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“Não basta diálogo, tem que atender demandas”

Foram, praticamente, dois anos de indisposição do Ministério das Comunicações (MiniCom) em estabelecer um espaço institucionalizado de discussão com os movimentos e entidades da sociedade civil para tratar das políticas de comunicação do governo federal. A proposta de criar uma mesa de diálogo para discutir esses temas, em especial o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), quase se estabeleceu em 2011, quando o ministro interrompeu a iniciativa diante da notícia de que os movimentos sociais preparavam um ato para criticar os acordos assinados com as teles para a oferta de planos de banda larga popular, na época, recentes.

Desde então, seguiram-se momentos de pressão para que o processo fosse retomado, até que a Campanha Banda Larga é um direito seu! foi recebida em audiência com o ministro Paulo Bernardo em abril deste ano. Nessa oportunidade, as entidades, que apresentaram a proposta da Campanha para a Universalização do Acesso à Banda Larga no País, repudiaram a possibilidade, em avaliação pelo órgão, de os bens públicos da concessão de telefonia fixa serem trocados por investimentos das teles em redes próprias. Mais uma vez, pressionaram pela criação da mesa de diálogo.

Agora, o nó desatou e, com a ajuda da Secretaria-Geral da Presidência da República, o processo foi retomado.

A primeira reunião da mesa ocorreu em 10 de julho com a presença do Secretário Executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República e representantes de diferentes áreas do MiniCom. A dinâmica ali proposta foi discussão do Planejamento Estratégico do Ministério, que está sendo atualizado. Com objetivos gerais relacionados às políticas de comunicação, o planejamento engloba, entre outros, os temas de infraestrutura, inclusão e cultura digitais, pluralidade, diversidade e competição nos meios de comunicação e transparência e participação social no órgão.

As entidades presentes ressaltaram que há assuntos relevantes que são transversais, cabendo à mesa promover encontros que não se encerrem no MiniCom. Entre elas, foram levantados o Marco Civil da Internet, a Reforma da Lei de Direitos Autorais e a Radiodifusão Comunitária. A pauta, inicialmente focada nas políticas de acesso à banda larga, foi ampliada, o que envolve outros atores e uma articulação mais complexa do movimento de comunicação. Com uma agenda periódica de reuniões, a princípio de 20 em 20 dias e divididas pelos objetivos estratégicos do Planejamento ou temas transversais, os participantes mudarão de acordo com a pauta, tendo sido criada uma Comissão Operativa para facilitar essa organização.

Quanto à banda larga, ficou evidente que o ministério comandado por Paulo Bernardo ainda não tem uma posição em relação à proposta apresentada pela campanha. No momento, preferem tratar de outros assuntos a compartilhar o que está em estudo no órgão sobre a nova versão do PNBL. Uma participação efetiva na formulação desses planos passa pela superação dessa postura e por um diálogo aberto entre governo, sociedade civil e empresas, o que pode se dar, também, durante as reuniões da mesa de diálogo. Vale lembrar que era essa a proposta inicial do abandonado Fórum Brasil Conectado.

Apesar dos limites do modelo e dos desafios que se colocam ao movimento pela democratização da comunicação, apostamos no espaço que foi aberto e na sua possibilidade de render avanços, mesmo que pontuais, às políticas do setor no país.

O diálogo parece estar restabelecido, resta saber qual a disposição do governo em traduzi-lo em ações.

A sociedade acordou para a democratização da comunicação

O Brasil viveu nas últimas semanas, um clima que há muito tempo não vivia. Chegou-se em determinados momentos, a compará-lo com o clima das Diretas, já!

Tudo começou com as manifestações do Movimento Passe Livre, em São Paulo, que tinham como foco o questionamento ao aumento das tarifas de ônibus na capital paulista. A forma truculenta, desmedida e despudorada com que a polícia revidou os manifestantes, mostrando em determinados momentos que era proibido se manifestar, criou um clima de insatisfação em todos os cantos do Brasil.

Da noite para o dia, várias pessoas foram ás ruas mostrar que aquele espaço era público. E várias pauta, especialmente voltadas para o aspecto político e até certo ponto genéricas, como “mais recursos para a saúde e educação”, “contra a PEC 37”, “por uma reforma política”, “abaixo a corrupção brotaram como grama no pasto”.

Os veículos de comunicação tentaram, nos primeiros dias, desqualificar e criminalizar, como de praxe, as manifestações. O discurso do Arnaldo Jabor, feito em horário nobre no Jornal Nacional é um dos maiores emblemas desse processo.

Jabor foi para a televisão, no horário nobre concedido a ele pela TV Globo, e fez um discurso chamando os manifestantes de ignorantes políticos. E disse ainda que os manifestantes vivem no passado de uma ilusão e finalizou seu texto afirmando que “os revoltosos de classe média não valem nem R$ 0,20”.

Mas de repente, dois dias depois, ocorre uma virada no discurso e a cobertura da imprensa muda de linha. Dois fatos mostram bem essa guinada: a ida do próprio Jabor ao Jornal Nacional, com outro discurso e pedindo desculpas pelas palavras do dia anterior e a capa da Folha de São Paulo, destacando a reação violenta da polícia aos protestos. No meio disso tudo, a repressão violenta da polícia não atingiu somente os manifestantes. Vários jornalistas foram agredidos, e ai, de uma vez por todas, a imprensa jogou uma pá de cal no velho discurso e saiu em defesa dos manifestantes.

Toda essa postura dos veículos de comunicação chamou a atenção daqueles que estavam nas ruas. E, junto com as pautas que implodiram das manifestações, veio a da comunicação. Vários repórteres, especialmente da Rede Globo que iam cobrir as manifestações começaram a ter sua rotina de trabalho atrapalhada. Sob os gritos de “O povo não é bobo, abaixo a rede Globo”, e “Ih, fora” repórteres como Marcos Losekan, em paris e Caco Barcelos, em São Paulo, não puderam fazer matérias direto das manifestações.

Grosseria? Hostilização? Não!! A reação dos manifestantes é fruto da própria postura que esta empresa e tantos outros veículos de comunicação tiveram durante a cobertura das manifestações e durante a sua trajetória jornalística. Vimos pela primeira vez a pauta da democratização da comunicação surgir de outros atores; de outros agentes que não os acadêmicos ou especialistas.

E a cada dia que passava, a Rede Globo e outras grandes emissoras se tornaram alvo dos manifestantes. A reivindicação pela democratização da comunicação virou mais uma das pautas que  contaminou as ruas e dizeres de cartazes do povo saia de suas casas pelo simples fato de sair.

O debate sobre a democratização da comunicação, que sempre girou em torno de especialistas e acadêmicos, tinha como grande desafio, até bem pouco tempo atrás, colocar para a sociedade a necessidade de combater o monopólio da mídia, já que ele é prejudicial para a democracia e para a sociedade como um todo.

Os manifestantes que foram para as ruas no último dia 11 de julho, Dia Nacional de Lutas chamado pelas centrais sindicais e movimentos sociais como o MST e que teve como pauta a Redução do preço das passagens e melhoria na qualidade dos transportes públicos, mais investimentos na saúde e na educação, fim dos leilões das reservas de petróleo, contra o projeto que regulamenta a terceirização (PL 4330) e reforma agrária, colocaram a democratização dos meios de comunicação como uma das reivindicações e a necessidade do Ministério das Comunicações rever urgentemente sua pauta de ações.

Vários cartazes e entidades criticaram e exigiram do governo uma real política de comunicação no Brasil. O projeto de lei de Iniciativa popular, proposto por várias entidades da sociedade civil, ganhou mais musculatura e foi uma das principais bandeiras colocadas pelas entidades no dia 11 de julho.

Soma-se a isso o surgimento de grupos, coletivos e entidades que se apropriaram do processo de construção de comunicar e de difundir a informação, especialmente através da internet.

Em São Paulo, o Dia Nacional de Lutas teve transmissão em sua totalidade por smartphones conectados à 3G e o discurso era um só: “Abaixo da rede Globo”, “Abaixo o monopólio da midia” e por ai foi.

Isso deve ser visto com bons olhos não só pelos militantes da democratização da comunicação, mas pela sociedade como um todo. É uma real demonstração de que o alvo não é somente o governo, mas as empresas de comunicação, que durante muito tempo criaram o discurso dominante e tendencioso durante décadas na sociedade.

É importante que as empresas de comunicação, especialmente a Rede Globo entenda que agora, elas são os grandes alvos da sociedade brasileira. O gigante acordou para elas.

Marcos Urupá é Jornalista e advogado e foi diretor da TV Cultura do Pará. É associado do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e co-autor do livro "Caminhos para a universalização da Internet banda larga: experiências internacionais e desafios brasileiro" (Intervozes, 2012).

Nova Lei de Comunicação no Equador: empresariado “perde a linha”

“Lei mordaça!”, grita histérico o empresariado de comunicação equatoriano ao ver ser aprovada pela Assembleia Nacional, em junho, a Lei Orgânica de Comunicação no país. E ressoa ao longo das cordilheiras, florestas e pampas latino-americanos o alerta. Não é pra menos. Os sistemas nacionais de comunicação erguidos na América Latina como instrumentos de mando e desmando de Marinhos, Chatôs, Mestres, Azcarragas, Cisneros e alguns poucos outros vêm sofrendo duros golpes nos últimos anos. E o quadro não é nada agradável para quem está acostumado a ser “dono da bola”. Logo, o empresariado, desde sempre mimado por essas paragens, faz soar o alarme nos seus autofalantes.

A Argentina, em uma ebulição da sociedade civil incomum se tratando do tema , já aprovou sua Lei de Meios e enfrentou a fúria do “El Clarín”. A nova norma conseguiu um amplo reconhecimento internacional por sua capacidade de ampliar o acesso à mídia e diversificar o seu caráter. A Venezuela, na outra ponta, peitou a “RCTV” e decidiu que havia motivos suficientes para não renovar sua concessão. Não atraiu a mesma simpatia dos argentinos, mas provou que a irrevogabilidade das concessões dadas às grandes empresas privadas não passava de um mito. O Equador, em 2008, já havia aprovado em sua constituição que os bancos não poderiam ser acionistas de empresas de comunicação: um calafrio assomou a espinha do onipotente capital financeiro.

Como disse uma vez o presidente Rafael Correa, “se os cães ladram, é sinal de que estamos avançando”. E esses latem alto, pois são donos de quase todos os áudios potentes do continente. No final de 2012, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), reunida em São Paulo, declarou que os presidentes do Equador, Argentina e Venezuela encabeçariam uma ofensiva para silenciar os meios “independentes”. Dessa vez, afirmou que a Lei Orgânica de Comunicação do Equador oficializa uma série de “delitos de imprensa”.

Todavia, o que realmente apavora os empresários não diz respeito à liberdade de expressão – tanto que os donos da mídia na América Latina sempre foram apoiadores ou fizeram vista grossa para as ditaduras que arrasaram as possibilidades democráticas no continente ao longo do século XX. O problema, para eles, é que o governo equatoriano limitou o alcance da propriedade privada. Segundo o relatório da Comissão de Auditoria de Concessões de Frequências de Rádio e Televisão, instituída em 2008 por mandato da Constituição Federal, cerca de 90% do espectro equatoriano é ocupado pelo setor privado-comercial. Hipertrofia comum no continente, que seguiu (de forma distorcida) o padrão estadunidense de organização do sistema nacional de comunicação. Aliás, foi capital norte-americano que financiou quase todos os magnatas da mídia abaixo do Rio Grande.

Frente a isso, a nova lei estabelece a redistribuição das frequências radiofônicas, com 33% para meios privados, 33% para meios públicos e 34% para meios comunitários, e determina a eliminação de monopólios (não mais do que uma concessão de frequência para emissoras de rádio AM e FM e uma para emissoras de TV). A lei impede também concessões de radiodifusão em uma mesma província para familiares diretos até o segundo grau de parentesco.

Ideias como essas tiram do sério a burguesia radiodifusora. Como de praxe, ao ver ameaçado o modelo comercial de sistemas de comunicação imposto na América Latina, o empresariado grita “olha a censura!”, e tenta disfarçar o sequestro da liberdade de expressão pelo poder econômico privado, que restringe o direito à comunicação da esmagadora maioria da população. Nesse sentido, a expressão “maioria silenciosa” se torna mais verdadeira do que nunca. E sobre ela repousam os guardiões da “liberdade de expressão comercial”.

Outro ponto criticado pelo empresariado equatoriano é o artigo 26 da nova lei, que proíbe o “linchamento midiático”. De acordo com o texto, “fica proibida a difusão de informação que, de maneira direta ou através de terceiros, seja produzida de forma concertada e publicada reiterativamente através de um ou mais meios de comunicação com o propósito de desprestigiar uma pessoa física ou jurídica ou reduzir sua credibilidade pública”.

Inserida no capítulo sobre “direito à comunicação”, a determinação é polêmica. Embora seja compreensível em sua intenção, visando neutralizar uma artimanha típica das tradicionais elites latino-americanas, a medida pode ser também o calcanhar de aquiles da norma, ao fragilizar qualquer oposição política (seja pela direita ou pela esquerda) impondo a fragmentação.

Quem disse que a democracia seria fácil? Pode não ser a lei dos sonhos, mas ela é fruto de uma discussão pública, aberta e contínua há pelo menos quatro anos no Equador, e que propõe a ampliação da participação, com novos critérios de divisão do espectro eletromagnético e garantia de direitos, baseados na diversidade sociocultural. Debate semelhante no Brasil o governo federal, coadunado com o empresariado, se nega a fazer.

A imprensa brasileira não deu tanta atenção ao caso equatoriano, se compararmos com a cobertura do que se passou na Venezuela e na Argentina. O Equador está longe de ser uma das grandes potências sul-americanas. Sua nova Lei Orgância de Comunicação representa, porém, mais um passo à frente na transformação de sistemas comerciais em sistemas de comunicação efetivamente democráticos em nosso continente. Não à toa o empresariado está preocupado.

*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação e doutor em sociologia pela UFPE.

Por que a concentração monopólica da mídia é a negação do pluralismo

Nos últimos meses, vem crescendo a mobilização de dezenas de entidades da sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta pela democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para expressar a liberdade”[1], que defende uma nova e abrangente lei geral de comunicações; e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações[2], cuja finalidade é regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem princípios para a radiodifusão sob concessão pública (rádio e televisão).

São propostas fundamentais que têm como pressuposto a necessidade de se pôr fim à concentração monopólica da mídia. Por que a concentração favorece as ambições mercantis de grupos midiáticos, afeta a diversidade informativa e cultural e representa a negação do pluralismo? Este artigo propõe-se a lançar luzes sobre a questão, que tem a ver com a garantia constitucional da liberdade de expressão e com o aprofundamento dos direitos democráticos no país.

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As últimas décadas acentuaram, no Brasil e na América Latina, o traço histórico de concentração de expressiva parcela dos meios de comunicação nas mãos de um reduzido número de megagrupos. A moldura de concentração prospera em meio à digitalização de sistemas, redes e plataformas de produção, transmissão e recepção de dados, imagens e sons. As infotelecomunicações (palavra que utilizo para designar a convergência tecnológica entre os setores de informática, telecomunicações e mídia) asseguram as condições objetivas para o crescimento exponencial da oferta de canais, produtos, serviços e conteúdos. Só que essa vocação expansiva se consolida sob controle, influência e lucratividade de poucas corporações, via de regra globais, ou nacionais e regionais em alianças estratégicas ou parcerias com gigantes transnacionais.

O ciclo de concentração monopólica está intimamente associado à diversificação produtiva apoiada em tecnologias de ponta e na capacidade de inovar em prazos curtíssimos e a custos reduzidos. Os focos das políticas de comercialização são a diminuição de custos industriais e enormes ganhos de produtividade com a economia de escala. Para preservar poderes monopólicos, as corporações recorrem a duas manobras principais, segundo David Harvey: uma ampla centralização do capital em megaempresas, que busca avidamente o domínio por meio do poder financeiro, economias de escala e posição de mercado, e dos direitos monopólicos da propriedade privadas por meio de direitos de patente, leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual”[3].

Significa concentrar nas mesmas mãos todas as etapas dos processos tecnoprodutivos, com vistas a garantir liderança na cadeia de fabricação, processamento, comercialização e distribuição dos produtos. O lastro financeiro, a capacidade logística, a infraestrutura tecnológica e o controle de inovações e patentes conferem aos conglomerados multimídias vantagens competitivas incomparáveis, já que empresas nacionais de menor porte não têm recursos nem suportes para gerir investimentos de vulto[4]. Às pequenas e médias firmas restam nichos de mercado ou o fornecimento de insumos e serviços especializados, sempre que é mais vantajoso para as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja fabricação seria dispendiosa.

Os monopólios midiáticos são determinantes porque interferem na conformação do imaginário coletivo e em valores consensualmente aceitos e assimilados. No Brasil e na América Latina, tanto no âmbito público quanto na esfera privada, há fatores que contribuem, em graus variados mas não menos substanciais, para agravar a concentração. O déficit de investimentos setoriais, as políticas públicas inconsistentes e a inércia regulatória afastaram o Estado, nos últimos decênios, do protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e telecomunicações. Em contrapartida, grupos transnacionais ocuparam vorazmente os vácuos abertos, favorecidas por legislações frágeis, anacrônicas e permissivas, que lhes permitem acumular licenças de rádio e televisão – as joias da coroa em termos de faturamento e projeção política, ideológica e cultural.

Esse quadro nos leva a convergir com Néstor García Canclini quando avalia que a desigualdade na produção, na distribuição e no acesso aos bens culturais “não se explica como simples imperialismo ou colonialismo cultural (ainda que subsistam esses comportamentos), e sim pela combinação de processos expansivos, exercícios de dominação e discriminação, inércias nacionalistas e políticas culturais incapazes de atuar na nova lógica dos intercâmbios”.[5]

Com as desregulamentações e privatizações durante os anos 1980 e 1990, os megagrupos alastraram-se sem maiores restrições legais na América Latina. Eles adotam uma estratégia centrada em mercados mais seguros e rentáveis, estabelecendo parâmetros de produção, distribuição, difusão e circulação de conteúdos que lhes proporcionem crescente rentabilidade.

A estratégia é oportunista porque, constantemente, as majors abandonam segmentos arriscados em termos de investimentos (cinema e música) para operar prioritariamente em áreas com retornos mais imediatos (telenovelas, seriados, jogos eletrônicos) e nos meios de massa que atraem publicidade e patrocínios (imprensa, rádio, televisão). Aliam-se ainda a sócios ou parceiros globais e regionais que lhes ofereçam logísticas sólidas, financiamentos assegurados e inserção mercadológica.[6]

Em função da recessão econômica pós-2008 na Europa e nos Estados Unidos, as corporações transnacionais incrementaram a corrida por lucros compensatórios na América Latina. A região converteu-se em um dos mercados mais cobiçados para o escoamento de produtos e serviços. O vasto potencial de consumo, o espanhol como segundo idioma da globalização, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de legislações antimonopólio motivaram corporações, sobretudo norte-americanas, a incrementar os negócios, expandindo marcas, patentes e conteúdos no maior número possível de praças. News Corporation, Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos de mídia e/ou sedimentaram acordos com grupos regionais. Com isso, ampliaram exponencialmente suas atuações multissetoriais e os mercados, com as vantagens adicionais de reduzir e repartir custos e contornar fatores de risco – em especial os decorrentes da instabilidade econômica e do encolhimento da vida útil das mercadorias. Para os grupos regionais, tais associações representam a possibilidade de entrecruzar negócios e estabelecer alianças com atores de maior peso no cenário internacional.

Os quatro maiores conglomerados de mídia latino-americanos – Globo do Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; e Clarín da Argentina –, juntos, retêm 60% do faturamento total dos mercados latino-americanos. Para se ter uma ideia dos níveis recordes de concentração, basta saber que Clarín controla 31% da circulação dos jornais, 40,5% da receita da TV aberta e 23,2% da TV paga; Globo responde por 16,2% da mídia impressa, 54% da TV aberta e 44% da TV paga; Televisa e TV Azteca formam um duopólio, acumulando 69% e 31,37% da TV aberta, respectivamente.[7]

No Brasil, é aguda a concentração na televisão aberta. De acordo com levantamento do projeto Os Donos da Mídia, seis redes privadas (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT) dominam o mercado de televisão no Brasil. Essas redes privadas controlam, em conjunto, 138 dos 668 veículos existentes (TVs, rádios e jornais) e 92% da audiência televisiva. A Globo, além de metade da audiência, segue com ampla supremacia na captação de verbas publicitárias e patrocínios.[8]

Cabe salientar ainda que, no Brasil e na América Latina, a concentração monopólica se estabelece, há décadas, sob a égide de dinastias familiares proprietárias dos principais grupos midiáticos. Entre tais famílias estão Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad, Abravanel, Sarney, Magalhães e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga (Venezuela), Noble, Saguier, Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina), Slim e Azcárraga (México), Edwards, Claro e Mosciatti (Chile), Rivero, Monastérios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia (Bolívia), Ardila Lulle, Santo Domingo e Santos (Colômbia), Verci e Zuccolillo (Paraguai), Chamorro e Sacasa (Nicarágua), Arias e González Revilla (Panamá), Picado Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador), Marroquín (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikaffy, Willeda Toledo e Ferrari (Honduras).[9]

Entre os impactos mais graves da concentração, podemos apontar: as políticas de preços predatórias destinadas a eliminar ou a restringir severamente a concorrência; os controles oligopólicos sobre produção, distribuição e difusão dos conteúdos; e a acumulação de parentes e direitos de propriedade intelectual por cartéis empresariais. Martín Becerra chama a atenção ainda para o alto risco de unificação das linhas editoriais e a prevalência das ambições empresariais sobre os interesses do conjunto da sociedade. E acrescenta:

“A concentração vincula os negócios do espetáculo (estrelas exclusivas), dos esportes (aquisição de direitos de transmissão), da economia em geral (inclusão de entidades financeiras e bancárias) e da política (políticos transformados em magnatas da mídia ou em sócios de grupos midiáticos) com áreas informativas, o que gera repercussões que alteram a pretensa ‘autonomia’ dos meios de comunicação.”[10]

Os impactos negativos da transnacionalização cultural se refletem na ocupação oligopolizada e na desnacionalização das indústrias de entretenimento. Os dois principais mercados editoriais, Brasil e Argentina, estão majoritariamente nas mãos de grupos estrangeiros. As majors dominam as cadeias de distribuição e exibição cinematográficas, com supremacia de lançamentos de filmes estrangeiros. O mercado fonográfico apresenta desequilíbrios semelhantes. No Brasil as gravadoras independentes produzem 70% da música nacional, mas só conseguem 8% de espaço de difusão nas emissoras de rádio e televisão. Ao mesmo tempo, as majors gravam apenas 9% com repertório nacional e, no entanto, ficam com 90% dos espaços de divulgação.[11]

Sem contar que, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, os Estados Unidos tentam sempre impedir protecionismos nas indústrias audiovisuais (na forma de subsídios e fomentos), para favorecer os negócios de suas corporações. Os recursos de distribuição e exibição audiovisuais estão subordinados às estratégias traçadas pelas majors norte-americanas. “Conseguem isso com o apoio de políticas protecionistas e os privilégios impositivos que o governo norte-americano reserva à sua indústria cinematográfica, bem como através da pressão internacional sobre as demais nações para que favoreçam a expansão de seu cinema”.[12] O resultado é que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina provêm dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes, seriados e eventos esportivos norte-americanos são apresentadas nas emissoras de TV latino-americanas.[13]

A concentração monopólica da produção simbólica guarda estreita proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas. As conveniências corporativas se fixam em estratégias de maximização de lucros e de manutenção da hegemonia mercadológica, sem demonstrar maior interesse com a formação educacional e cultural das platéias, muito menos com sentimentos de pertencimento e valores que configuram identidades nacionais, regionais e locais. A prevalência das lógicas comerciais manifesta-se no reduzido mosaico interpretativo dos fatos sociais; na escassa variedade argumentativa, em razão de enfoques ajustados a diretivas ideológicas das empresas; na supremacia de gêneros sustentados por altos índices de audiência e patrocínios (telenovelas, reality shows, esportes); nas baixas influências do público nas linhas de programação; no desapreço pelos movimentos sociais e comunitários nas pautas jornalísticas; na incontornável disparidade entre o volume de enlatados adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional. Em face da concentração monopólica, a possibilidade de interferência do público (ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade reativa dos indivíduos, como também, e sobretudo, de se garantirem direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção e a circulação de dados, sons e imagens.

À luz do exposto, podemos concluir que se torna insuperável a exigência de legislações antimonopólicas de comunicação, sobretudo na radiodifusão sob concessão pública, em função da penetração social e dos requisitos de interesse coletivo que as empresas concessionárias de canais de rádio e televisão devem cumprir para desempenhar suas funções de informar, esclarecer e entreter. Impossível imaginar uma democratização efetiva da vida social, com livre circulação de informações e pluralismo, diante do desmedido poder dos impérios midiáticos. São urgentes mecanismos legais para coibir a concentração e a oligopolização, além de permitir lisura e transparência aos mecanismos de concessão, regulação e fiscalização das licenças de rádio e televisão. Há exemplos inspiradores na América Latina: as novas leis de comunicação da Argentina[14] e do Equador[15], que resultaram de processos participativos de discussão e elaboração e são reconhecidas por organismos internacionais como marcos regulatórios avançados.

São essenciais, também, políticas públicas que reorientem fomentos, financiamentos e patrocínios, de modo a valorizar meios alternativas de comunicação (como rádios e televisões comunitárias, agências de notícias independentes, mídias digitais), bem como apoiar a produção audiovisual nacional e preservar o patrimônio e as tradições culturais. Políticas debatidas entre segmentos representativos da sociedade e o poder público, e formuladas com realismo, considerando as mutações da era digital e seus efeitos nas atividades comunicacionais. Políticas que protejam a diversidade frente à transnacionalização simbólica e favoreçam a manifestação de vozes ignoradas ou excluídas dos canais midiáticos. Que estimulem a compreensão e a interpretação dos fatos de maneira plural, avaliando os múltiplos aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos envolvidos. Iniciativas, enfim, que possam intensificar a diversidade cultural e fazer prevalecer o direito humano à comunicação como bem comum dos povos.

* Desenvolvo questões abordadas neste artigo nos meus livros Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano (São Paulo, Boitempo/Faperj, 2013), e Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação (Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011).

Notas
[1] Mais detalhes sobre a campanha “para expressar a liberdade” aqui.

[2] Sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, aqui.

[3] David Harvey. “A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura”, em Dênis de Moraes (org.), Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Rio de Janeiro: Record, 2003 (6a. ed., 2013), p. 148.

[4] Omar López e Sylvia Amaya. Panorama de las industrias culturales en Latinoamérica. Dimensiones económicas y sociales de las industrias culturales. Texto apresentado no II Seminario de Economía y Cultura, Montevidéu, 2004.

[5] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 95.

[6] Enríque Bustamante,  “Industrias culturales y cooperación iberoamericana en la era digital”, Pensamiento Iberoamericano, Madri, n. 4, junho de 2009, p. 79-80.

[7] Martín Becerra e Guillermo Mastrini, Los dueños de la palabra: acceso, estructura y concentración de los medios en la América Latina del siglo XXI. Buenos Aires: Prometeo, 2009.

[8] O estudo realizado pelo projeto Os Donos da Mídia pode ser consultado aqui.

[9] Dênis de Moraes, Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação, Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011, p. 40.

[10] Martín Becerra, “Mutaciones en la superficie y cambios estructurales. América Latina en el Parnaso informacional”, em Dênis de Moraes (org.), Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 104.

[11] Beto Almeida. “Por telefone, perigosa desnacionalização da televisão ameaça soberania brasileira”, Brasil de Fato, São Paulo, n. 274, 29 de maio-4 de junho de 2008.

[12] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 87.

[13] Dênis de Moraes, Cultura mediática y poder mundial. Buenos Aires: Norma, 2006, p. 46.

[14] A íntegra da Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual da Argentina está disponível aqui.

[15] A Ley Orgánica de Comunicación do Equador pode ser consultada aqui.

Nossa Internet vai virar TV a cabo?

Há chances de o marco civil da Internet ser votado nesta terça-feira, 16, na Câmara dos Deputados. As jornadas de junho e as revelações de Edward Snowden sobre os esquemas de espionagem dos Estados Unidos criaram espaço para que Projeto de Lei 2126/11, parado desde dezembro, voltasse a ter chances de aprovação.

Para quem não acompanha de perto, vale esclarecer: o marco civil é um projeto de lei que, basicamente, estabelece os direitos do usuário da internet, no Brasil. Na prática, servirá para impor limites às ações das empresas e do Estado em relação à rede, de forma a garantir que a internet continue uma rede aberta e livre, ao mesmo tempo em que se aprofundam direitos como acesso e privacidade.

O principal obstáculo para aprovação do projeto é a posição das empresas de telecomunicações contra a neutralidade de rede. Este princípio garante que todo o tráfego da internet seja feito de maneira isonômica, “sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo”.

Na prática, a aprovação deste princípio impede várias situações:

1) as empresas não poderão degradar o tráfego de alguns aplicativos a seu critério. Por exemplo: a Oi não tem interesse que o usuário use Skype, porque isso diminui seu faturamento com ligações interurbanas, então ela pode ‘farejar’ os pacotes da internet, perceber que aqueles dados se referem ao Skype e diminuir sua velocidade para desencorajar o usuário a usar o serviço. Embora essa prática já possa ser considerada ilegal, a lei deixaria isso claro;

2) as empresas de telecomunicações não poderiam vender pacotes que diferenciam a internet por outros critérios que não a velocidade. Hoje, há pacotes que incluem apenas alguns sites e aplicativos. Isso permite às empresas de telecomunicações dois tipos de prática: criar pacotes diferenciados, de acordo com os serviços mais utilizados (por exemplo, internet com vídeos ser mais cara que internet sem vídeos) e estabelecer acordos comerciais com empresas para que só o site dela possa ser acessado (por exemplo, compre este pacote barato e acesse seu e-mail, o Facebook e o site de determinada empresa);

3) outra prática impedida é a de estabelecer acordos comerciais com grandes provedores de aplicações (como Google/YouTube e Facebook) para garantir prioridade de tráfego. O problema dessa opção não é tirar recursos dos grandes, mas criar dificuldades e barreiras comerciais para os pequenos.

Ou seja, a lei impede que vários parâmetros da internet, que hoje são tratados majoritariamente de forma neutra, sejam transformados em mercadoria. Em outras palavras: impede que as empresas criem dificuldade para vender facilidade. Sem esse princípio, em pouco tempo, a internet deixará de ser como conhecemos. Ela ficará mais próxima de um serviço de TV a cabo, em que a operadora tem controle sobre o que é transmitido, impedindo que toda a oferta de conteúdo se dê em bases isonômicas, além da possibilidade de vender pacotes diferentes para o usuário, impedindo também que o acesso se dê em bases isonômicas.

Na negociação do texto, uma das propostas das empresas foi retirar a obrigação de tratar os pacotes de forma isonômica em relação ao serviço. Elas querem garantir pelo menos que os exemplos 2 e 3 acima sejam permitidos. O problema é que na palavra “serviço" reside a garantia da manutenção da internet como a conhecemos. O que parece um ajuste de texto é uma descaracterização total do projeto.

Há ainda outros pontos polêmicos no marco civil. Por pressão de grandes produtores de conteúdo, em especial da Rede Globo, o projeto dá tratamento diferenciado à retirada de conteúdo que infrinja direitos autorais. Ele estabelece que os provedores de aplicações não podem ser responsabilizados por danos de conteúdo alimentado por terceiros. Até aí, ótimo, porque a responsabilidade tem de cair especificamente em quem aporta esses conteúdos. O problema é que a regra não vale para infrações de direitos autorais. Isto vai criar sobre esses provedores (como YouTube e Facebook) uma enorme pressão pela retirada imediata de conteúdos que possam vir a ser considerados infringentes mesmo sem qualquer ordem judicial. Na prática, uma restrição grave à liberdade de expressão dos usuários e uma super proteção aos detentores de direitos autorais.

O marco civil está longe de resolver todos os problemas relativos à internet. Ele não garante a proteção de dados pessoais, mas para isso há um projeto específico sendo elaborado. Ele não cria mecanismos para enfrentar o poder de mercado avassalador de empresas como Google e Facebook, embora a proposta de inclusão que está sendo feita pelo Governo, que obriga essas empresas a manter os registros de acesso a essas aplicações também no Brasil, possa ajudar nisso. Mesmo com esses limites, o marco civil é um passo inicial indispensável; sem ele, seguiremos totalmente vulneráveis ao poder econômico das grandes corporações.

João Brant é membro do Intervozes e doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo.