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Disputa eleitoral engole votação do Marco Civil da Internet

Por Bia Barbosa*

Atravessamos mais uma semana de debates na Câmara dos Deputados sem conseguir colocar o texto do Marco Civil da Internet em votação. Muita gente sequer entendeu como e por que, desta vez, foi o governo que pediu a retirada do projeto de pauta. Afinal, Dilma não apenas solicitou, em setembro de 2013, urgência constitucional para a votação do MCI – que obriga a Câmara a votá-lo para poder avançar em outras pautas – como também defende o atual relatório do deputado Alessandro Molon (PT-RJ). O problema é que o Marco Civil, como já ocorreu com vários outros projetos importantes para o país, entrou no redemoinho da disputa eleitoral de 2014.

Até a volta do recesso parlamentar de fim de ano, o único grande opositor do projeto, que foi construído de forma participativa a partir de uma proposta da sociedade civil, era o PMDB de Eduardo Cunha. Defensor histórico dos interesses das operadoras de telecomunicações, Cunha vinha se opondo ao Marco Civil e seu principal pilar: a neutralidade de rede. O princípio, garantido pelo atual texto do MCI, impede discriminações de tráfego em função do conteúdo que transita nas redes. Como as teles querem poder vender pacotes diferenciados, lucrando mais para ofertar o acesso a determinados tipos de conteúdo da internet (o acesso a uma transmissão por streaming, por exemplo, poderia custar mais do que a redes sociais e e-mails), uma lei que protege a neutralidade da rede seria péssima para a expansão deste modelo de negócios, altamente discriminatório.

Mas o lobby das teles não colou tanto como o esperado, e Cunha seguia, de certa forma, isolado. Partidos como PSDB, DEM, PPS, PTB e PSB, que não compõem a base do governo, já haviam declarado apoio ao texto. Vários deles fizeram exigências de alteração no relatório do deputado Molon para se somar ao projeto. Algumas dessas mudanças, inclusive, geraram críticas ao texto por parte da sociedade civil, como a inclusão, no artigo 16, da obrigatoriedade da guarda de dados dos usuários por seis meses para futuras investigações policiais. Mas os partidos conseguiram convencer o relator. Assim, não havia mais motivos para se opor ao texto.

Veio daí a jogada de mestre de Eduardo Cunha. Percebendo que não seria somente pelo mérito do texto e pelo lobby das operadoras de telecomunicações (mesmo em época de acordos para financiamento de campanhas!) que ele conseguiria derrotar o Marco Civil da Internet, Cunha colocou o texto no meio da disputa política eleitoral que vinha se desenhando na Câmara dos Deputados. Num cenário de possível divisão entre PT e PMDB, de parte da base do governo insatisfeita (querendo liberação de emendas e mais cargos no governo) e de oposição de direita buscando uma forma de derrotar o governo, Cunha transformou o Marco Civil da Internet numa das principais moedas de barganha do Congresso Nacional neste momento.

Assim, convenceu a maioria dos partidos de que aprovar o MCI seria dar uma vitória ao governo e que afundá-lo seria impor uma derrota à gestão Dilma. Começou o FLAXFLU. Só que quem saiu perdendo nessa história foram os 100 milhões de internautas brasileiros/as, que começaram a ver seus direitos e anseios jogados na lata de lixo dos conchavos e conluios parlamentares. Neste contexto, com raras e honrosas exceções, os partidos simplesmente passaram a ignorar o mérito do Marco Civil da Internet e a tratá-lo dentro dos moldes mais tradicionais – e lamentáveis – do jogo político.

PSDB e DEM, por exemplo, que antes tinham manifestado apoio ao texto, agora defendem a retirada da urgência de sua votação e promovem um discurso desinformativo – que se espalhou rapidamente nas redes sociais – de que o Marco Civil da Internet será uma lei para censurar a liberdade na rede, quando é justamente o contrário. O PSB, que até pouco apoiava os pleitos da sociedade civil para tornar o MCI ainda mais democrático e garantidor dos direitos dos internautas, agora diz que não tem mais posição fechada sobre o relatório do deputado Molon. Vale lembrar que se trata do partido de Eduardo Campos, que se autodeclara a “terceira via” das eleições presidenciais de outubro.

Aproveitando o fuzuê generalizado e tendo derrotado o governo na última terça-feira (11/03), com a aprovação da criação de uma comissão externa para apurar as denúncias de corrupção na Petrobras, Eduardo Cunha agora não pretende apenas derrotar o relatório do MCI, mas aprovar uma emenda aglutinativa que apresentou ao texto, atendendo aos principais desejos das teles: quebra da neutralidade da rede, autorização para venda de pacotes diferenciados em função do tipo de conteúdo acessado (transformando a internet numa verdadeira TV a cabo) e liberação da guarda e comercialização de dados dos usuários pelos provedores de conexão, rasgando qualquer resquício de preservação da privacidade do internauta.

Foi para evitar a aprovação desta emenda que o governo está agindo (muito atrasado), desde quarta-feira, para recompor sua base, ou pelo menos parte dela – na próxima segunda-feira, novos ministros já serão empossados. Foi pelo mesmo motivo que o ministro José Eduardo Cardozo pediu ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, mais alguns dias antes de colocar o Marco Civil em votação.

Enquanto isso, dezenas de organizações da sociedade civil, que estão na origem da proposta do MCI, e mais de 300 mil internautas seguem pedindo a votação do Marco Civil já. Trata-se, sim, de uma questão urgente. Engana-se muito quem acredita que hoje a rede já é livre e que é o Marco Civil que acabará com esta liberdade. O Brasil está entre os campeões globais de conteúdos derrubados da rede pela simples decisão dos provedores, numa clara prática de censura privada. Cotidianamente, a neutralidade da rede é violada para atender aos interesses comerciais das operadoras de telecomunicações. E seus dados de conexão podem estar, neste momento, sendo vendidos sem que você sequer tenha sido informado.

A aprovação do Marco Civil da Internet é urgente para que tudo isso cesse e para que quem violar os princípios da liberdade de expressão, da neutralidade de rede e da privacidade do usuário seja responsabilizado. Nenhum direito a menos. É isso que pedimos. Esta é uma questão tão estratégica para o futuro da internet que, no dia em que a rede mundial de computadores completou 25 anos, seu fundador, Tim Berners-Lee, defendeu a elaboração de uma constituição universal para os direitos dos usuários na rede.

Com o MCI, o Brasil dará um exemplo ao mundo de como o direito dos cidadãos/as a acessar e explorar a web em sua plenitude, sem se submeter aos interesses das multinacionais da telefonia, é um dos direitos mais fundamentais da contemporaneidade. Dilma reconheceu a importância da proteção dos usuários na rede em seu discurso na Assembleia Geral da ONU; depois agendou para abril um encontro mundial sobre governança da internet aqui no Brasil. Não garantir agora a aprovação do Marco Civil da Internet poderá se transformar em um vexame internacional.

O que as organizações da sociedade civil e milhares de internautas esperam é os partidos da base do governo e da oposição enxerguem esta oportunidade como algo importante para os brasileiros/as, algo que precisa estar acima da mesquinharia das disputas políticas. Quem votar contra o atual relatório do Marco Civil da Internet não estará derrotando o governo. Estará pisoteando os direitos dos internautas. Se tudo se resumir às disputas eleitorais, não haverá alternativa a não ser cobrar, nas urnas, a posição que cada parlamentar assumir neste momento. Estamos de olho!

Para saber mais sobre o Marco Civil da Internet e as mobilizações em apoio a sua aprovação, visite: www.marcocivil.org.br

* Bia Barbosa é jornalista, mestre em gestão e políticas públicas e membro da coordenação do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Conselho de comunicação é dominado por interesses empresariais

Por Vilson Vieira*

Como sempre ocorreu desde a sua instalação, em 2002, a formação do Conselho de Comunicação Social (CCS) do Congresso Nacional tende a gerar polêmica mais uma vez, em 2014. Isso porque, no dia 19 de fevereiro, o Senado Federal emitiu ofício a entidades de sua escolha, solicitando a indicação de representantes para compor o conselho.

Mas uma breve consulta à lei nº 8389/91 torna a atitude da Mesa-Diretora do Senado, no mínimo, questionável. No § 2° do artigo 4º, consta que “Os membros do conselho e seus respectivos suplentes serão eleitos em sessão conjunta do Congresso Nacional, podendo as entidades representativas dos setores mencionados nos incisos I a IX deste artigo sugerir nomes à mesa do Congresso Nacional”.

Ou seja, não cabe ao Senado, por meio de sua Mesa-Diretora, tomar a iniciativa de escolha de entidades. No entanto, nem o Regimento Interno – aprovado por ato da Mesa-Diretora em 2013 – nem a lei do CCS trazem quaisquer critérios detalhados sobre como o Senado deve proceder em torno da escolha dos membros que irão representar a sociedade civil naquele órgão, nem mesmo sobre quais entidades estariam aptas a ocupar um dos cinco assentos.

Tal situação tornou-se a senha para que, em mandatos anteriores, as cadeiras reservadas às organizações da sociedade civil fossem ocupadas por pessoas ligadas a empresas de comunicação, a denominações religiosas e a atores com vínculos muito próximos a senadores. Isso contribuiu para que diversas organizações da sociedade civil com atuação reconhecida pela democratização da comunicação fossem alijadas dos debates em torno de temas importantes do setor que ocorreram no órgão.

A lei que criou o Conselho de Comunicação Social estabelece em seu artigo 4º que o órgão será composto por cinco membros representantes da sociedade civil. Para o empresariado da comunicação, há vagas destinadas a três representantes: um das empresas de rádio, um das de TV e outro da imprensa escrita. Os profissionais do setor também têm direito à representação no CCS. São quatro vagas ao todo: uma para a categoria dos jornalistas; uma para os radialistas; uma para os artistas; e, por fim, uma vaga para os profissionais de cinema e vídeo. Completando as 13 vagas a serem preenchidas por membros titulares, uma é também garantida a um engenheiro com notórios conhecimentos na área de comunicação social. Cada titular tem direito a um suplente.

Em julho de 2012, quando se deu a última eleição para compor o CCS, após seis anos desativado, o Congresso Nacional havia aprovado o processo sem considerar a lista de entidades da sociedade civil proposta à presidência do Senado, ainda em fevereiro daquele ano, pela Frentecom (Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular).

Entre o período em que foi regulamentado por lei, em 1991, até 2002, o Conselho de Comunicação Social não foi instalado pelo Senado Federal – poder responsável por convocar a eleição dos membros bem como suas nomeações – numa clara demonstração de inconstitucionalidade e ilegalidade. Isso porque o CCS está previsto no artigo 224 da Constituição Federal e também por lei. O órgão funcionou de 2002 a 2006, o que compreendeu dois mandatos; porém, voltou a cessar suas atividades desde então, para retornar apenas em 2012.

Embora tenha apenas atribuições consultivas, conforme determina o artigo 224 da Constituição, o Conselho de Comunicação Social é um espaço com a função de debater e aprovar resoluções, estudos e pareceres acerca de assuntos referentes ao campo das comunicações demandados pelo Congresso Nacional, poder Executivo e também pela sociedade civil.

Assuntos esses previstos na Carta Magna, como: liberdade de expressão; monopólio e oligopólio dos meios de comunicação; produção e programação de emissoras de rádio e TV; propaganda de bebida alcoólica, de medicamentos e de cigarros; complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação; finalidades educativas, artísticas, informativas e culturais dos meios de comunicação; regionalização da programação e produção independente, entre outros princípios constitucionais.

Apesar de ser apenas um órgão consultivo do Congresso, o CCS nasceu da luta por uma comunicação mais democrática e inclusiva no Brasil liderada por diversos movimentos sociais. Tal fato o credencia a ampliar seu espaço à participação de entidades que efetivamente atuam em prol do direito à comunicação, ao invés de continuar refém de interesses escusos, sejam empresariais ou políticos.

* Vilson Vieira Jr. é jornalista, mestrando em Ciências Sociais (UFES) e integrante do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Anatel e a criminalização das rádios comunitárias

Por Arthur William*

A FIFA e seus parceiros comerciais vêm conseguindo impor seus interesses​ ​ ao Brasil. A Lei Geral da Copa e a proposta de Lei Antiterrorismo são mostras de que o poder público tem sido subserviente ao poder econômico dessas corporações. Mais um caso flagrante disso é a recente carta (veja a íntegra aqui) que a Anatel enviou às associações de rádios comunitárias, na qual informa que vai aumentar a repressão por conta da “Copa​ ​do Mundo ​ ​FIFA”.

Todos sabemos que a Lei de Rádios Comunitárias (Lei 9612/98) foi criada para que elas não existam. Das mais de 4.600 rádios legalizadas no Brasil, 99% podem ser apontadas como infratoras​ ​por conta das armadilhas da lei (isso sem falar nas cerca de 10 mil que esperam há mais de dez anos pela legalização). Para exercerem o direito humano à comunicação, as rádios comunitárias são obrigadas a cair na ilegalidade, desde a operação em outra frequência, já que a ​referida lei as coloca fora da faixa de FM, até a veiculação de publicidade do pequeno comércio local, pois não possuem outra forma de sobrevivência.

Agora, a Anatel quer que as infrações acabem por conta da Copa do Mundo, sob a alegativa “de utilização intensa do espectro radioelétrico durante a realização de eventos de grande magnitude”, conforme a carta destinada às rádios. De acordo com o texto, “Para o uso adequado do espectro de radiofrequência é impreterível o cumprimento​ ​das características técnicas autorizadas para o funcionamento de suas estações, além da ​ ​utilização de todos seus equipamentos com a devida certificação/homologação”.

Como a Anatel sabe que essas condições não podem ser cumpridas pela maior parte das rádios do país, a carta deixa claro que a agência vai aumentar a perseguição a quem cumpre voluntariamente um papel fundamental para a sociedade: “Ademais, destacamos que no primeiro semestre de 2014 as fiscalizações serão​ ​reforçadas em todo o Brasil e como de praxe as entidades atuando em descordo com a ​ ​regulamentação em vigor por este órgão serão autuadas”. Trata-se de uma criminalização anunciada.

Na Rio+20 foi diferente

A Agência Nacional de Telecomunicações e o Ministério das Comunicações provavelmente dirão que devem cumprir a lei e pronto. Só que sabemos que quando há interesse político, a história pode ser diferente. Durante a Rio+20, em 2012, a Anatel já ensaia​v​a ​ ​sua atuação para a Copa. Com novos equipamentos, funcionários chegaram à Rádio Cúpula dos Povos, que funcionava no Aterro do Flamengo.​ Neste caso, o automático ato de fechar uma emissora foi substituído pela alternativa mais sensata:​ ​contribuir para a prática do direito à comunicação.

Buscando a garantia da liberdade de expressão, Ministério das Comunicações e Empresa Brasil de Comunicação (EBC) aturam e, em 24 horas, aquela rádio comunitária foi legalizada com a ajuda do poder público. Foram pelo menos dois os ganhos: a rádio passou a funcionar dentro da ​ ​legalidade e o direito humano não foi violado.

Anatel e Ministério devem auxiliar e não reprimir

Atender reivindicações é mais​ ​inteligente ​ do que reprimir. Já passou da hora de o Brasil ​ ​regulamentar sua Comunicação do ponto de vista da democracia. Fechar uma rádio comunitária não resolve nada. No outro dia, mais outras rádios estarão funcionando, porque a população quer fazer sua própria mídia e não apenas consumir os conteúdos já existentes.

Ao contrário de criminalizar, a ação correta é entender​ ​a importância​ ​da comunicação comunitária (como fez Lula no último mês de seu mandato, ao chamar as rádios para reunião em que reconheceu sua importância para a democracia e prometeu que no governo Dilma iria cobrar a valorização do setor) e criar políticas públicas que garantam, dentre outras questões, mais​ ​frequências, financiamento​ ​público,​ ​mais​ ​potência e menos burocracia (que FHC, Lula e Dilma não fizeram), contribuindo para que​ ​esses meios possam ​cumprir​ ​seu papel de multiplicar as vozes que circulam pelos meios de comunicação.

Rádio comunitária não é caso de polícia. Rádio Comunitária é um direito humano!

* Arthur William é integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.

Noticiários de TV no ES exaltam violência

Por Vilson Vieira*

Em meio à indignação de segmentos da sociedade que atuam em prol dos direitos humanos gerada pela opinião da apresentadora do telejornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, que considerou legítima a atitude macabra de um grupo de pessoas que amarrou ao poste e torturou um adolescente negro e pobre acusado de furtar bicicletas no Rio de Janeiro, torna-se relevante direcionar nossa atenção a abusos semelhantes praticados por jornalistas e emissoras de TV em noticiários policialescos Brasil afora.

E no Espírito Santo, após anos longe do ar, eles voltaram com tudo. Esses programas tomaram de assalto as principais emissoras TV comerciais do Espírito Santo em anos recentes, especialmente após a aparição bem sucedida (pelo menos em termos de audiência) do Balanço Geral ES, veiculado na TV Vitória/Record. À exceção da TV Gazeta – afiliada à Rede Globo, três canais locais de televisão de grande abrangência no estado passaram a dar amplo destaque em suas programações a esse tipo de programa “jornalístico”. São elas as TVs Capixaba (Band), Vitória (Record) e Tribuna (SBT).

O espaço ocupado por essas atrações na grade de programação é surpreendente, raro de se ver quando comparado a outros tipos de conteúdos regionais. Nenhum deles fica menos do que uma hora no ar. Mas todo esse espaço é destinado principalmente ao noticiário policial. Em outras palavras, à violência sem limites. Afinal, “a falta de segurança pública é o maior problema enfrentado pelos capixabas atualmente”, já disse a apresentadora de um desses programas às vésperas de sua estreia, em 2013, como justificativa à linha editorial escolhida.

Linha esta, por sinal, adotada por todos os policialescos hoje no ar: Ronda Geral (TV Tribuna); Balanço Geral, ES No Ar e Cidade Alerta ES (TV Vitória); e Brasil Urgente Espírito Santo (TV Capixaba). E para não perderem telespectadores (e publicidade), outros telejornais veiculados há mais tempo, com o ESTV (TV Gazeta) e o Tribuna Notícias (TV Tribuna), também pegaram a mesma onda do “policialismo”. Notícias sobre crimes de toda espécie – além de acidentes de trânsito – figuram entre as suas principais atrações, dominando a pauta.

Que a segurança pública e a violência estão entre os temas que mais ocupam a agenda dos poderes públicos – não apenas no Espírito Santo, mas em todo o país – nunca foi novidade para ninguém. Nem para a mídia. Mas os problemas aqui analisados são outros, embora não muito perceptíveis para boa parte dos cidadãos/telespectadores: a forma sensacionalista como a violência é abordada nesses telejornais, as principais vítimas dessa abordagem e a violação de leis e princípios constitucionais.

Num misto de humor, deboche e terror, os apresentadores não poupam os “bandidos” e “vagabundos” de seus comentários que, na maioria das vezes, são entoados aos berros, ofensivos e desproporcionais ao fato noticiado. Aliás, o termo “bandido” virou até bordão de apresentador e vinheta nos noticiários da TV Vitória. Um exemplo clássico de pré-julgamento e condenação antecipada oriundos daqueles profissionais que deveriam noticiar e debater os fatos, e não impor juízos de valor sobre as pessoas. Bem ao contrário do que reza o código de ética vigente do jornalismo.

Suspeitos são linchados e humilhados em público por repórteres e apresentadores desses programas, e têm sua imagem e reputação desmoronadas diante da população, que acompanha, aliviada, mais um “marginal” sendo algemado e preso; mesmo que esse alívio dure apenas alguns instantes e signifique se aprisionar dentro de casa. Na maioria das vezes, esses cidadãos marginalizados pelo Estado, pela sociedade e, claro, pela própria mídia, não têm direito à voz nas matérias; e mesmo quando lhes dão essa rara oportunidade, ela é utilizada de forma a reforçar sua condição “natural” de “bandido”. Afinal, “é bandido quem quer”! Ou “bandido bom é bandido morto”! É esse o nível das “informações” passadas ao público capixaba.

Polícia Militar é única fonte
Outra questão curiosa nesse tipo de jornalismo em canais de TV do Espírito Santo são as fontes consultadas pelos jornalistas. Como se conhecedora fosse das causas de “tanta violência” na sociedade, em grande parte das reportagens cujo foco são situações de violência urbana (assaltos, homicídios, sequestros, roubos etc), prevalece a Polícia Militar como única fonte utilizada pelos repórteres para “explicar” os fatos. Nem mesmo quando os crimes envolvem crianças e adolescentes a PM deixa de ser a “fonte de toda a verdade” a fim de elucidar as infrações cometidas por menores.

Mas e os órgãos estatais que servem para promover políticas de assistência social, de cidadania e de direitos humanos? Estes não constam nas pautas dos jornalistas, que preferem o senso comum das falas dos policiais militares, além de praticamente exporem frente às câmeras a identidade de menores infratores em clara situação de risco social, numa evidente afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a outras leis do país. Talvez aquelas fontes, bem como a de outros especialistas, poderiam estragar o espetáculo armado.

O alvo desses programas, considerados por seus criadores como “populares”, são as classes mais baixas da população. No entanto, o discurso conservador e policialesco denuncia a quais interesses eles estão a serviço. Também é comum assistirmos a pessoas humildes protagonizando momentos trágicos – além de íntimos – diante das câmeras. O que vale nesse tipo de notícia é o sofrimento, as lágrimas de desespero e dor daquele(a) que perde um ente querido num acidente ou crime. E o que dizer então das reportagens cujo cenário é o velório de uma vítima desses fatos? É prática mais do que banal nos noticiários da TV local, policialescos ou não.

Violência: maiores vítimas, negros e pobres não aparecem como tais
As classes mais abastadas – que detêm o controle dos meios de comunicação e cujos interesses são defendidos de forma implícita por esses programas policialescos – não são as que mais sofrem com a violência no ES e no Brasil. Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em 2010 e publicados na edição especial “Dilemas da Juventude”, da revista Caros Amigos, mais da metade (ou 53,3%) dos quase 50 mil mortos por homicídio registrados no país naquele ano era composta por jovens. Desse total, 76,6% eram negros e pobres, e 91,3% eram do sexo masculino. Estatísticas que desmentem o falso discurso disseminado pela mídia local, que insiste em colocar os mais jovens, negros e pobres na condição de principais agentes de crimes violentos, e não como seus maiores alvos.

Outro estudo revelador, intitulado “O Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil” e também citado na revista, aponta para a mesma triste realidade, a qual está longe das lentes da TV comercial. Conforme a pesquisa, divulgada pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir) e por instituições da sociedade civil, em 2010, foi de 72 para cada 100 mil habitantes o índice de mortes violentas entre os jovens negros e pobres, contra pouco mais de 28 para cada 100 mil habitantes entre os brancos.
Leis e constituição violadas

Sem dúvida, essa é uma realidade que não destoa da que vivemos em terras capixabas. Mas de forma proposital, a mídia capixaba insiste em não colocar esse tema na pauta de seus jornalistas, e tratam a violência e as pessoas nela envolvidas de forma agressiva e abusiva. Em decorrência disso, acaba por violar princípios constitucionais fundamentais. Um deles é o artigo 1º da Constituição Federal, que estabelece como fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre outros, a “cidadania” e a “dignidade da pessoa humana” (incisos II e III, respectivamente). Mais adiante, o artigo 221 determina que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão – que são concessões públicas – devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (inciso I); e respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família (inciso IV).

Já o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/62) e o Decreto 52.795/63, que regulamenta os serviços de rádio e televisão no Brasil, são bem claros ao determinar que esses meios de comunicação não devem “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (art. 28 do decreto 52.795,de 1963). Neste caso, cabem sanções às emissoras, que vão desde multa até a cassação da outorga.

É desnecessário reafirmar que tais princípios são friamente desrespeitados pelos meios de comunicação do Espírito Santo e de todo o Brasil, e tudo em nome de um “jornalismo” que prega a máxima do “quanto pior, melhor”, ao invés da informação com foco na cidadania, na dignidade humana e no interesse público. A sociedade precisa enxergar isso e lutar por uma comunicação mais digna; e o Estado brasileiro, na sua condição de regulador das comunicações, deve cumprir o seu papel e fazer com que leis e Constituição Federal sejam zelados por todos.

*Vilson Vieira Jr. é jornalista, mestrando em Ciências Sociais (UFES) e associado ao Coletivo Intervozes.

Versão resumida desse artigo foi publicada no Blog do Intervozes na Carta Capital.

TRF: político não pode outorgar concessão para si mesmo

Por Bruno Marinoni*

O ano de 2014 se inicia com uma pequena vitória para o movimento que luta pela democratização da comunicação. A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região decidiu, por unanimidade, anular a sessão do Câmara dos Deputados que renovou a concessão da rádio Atalaia em Londrina (PR). A aprovação do pedido de renovação contou com a participação do sócio da emissora João Batista, deputado federal pelo PP de São Paulo à época. Por não ter se declarado impedido, os juízes entenderam que o parlamentar feriu os princípios da moralidade e da impessoalidade.

A vitória, contudo, é provisória. O caso vai ser analisado novamente na casa legislativa sem a participação do deputado, mas sabe-se que dificilmente o pedido de renovação será negado. O que a decisão ressalta, porém, é o que o professor da UnB Murilo Ramos considera uma “relação indecorosa do Executivo e Legislativo com políticos em exercício do mandato”. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), 40% dos parlamentares são proprietários de emissoras de rádio ou possuem interesse direto nelas.

O entendimento do TRF expressa que não se pode utilizar a máquina pública para favorecimento pessoal. O movimento que luta pela democratização da comunicação, porém, entende que a compreensão precisa ser mais abrangente. Não se trata apenas do problema da participação direta de um parlamentar em uma sessão que decide sobre uma concessão da qual é sócio. Trata-se do fato de que parlamentares participam de sessões que outorgam concessões para parlamentares e favorecem seus correligionários. Sabe-se inclusive como essas concessões são utilizadas como moeda de troca entre políticos.

O combate ao favorecimento político de parlamentares por meio das concessões tem sido bastante difícil. Juridicamente, a argumentação está apoiada no artigo 54 da Constituição Federal, que trata justamente dos impedimentos que deputados e senadores devem ter diante das possibilidade de uso da máquina pública. Falta, porém, uma regulamentação específica que defina os mecanismos que impeçam esse uso.

Diante de tamanha ausência, fica evidente a necessidade de uma Lei para uma Mídia Democrática . Já se passaram 25 anos de promulgação da Constituição, 51 do Código Brasileiro de Telecomunicações e, ainda hoje, a radiodifusão brasileira continua órfã de um aparato regulador que dê conta da complexidade desse sistema e de sua importância política. Os meios de comunicação “social” precisam de uma regulação verdadeiramente social para sair do cativeiro em que foram colocados pelos favorecimentos políticos e pelo interesse puramente comercial.

*Bruno Marinoni é doutor em Sociologia pela UFPE e repórter do Observatório do Direito à Comunicação.

Texto originalmente publicado no Blog do Intervozes na Carta Capital.