de uma nova sociabilidade. Por isso mesmo, não há Estado contemporâneo que não se preocupe com a regulação dos meios de comunicação, especialmente, nos tempos que vivemos, regulação dos meios de comunicação audiovisuais.

Como são essenciais à construção cotidiana da democracia, os meios audiovisuais têm que ser regulados pelo Estado de Direito democrático, como ocorre nos países de democracia considerada avançada. Curioso é que no Brasil quando se fala em regulação, alguns meios sentem-se agredidos, como se isso não fosse próprio do Estado democrático, como se isso não ocorresse em nações civilizadas e de democracias muito mais longevas do que as nossas. É que o uso do cachimbo faz a boca torta.

As poucas famílias que controlam nossa mídia considerada hegemônica acostumaram-se com uma regulação completamente anacrônica, defasada, sem qualquer conexão com a contemporaneidade, uma legislação inteiramente desconectada de uma sociedade midiatizada e que, por isso mesmo, não pode ficar à mercê da boa ou má vontade dos controladores privados dos meios audiovisuais. Uma sociedade midiática, onde os meios audiovisuais são impressionantemente majoritários, e invadem, para o mal ou para o bem, todas as classes sociais e todas as idades, não pode prescindir de uma legislação que dê conta de todas as novas e impressionantes singularidades desse admirável mundo novo. Que regule esse mundo.

Parece incrível, mas é verdadeiro: o Código Brasileiro de Telecomunicações, instituído pela Lei 4.117, é de 1962. Isso mesmo, não errei na data. É de quase meio século atrás. Quando, por exemplo, a televisão não era ainda o meio hegemônico. Quando as emissoras de rádio e os jornais tinham uma extraordinária importância. O Código sofreu alterações em 1967, sob a ditadura militar, e naturalmente para aplainar o caminho de uma sociedade que começaria a viver a idéia de um País em rede. No final de 1969, início dos anos 1970, surge a Rede Globo, alcançando todo o Brasil, para dar suporte político à ditadura, como todos o sabem.

Como um código desses pode dar conta dessa avassaladora presença dos meios audiovisuais, agora cada vez mais miniaturizados, concentrados em minúsculos aparelhos, admirável mundo novo da convergência digital, que pode chegar, de uma forma ou de outra, aos mais ricos e aos mais pobres, e cuja influência é gigantesca? Não pode mais. Decididamente, não pode.

Não se aceita mais que um País, com tamanha diversidade social, política e cultural, com tantas vozes e discursos, tão multifacetado, com uma cultura plural, riquíssima, se veja submetido a monopólios que insistem num pobre discurso único, de baixo nível. Democratizar a comunicação é respeitar a Constituição que veda monopólios. Democratizar a comunicação é dar voz a tantos atores sociais silenciados. Democratizar a comunicação é ampliar a propriedade dos meios para além dos monopólios. A democracia é que reclama isso.

O governo Lula, na reta final ano do segundo mandato, começou a discutir o problema. Teve a coragem de convocar a I Conferência Nacional de Comunicação. Isso mesmo, a primeira. E olhe que o Brasil realiza conferências populares uma atrás da outra. Mas a comunicação estava fora da agenda, não entrava na nossa pauta política. E, também, sob a direção do ex-ministro Franklin Martins, começou a elaborar um anteprojeto de regulação dos meios audiovisuais e o concluiu, deixando claro que não se iria tratar dos meios impressos. Esse anteprojeto está nas mãos do ministro Paulo Bernardo, das Comunicações.

E esse novo marco regulatório, cujo conteúdo ainda não conheço, certamente terá que discutir a concentração dos meios de comunicação audiovisuais nas mãos de poucas famílias, a propriedade cruzada desses meios (ou seja, diferentes meios de comunicação nas mãos de um único grupo), o fato de tantos meios audiovisuais se encontrarem nas mãos de políticos, as dificuldades para a constituição de rádios e tevês comunitárias, a importância do fortalecimento de um setor público audiovisual a exemplo do que ocorre nos países mais desenvolvidos, a regulamentação dos artigos da Constituição que asseguram, por exemplo, o respeito aos direitos humanos e a obrigatoriedade da produção regional entre tantos outros temas. Uma discussão, como temos defendido no início das articulações para a constituição da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e pelo direito à Comunicação, que conte com participação popular, com entidades que têm se dedicado a essa luta e à luta pelo respeito aos direitos humanos por parte dos meios audiovisuais, useiros e vezeiros em desrespeitar tais direitos.

Por ser um assunto maldito, que estava fora da pauta política, ainda há temor em tratar dele no Congresso Nacional, para além dos parlamentares eventualmente afinados com os lobbies dos monopólios. A bancada do meu partido, no entanto, estará firme nessa luta pela democratização dos meios de comunicação. E sei que bancadas como a do PSB, do PC do B, do PSol penso que também a do PDT, espero também que do PV e de outros partidos, deverão de dedicar a essa luta. Torço e luto para que toda a base aliada do Governo da presidenta Dilma se una em torno do novo marco regulatório quando ele chegar à Câmara Federal. Nossa bancada já está nessa luta. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Emiliano José e deputado federal (PT/BA).

Por que o projeto de lei do Fust é um desastre

Está em vias de aprovação na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL 1481/2007) que modifica a lei do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, o Fust (Lei 9998/2000). Sob o véu de agenda positiva, esconde-se um texto desastroso, anacrônico, que descaracteriza o fundo, configura um desvio de finalidade e promove uma imensa transferência de renda dos consumidores para as empresas de telecomunicações.

Ele vem no bojo de duas falsas premissas: 1) a de que a lei do Fust é ruim por não permitir o uso do fundo para a expansão da banda larga; 2) a de que são necessárias políticas especiais do Fust para garantir a conectividade dos estabelecimentos de ensino. Os problemas em que se baseiam essas premissas são verdadeiros, as soluções é que são péssimas.

O Fust nasceu para financiar a universalização dos serviços prestados em regime público, que são aqueles que têm como objetivo serem universalizados – e assim deveria permanecer. Parece óbvio? Mas não é. A Lei Geral das Telecomunicações (9472/97) estabeleceu vários pontos relevantes para entendermos essa não-obviedade:

1) Ela dividiu os serviços de telecomunicações em serviços prestados em regime público e em regime privado. No primeiro caso, encaixam-se todos aqueles prestados “mediante concessão ou permissão, com atribuição a sua prestadora de obrigações de universalização e de continuidade”. ‘Regime público’, portanto, nada tem a ver com serviços de telecomunicações prestados pelo Estado: significa, na prática, apenas o reconhecimento daquele como um serviço público (como água, luz etc.), a ser prestado por empresas privadas ou públicas;

2) Cada modalidade de serviço pode ser prestada só no regime público, só no regime privado ou concomitantemente nos dois regimes.

3) O único serviço que a lei já define como regime público é o de telefonia fixa. É o que fazia sentido à época (1997). Mas o artigo 18 diz claramente que cabe ao Poder Executivo, por meio de decreto, “instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado”. Isto é, a qualquer momento qualquer outro serviço em regime público pode ser criado, basta um decreto da Presidência da República;

4) Mas o ponto mais importante é que a lei diz claramente: “não serão deixadas à exploração apenas em regime privado as modalidades de serviço de interesse coletivo que, sendo essenciais, estejam sujeitas a deveres de universalização”.

Esse é o ponto chave. Se a banda larga é essencial e deve ser universalizada – e nós acreditamos fielmente nisso – então, segundo a lei, ela deve ser prestada em regime público. Com isso, não se precisaria fazer nenhuma modificação na lei do Fust para que ele pudesse ser usado para esse serviço. E para fazer da banda larga um serviço em regime público, bastaria um decreto.

Mas por que seria importante transformar a banda larga em regime público? i) porque é o reconhecimento de que ela é um serviço público essencial a ser universalizado, com metas para isso (inexistentes no regime privado); ii) porque ela passa a ter obrigação de continuidade; iii) porque ela viabiliza um controle efetivo das tarifas (no regime privado, as tarifas são livres); iv) porque ela cria bens reversíveis, ou seja, os bens essenciais à prestação do serviço são devolvidos à  União no final do contrato (analogamente: a empresa de luz não pode levar os fios e cabos com ela no final do contrato); v) porque o controle sobre as empresas e suas obrigações de qualidade perante os usuários passa a ser muito maior.

Não à toa, na I Conferência Nacional de Comunicação, a proposta de transformar a banda larga em serviço em regime público foi aprovada por consenso, com apoio do poder público e do conjunto da sociedade civil, inclusive do setor empresarial.

As armadilhas do projeto

O que o PL 1481 (esse que está em vias de ser aprovado) faz é ampliar a possibilidade de uso do Fust. O texto atual da lei estabelece, coerentemente, que o fundo tem como finalidade “proporcionar recursos destinados a cobrir a parcela de custo exclusivamente atribuível ao cumprimento das obrigações de universalização de serviços de telecomunicações, que não possa ser recuperada com a exploração eficiente do serviço”. O PL inclui outro objetivo: “financiar, de outras formas, iniciativas voltadas a ampliar o acesso da sociedade a serviços de telecomunicações prestados em regime público ou privado e suas utilidades, bem como programas, projetos e atividades governamentais que envolvam serviços de telecomunicações”.

Isto é, o fundo de universalização deixa de ser só de universalização. Ele passa a ser um fundo para financiar quaisquer iniciativas voltadas a ampliar o acesso, de serviços em regime público ou privado. Pode parecer positivo à primeira vista, mas na prática abre-se uma avenida para que recursos sejam usados para n finalidades e, mesmo assim, os serviços permaneçam não universalizados. Até porque o PL abre o uso do Fust para qualquer uso, ao retirar do caput do artigo que trata das finalidades a relação do seu uso com os planos gerais de metas de universalização.

Esse desvio de finalidade é um risco real. A ideia de universalização tem sido abandonada até por quem deveria defendê-la. O Programa Nacional de Banda Larga (PNBL), por exemplo, não trabalha em nenhum momento com a ideia de universalização, mas sim de massificação. O documento base do PNBL, ao lado de várias propostas interessantes, cita como exemplo positivo de massificação a telefonia celular, que é denunciada por entidades de defesa do consumidor como um desastre – a média de uso é dos pré-pagos (mais de 80% da base) é de R$ 5, com uma das tarifas mais caras do mundo. Esses dados mostram que o aparelho pode até estar universalizado, mas o serviço está longe de ser. Se, para o programa de banda larga do Governo Federal, o exemplo positivo é esse, então a ideia de universalização precisa mesmo ser resgatada.

A principal justificativa ‘positiva’ para o projeto de mudança na lei do Fust é que ele estabeleceria meta de universalização da banda larga nas escolas públicas até 2013. Mas é preciso dizer que, por conta de trocas de metas realizadas pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) com as empresas de telecomunicações em 2006, esse objetivo já foi garantido antes disso! O site do Ministério da Educação mostra como o processo está avançado, quase concluído. Além disso, a lei, em seu formato atual, já estabelece que pelo menos 18% dos recursos do Fust devem ser aplicados em estabelecimentos públicos de ensino. Então, mesmo se ainda faltar conexão para um conjunto de escolas, há grande quantidade de recursos para usar com essa finalidade. Na prática, uma finalidade inegavelmente relevante tem sido usada como vitrine para um projeto que tem objetivos bem menos nobres.

Para completar sua lista de problemas, o PL revoga o artigo da lei atual que determina que as empresas devolvam ao Fust a receita obtida em serviços prestados com recursos do fundo que for superior àquela estimada nos projetos.

O único ponto positivo do projeto é que ele corrige uma distorção da lei original, que ao dedicar pelo menos 30% dos recursos para a Amazônia e o Nordeste, estabeleceu seu uso pelas concessionárias de telefonia fixa (que era, e segue sendo, o único serviço prestado em regime público), o que se tornará um limitante no momento em que se estabelecer o regime público para a banda larga (se isso acontecer, é claro). Mas isso poderia ser feito de forma bem mais simples.

A quem interessa?

Mas, afinal, de quem é o interesse para a aprovação desse projeto? As principais interessadas são as empresas de telecomunicações. Elas, que já faturavam R$ 180 bilhões em 2009, querem morder os mais de 7 bilhões de reais já acumulados no Fust sem serem submetidas à metas de universalização ou ao regime público. Sem o regime público, elas usarão recursos do fundo para incrementar seu próprio patrimônio. Sem a reversibilidade dos bens, elas tornam-se proprietárias de toda a infraestrutura adquirida com dinheiro público, que em tese deveria garantir a universalização dos serviços.

De fato, o projeto prevê possibilidade de subsídios diretos às empresas de telecomunicações, depois de um processo público de seleção feito “a partir de editais elaborados com base na política de universalização e nas diretrizes do Ministério das Comunicações”. Se estamos falando de política de universalização, não deveríamos falar de regime público, como diz a Lei Geral de Telecomunicações? Assim deveria ser, mas a proposta de modificação da lei do Fust não se inibe em ser completamente contraditória com a LGT.

Outro possível interessado na proposta é o Governo Federal, que enxerga nos recursos do fundo uma maneira de financiar o Programa Nacional de Banda Larga. De fato, seria muito positivo que esses recursos fossem utilizados para a universalização da banda larga; mas não é isso que prevê o Programa, que se restringe à ideia de massificação. Se quiser de fato universalizar a banda larga, em vez de modificar a lei do Fust e aplicar os recursos tendo como modelo a telefonia celular, basta ao governo publicar um decreto estabelecendo a banda larga como um serviço a ser prestado em regime público. E aí o caminho estará aberto para os recursos do fundo serem usados para financiar o PNBL.

O último ponto a ser destacado, como ironia da história, é que parte da esquerda, ao apoiar este projeto, está defendendo uma visão mais liberal que a dos ideólogos da privatização tucana. A LGT, baseada em modelos do Banco Mundial, ainda preservava minimamente a ideia de serviço público, e estabelecia o Fust como um instrumento para garantir políticas de universalização do serviço. Naquele momento, a ideia parecia um retrocesso. À época, a Telebrás tinha uma política de subsídio cruzado, que fazia com que a receita das áreas e serviços mais lucrativos subvencionasse o serviço em áreas mais remotas e/ou menos lucrativas. Com a privatização, um fundo composto por várias receitas, principalmente pela cobrança de 1% sobre a receita operacional bruta das empresas, passou a cumprir esse papel.

Agora, um projeto de lei pode fazer com esse fundo seja usado para fazer uma das maiores transferências de renda já vistas, com empresas privadas constituindo patrimônio próprio com dinheiro público, sem obrigações de universalização e sem prestar um serviço público. Oxalá os deputados ainda tenham tempo de perceber o tamanho do erro que estão prestes a cometer.

 

* João Brant é membro da Coordenação Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

Mídia e democracia: o desafio do novo marco regulatório brasileiro

Pela primeira vez na história, o Ministério das Comunicações foi ocupado pelo representante de um partido de esquerda. Mesmo nos oito anos de governo Lula, o comando da pasta ficou a cargo de nomes indicados por legendas da base aliada, alguns deles com íntima relação histórica com os grupos nacionais de radiodifusão, como foi o caso de Hélio Costa. A chegada de Paulo Bernardo, com a experiência de já ter sido titular da pasta do Planejamento, vem sendo cercada de expectativas.

A principal delas é o encaminhamento da reforma da legislação da área. A aprovação de um novo marco regulatório é demanda antiga de especialistas, sindicalistas e de várias entidades que lutam pela democratização da comunicação. No último ano do governo Lula, sua importância foi percebida. No entanto, o tempo foi suficiente apenas para que um grupo comandado pela Secretaria de Comunicação do Governo, com o então ministro Franklin Martins à frente, elaborasse uma proposta como legado à nova gestão do Executivo Federal.

Parte do projeto já veio à tona por meio da imprensa especializada. Fala-se em uma reorganização institucional, cujo marco central seria a transformação da Agência Nacional de Cinema em Agência Nacional de Comunicação. Ela teria atribuições de fiscalização dos conteúdos e das outorgas dadas aos entes privados que exploram serviços como rádio e televisão. Ainda na parte de conteúdos, seriam definidas regras para garantir a presença de produção nacional, regional e independente nos veículos. Bem como medidas para proteger segmentos vulneráveis, como crianças.

A proposta, de acordo com notícias divulgadas, adotaria uma arquitetura convergente, tratando serviços de forma transversal às plataformas. Isso significa que em vez de televisão, rádio, TV a Cabo, teríamos três modalidades de serviços: de comunicação social, de comunicação eletrônica e de comunicação em rede. No caso daqueles audiovisuais, haveria uma divisão em lineares (programação de TV aberta, por exemplo) e não-lineares (vídeos não organizados em programações), abertos ou fechados. Em relação à propriedade, seria mantido o limite de 30% ao capital estrangeiro e haveria uma divisão entre as fases da cadeia: produção, programação e distribuição.

Além da técnica: que mídia queremos?

O debate sobre o novo marco regulatório não pode ficar circunscrito aos gabinetes do governo federal, aos bancos acadêmicos ou às rodas de especialistas e pesquisadores. É preciso que sua carcaça hermética seja despida, de modo a colocá-lo sob a perspectiva essencial que possui. Que tipo de comunicação queremos no Brasil? A resposta enseja um raciocínio que identifique o que não atende aos interesses da população e o que deve ser mudado. Elencamos aqui cinco nós críticos que precisam ser resolvidos nesse processo.

O primeiro é o caráter excessivamente comercial da nossa comunicação. No caso da televisão, por exemplo, as corporações controlam 80% das emissoras, 90% do financiamento e 95% da audiência. Enquanto isso, os meios públicos e comunitários lutam para sobreviver. No primeiro caso, a Empresa Brasil de Comunicação avançou, mas ainda está longe de se consolidar como alternativa real junto à população. No segundo caso, as rádios comunitárias continuam sendo perseguidas e as TVs comunitárias permanecem relegadas à prisão da TV a Cabo. O novo marco precisa, portanto, retirar essas modalidades da condição marginal, abrindo espaço no espectro para as emissoras, permitindo fontes de financiamento sustentáveis, ampliando radicalmente a participação e estabelecendo contornos de uma programação feita para, com e pelo público.

O segundo é o caráter concentrado e verticalizado da mídia brasileira. O modelo, baseado em poucos grupos estruturados em cabeças-de-rede e afiliadas, constituído no país, faz com que, de Uruguaiana (RS) a Coari (AM), se veja e se ouça a perspectiva do eixo Rio-São Paulo. Sabe-se mais sobre o Leblon e a Vila Madalena do que sobre o Nordeste e o Norte do país. Pesquisa do Observatório do Direito à Comunicação em 11 capitais mostrou que as afiliadas exibem apenas 10% de conteúdos próprios. Assim, outro desafio do marco é quebrar essa estrutura de oligopólio vertical, ampliando o número de fontes de informação e determinando limites para garantir a exibição de conteúdos realizados nas cidades das emissoras.

O terceiro, que deriva do anterior, é o cenário de faroeste no sistema de outorgas dos serviços de comunicações. Na radiodifusão, temos quase uma terra sem lei, em que os exploradores desrespeitam a constituição e a lei sem qualquer represália. A posse de emissoras por políticos, a exibição de publicidade além do limite de 25% e a veiculação de conteúdos discriminatórios são apenas alguns dos exemplos. Além disso, o poder público peca pela falta de transparência e se ausenta quase que integralmente da responsabilidade de fiscalizar essas concessões. Por esses motivos, o novo marco deve tratar com atenção o sistema de autorizações, definindo critérios que atendam os interesses dos cidadãos e fiscalizando frequentemente o seu cumprimento de forma transparente.

O quarto nó crítico é a exclusão no acesso aos serviços de comunicação, em especial ao de telecomunicações. Na telefonia móvel, cobramos tarifas das mais altas do mundo. Não por isso, temos mais de 190 milhões de aparelhos, porém, mais de 80% são pré-pagos e com baixo consumo na ligação. Na fixa, vivemos com uma taxa injustificável: a assinatura básica. A TV por assinatura chega a nove milhões de lares apenas. Nossa internet é, segundo o próprio governo federal, cara, lenta e de má qualidade. Embora políticas de acesso não sejam exclusividade de normas, elas podem, sim, determinar a oferta aos cidadãos e as modalidades de serviço. Entre elas, por exemplo, definir que a internet em banda larga seja prestada em regime público, tendo, portanto, obrigações de universalização e controle tarifário.

O quinto obstáculo que precisa ser resolvido é a impermeabilidade dos órgãos do poder público à população. Enquanto o Ministério das Comunicações sempre foi a casa dos radiodifusores e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) mantém abertura às telefônicas e outras operadoras, sindicatos e ativistas sempre sofreram para realizar a interlocução. Até a Conferência Nacional de Comunicação – evento proposto apenas para debate de idéias – acabou seriamente ameaçada pela resistência do setor empresarial em abrir a discussão sobre a área.

Problemas antigos e novas soluções

O novo marco regulatório deve dar conta de uma extensa demanda democrática do século XX, que passar basicamente por desconcentrar o setor, ampliar a pluralidade e diversidade, fortalecer mídias públicas e comunitárias e colocar os órgãos públicos a serviço dos cidadãos. Mas precisa conjugar tais soluções com os desafios da convergência de mídias, que unifica serviços em plataformas e terminais e pressiona o setor para mais liberalização e mais concentração, a despeito da aparente aura de ampliação das fontes informativas.

Tal cenário, repetimos, não deve colocar a primazia da técnica. Os objetivos sociais não mudam, mas assumem novas formas. Partindo dessa reflexão, argumentamos que o novo marco precisa tomar como princípio a comunicação como direito humano e a democracia como cerne transversal. A construção da arquitetura deve, destarte, basear-se na definição dos serviços, entendidos como as atividades relacionadas à comunicação que impactam e servem aos cidadãos. Esses serviços têm de ser observados tanto da qualidade da prestação, o que envolve medidas anti-concentração e de garantia de padrões, quanto dos impactos que se pretende provocar.

A primazia do interesse da população sobre a técnica deve ser questão de mérito, e também de método. Por esta razão, esse novo marco precisa ser submetido a amplo debate, assim como ocorreu na Argentina. Como é conhecida a atuação dos setores empresariais no Congresso, para que a(s) nova(s) lei(s) não seja(m) apenas um arranjo para distribuir o lucro do setor, ela precisa ser fruto de uma reflexão coletiva e no seio da sociedade. Talvez assim seja possível atacar de frente os nós críticos que impedem nossa comunicação de alcançar sua plenitude democrática.

* Jonas Valente é integrante da Coordenação Executiva do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e pesquisador do Laboratório de Políticas e Comunicação da Unb (Lapcom).

O jogo que a Globo não quer perder

Dizem que 1968 foi o ano que não terminou. Pode até ser, mas para o torcedor brasileiro apaixonado por futebol, 1987 é o ano que nunca vai terminar. E essa história se repete novamente não apenas como tragédia, mas como farsa. E por trás dessa trama a especialista em novelas segue dissimulando sua estratégia.

Até 1986, os principais clubes pouco lucravam com uma competição longa, desgastante e com péssimos regulamentos. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) se perdia em suas negociatas políticas, prejudicando o espetáculo e a venda do mesmo como produto. Em 1987 a desordem era tanta que o presidente da entidade Octávio Pinto Guimarães decidira não organizar o campeonato nacional de clubes. Em razão disso, e pensando em grandes lucros, 13 dos maiores clubes do país na época (Atlético Mineiro, Bahia, Botafogo, Corinthians, Cruzeiro, Flamengo, Fluminense, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco da Gama), donos de 95% da torcida, criam uma instituição própria chamada Clube dos 13. A principal tarefa era organizar o campeonato de 1987 e gerar bons dividendos para os times (além de fazer frente com a CBF). Varig, Coca-Cola, Editora Abril e a Rede Globo foram os principais patrocinadores da Copa União.

Para não perder a briga, a CBF pressionou os clubes e criou dois campeonatos paralelos: o módulo verde, que reuniu o Clube dos 13 e mais Goiás, Coritiba e Santa Cruz e o amarelo, com 16 times escolhidos pela Confederação. Após a disputa de cada torneio separado, haveria uma final entre os campeões e vices de cada módulo. Como o Clube dos 13 não aceitava esta regra, Flamengo e Internacional (campeão e vice do verde) não disputaram as finais com Sport e Guarani e o time de Recife foi considerado campeão nacional depois de vencer o time de Campinas. Assim, a Copa União terminou mal e o resultado foi parar na justiça. No último dia 21 de fevereiro, 24 anos depois, em mais uma jogada duvidosa, a CBF reconheceu o Flamengo como um dos campeões daquele ano, ao lado do Sport.

Apesar de toda confusão, a união dos clubes contra o desmandos da CBF se tornou um excelente exemplo de organização lucrativa do futebol, aliado aos bons resultados de público – que até hoje é a segunda melhor média da história, além de ser o campeonato mais debatido, estudado e comentado.

A TV Globo ficou bastante satisfeita com a audiência e o retorno financeiro foi imediato. Desde então a emissora vem negociando diretamente com o Clube dos 13 a exclusividade nas transmissões. Entretanto, passados mais de 20 anos, o que se viu não foi um avanço em relação à transmissão e o fortalecimento do futebol como esporte e cultura. Pelo contrário: a exclusividade deu a Globo um retorno financeiro sem tamanho, desbancando toda a concorrência em relação à audiência e contratos publicitários, aumentando ainda mais seu poder de barganha na hora de negociar novos contratos. A transmissão dos jogos, que em 1987 era decidida por sorteio 15 minutos antes das partidas, passou a ser concentrada pela Globo nos jogos de Flamengo e Corinthians, enquanto a diversidade do futebol brasileira fica restrita ao sistema de TV paga. Além da criação de horários esdrúxulos para a prática do futebol, como os de 21h50.

Em 2011, 1987 retornou. E não apenas como tragédia. Após o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) decidir agir contra o monopólio das transmissões, obrigando o Clube dos 13 e a Globo a acabarem com a garantia que emissora tinha de sempre vencer as "licitações" pelos jogos, a disputa no futebol nacional passou a se esconder por trás do campeão de 1987. A taça das bolinhas virou motivo de discórdia entre o Clube dos 13 e um álibi para Ricardo Teixeira, atual presidente da CBF, e para a Rede Globo. Em tempos de crescimento vertiginoso da emissora do bispo Macedo, a Rede Record entra na disputa pelos direitos de transmissão como franca favorita e não está só nesta briga. Telefônica, Oi e GVT tem capital de sobra para brigar pelas transmissões de TV por assinatura e internet.

Não sendo mais unanimidade entre os times e a direção do Clube dos 13, a Rede Globo tem alardeado que o campeonato brasileiro não é tão lucrativo como antigamente e não pretende fazer uma proposta maior que a atual – em torno de 850 milhões de reais – para garantir a exclusividade de transmissão em todas as mídias. No entanto, o que se vê nos bastidores é uma atitude bastante diferente. Mesmo que a Lei Pelé (Lei 6915/98) tenha permitido a criação de ligas independentes das federações, a CBF ainda mantém um poder muito grande na organização do futebol brasileiro, tanto que no ano passado Ricardo Teixeira articulou uma chapa pró-CBF para a presidência do Clube dos 13 e impediu qualquer projeto de criação de uma liga independente. E hoje existe ainda uma relação muito estreita entre os interesses da Confederação e da Rede Globo, já que esta mantém contratos de exclusividade nas transmissões das partidas da seleção e das Copas do Mundo.

Flamengo, Fluminense, Botafogo, Vasco e Corinthians já decidiram que vão negociar suas cotas de transmissão em separado e ameaçam uma grande ruptura com o Clube dos 13. O que isso significa? Impedir a criação de uma nova liga dos clubes brasileiros? Influir na sucessão de Teixeira na CBF? Significa que a Globo não vai acatar a decisão coletiva do Clube dos 13 e, por meio de uma manobra, vai passar por cima da resolução do CADE. Tudo conforme o padrão Globo de qualidade, contando com o arranjo de Ricardo Teixeira.

Assim, o Clube dos 13 caminha para se dividir em dois. Outros clubes devem se unir aos cariocas e ao Corinthians e os demais manteriam sua antiga organização em torno do Clube dos 13. Nesse jogo, definitivamente, a família Marinho não gosta de perder e utiliza da velha estratégia de guerra: "dividir para conquistar".

Max Dias é jornalista, mestre em história e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
Gésio Passos é jornalista, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e também associado ao Intervozes.

 

 

Os nacionalistas da cultura

A ascensão de Ana de Holanda para o Ministério da Cultura com a promessa de reavaliar a revisão da lei de direitos autorais “em defesa dos autores” gerou um acirrado debate que tem animado as páginas dos cadernos de cultura. No debate, tem aparecido com orquestrada frequência uma curiosa tese: os críticos da nova política do ministério são ingênuos manipulados pelas grandes empresas de Internet que querem se apropriar da cultura brasileira sem pagar pelo conteúdo. A revisão da lei de direitos autorais ampliando exceções e limitações, a supervisão estatal das sociedades de gestão coletiva (como o ECAD) e o estímulo ao licenciamento livre (por meio de licenças como as Creative Commons) causariam apenas prejuízo aos autores brasileiros. As grandes corporações do mundo digital, ao contrário, seriam as grandes beneficiadas, já que explorariam o acesso livre a esses conteúdos por meio de publicidade. Contra essas políticas inovadoras, seria preciso manter as regras e políticas de direito autoral atualmente em vigor que protegem razoavelmente bem os autores e são uma plataforma adequada para a projeção internacional da cultura brasileira.

A linguagem anti-imperialista surpreende, vindo de onde vem. Os defensores da tese são os sócios locais da indústria cultural internacional, sobretudo do setor fonográfico – empresas nada nacionais como a Warner, a Sony, a EMI e a Universal. Obviamente, a acusação é apenas um jogo retórico, mas como tem encontrado algum eco, não seria despropositado relembrar alguns fatos básicos.

No mercado de música brasileiro, os autores são brasileiros, mas as empresas são estrangeiras. O discurso pseudo-nacionalista só pode funcionar porque o Brasil tem uma situação ímpar: é o único país, fora os Estados Unidos, onde o consumo de música nacional é superior ao de música estrangeira. No entanto, essa música nacional é explorada por empresas majoritariamente estrangeiras: a Warner, a Sony, a EMI e a Universal. O que temos, portanto, é uma associação entre os grandes autores nacionais (os velhos nomes da MPB e os novos nomes do pop e do sertanejo) e as grandes empresas internacionais.

Os intermediários, em boa parte estrangeiros, se apropriam de mais de 50% do direito autoral. A venda de discos e a execução pública (rádio, TV e shows) movimentam juntos pelo menos 400 milhões de reais anuais em direito autoral. Esses valores são distribuídos para os atores da cadeia produtiva da música: de um lado, criadores strictu sensu como compositores, arranjadores, intérpretes e músicos e, de outro, intermediários como empresas fonográficas, associações de autores, produtores e o escritório de arrecadação (ECAD). Na divisão dos recursos do direito autoral, os intermediários ficam com 51% e a menor parte dos recursos é dividida entre os criadores.

O Brasil é altamente deficitário em direito autoral. Se há ainda alguma dúvida que a exploração do direito autoral é interesse estrangeiro, basta olhar a balança comercial de direito autoral do país com os Estados Unidos. Todos os anos enviamos mais de 2 bilhões de dólares como pagamento de direito autoral (em todos os setores – não apenas música). Os americanos, por sua vez, nos pagam apenas 25 milhões.

A remuneração aos autores brasileiros é concentrada, distorcida e segue critérios obscuros. A distribuição dos recursos de direito autoral no Brasil é, antes de tudo, distorcida pelo jabá, mecanismo pelo qual as empresas pagam para ter a música executada nas rádios e TVs para depois receberem o direito autoral de execução e vendas como “retorno”. Além disso, o escritório de arrecadação tem procedimentos obscuros que não podem ser auditados e que concentram a distribuição em muito poucos autores.

O que temos então é uma indústria predominantemente estrangeira que se apropria da maior parte dos recursos de direito autoral em detrimento dos verdadeiros criadores e os remete ao exterior para as matrizes. No entanto, como remunera bem alguns poucos autores brasileiros segundo procedimentos obscuros, estes agem como porta-vozes nacionais desta estrutura internacional de exploração da cultura brasileira.

Se tudo isso ainda não é suficiente, uma última e conclusiva evidência pode ser encontrada na contribuição da IIPA (International Intellectual Property Alliance) para o relatório 301. O relatório 301 é um mecanismo comercial do governo americano por meio do qual tenta interferir nas políticas de direito autoral de “países em desenvolvimento”. Esse relatório avalia se a política de direito autoral desses países, no entender dos Estados Unidos, é adequada – e se ele considerar que a de algum país não é, pode punir com sanções comerciais unilaterais. A IIPA que é uma organização que reúne as indústrias do software, do disco, do filme, do livro e dos games nos Estados Unidos, no seu último relatório defende exatamente as mesmas posições quanto à reforma da lei de direito autoral que o atual ministério da cultura – motivo pelo qual as posições da ministra são diretamente elogiadas.

É no mínimo curioso que agentes das grandes multinacionais utilizem um discurso nacionalista e até anti-imperialista para atacar os ativistas da cultura livre. É evidente que se trata de má-fé orientada a atingir resultados políticos. Mas como a mentira e a má-fé se disseminam talvez valha a pena esclarecer algumas coisas:

O movimento de cultura livre defende a independência dos criadores, não a indústria – nova ou velha. Embora o movimento seja uma rede mais ou menos solta de ativistas, sem um programa explícito, me parece claro um objetivo comum: o de produzir uma nova economia da cultura, na qual os criadores e não os intermediários sejam os principais beneficiários dos dividendos econômicos e na qual os bens culturais possam circular livremente sem barreiras de direito autoral, permitindo o acesso de todos ao patrimônio cultural. A cultura que se vislumbra é uma cultura na qual os criadores sejam remunerados e, simultaneamente, o público tenha acesso às obras. Há várias experiências bem sucedidas em curso sobre como realizar esse objetivo – principalmente aquelas na qual há deslocamento da fonte de remuneração do criador, do direito autoral para serviços, como shows e apresentações ao vivo. Esse movimento não pretende que os intermediários da velha indústria (gravadoras, editoras, etc.) sejam simplesmente substituídos por novos intermediários (empresas de Internet, editoras digitais, etc.), nem que os criadores não sejam remunerados. O movimento de cultura livre defende um modo de produzir cultura descentralizado, diverso, esteticamente autônomo, economicamente sustentável e no qual os bens culturais sejam acessíveis a todos.

O mundo que os novos intermediários vislumbram é diferente. É um mundo no qual o acesso às obras, gratuito ou apenas mais barato, é organizado por grandes empresas que comandam indiretamente a cadeia produtiva e geram dividendos com a venda da privacidade dos usuários para publicidade dirigida. É um mundo onde se pode ler livros ou escutar música na Internet gratuitamente sacrificando a privacidade pessoal para a venda de publicidade. Esse modelo traz grandes riscos para uma liberdade civil fundamental que é a privacidade, coloca em risco a autonomia econômica e estética dos criadores e ameaça a diversidade de oferta de obras para os consumidores.

Como se vê, o programa dos defensores da cultura livre é muito diferente do programa da nova indústria cultural. Mesmo assim, os defensores do velho modo industrial de produção da cultura tentam desqualificar o movimento de cultura livre apresentando-o como agente das novas empresas.

Não podemos ficar presos, no entanto, a duas alternativas corporativas, que subtraem, cada uma a seu modo, a autonomia de criadores e consumidores. O processo de mudanças nos modos de produção da cultura não nos leva a ter que escolher entre a EMI e a Google. Ele abre uma janela de oportunidades para novas práticas e novas políticas que emancipem e protejam os autores frente ao poder econômico dos grandes intermediários e que apoiem as potencialidades de acesso à cultura trazidas pelas novas tecnologias. É esse tipo de visão que esperamos do Ministério da Cultura.

Pablo Ortellado é professor Doutor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo