Governo mantém proposta para modelo de gestão da futura empresa mantenedora da TV Brasil, que terá conselho indicado pelo Executivo federal. Tereza Cruvinel, jornalista da Globo há vinte anos, será a primeira presidente da empresa, que terá sede no Rio de Janeiro.
Em dois dias, o governo federal voltou a decepcionar as organizações que atuam no campo das comunicações, repetindo erros anteriores, como no abandono do projeto da Ancinav (Agência Nacional do Audiovisual), na manutenção da repressão às rádios comunitárias e nas decisões acerca da implementação da TV digital. Na terça, 25/09, em encontro reservado às entidades representativas das emissoras do campo público (educativas, legislativas, universitárias e comunitárias), a Secretaria de Comunicação Social (Secom) apresentou o modelo de gestão da empresa que nascerá da fusão da Radiobrás e da TVE. No dia seguinte, jornais e blogs anunciavam que a presidência da empresa será exercida por Tereza Cruvinel, colunista do jornal O Globo e funcionária da família Marinho há vinte anos.
Pelo modelo de gestão apresentado às entidades do campo público, a Secom manteve a essência da proposta anteriormente divulgada por este Observatório, em que o conselho curador da nova empresa será indicado diretamente pelo presidente da República, sem a necessidade de aprovação por órgão independente. A diretoria-executiva da empresa também será indicada pelo chefe do Poder Executivo federal, igualmente sem a necessidade de referendo por instância autônoma em relação ao governo.
Com a consolidação da proposta, que deve ser publicada no Diário Oficial em forma de Medida Provisória (MP) na próxima semana, o governo despreza integralmente as propostas de diversas organizações da sociedade civil, que no final de agosto divulgaram manifesto com críticas ao modelo de gestão anunciado pela Secom. Segundo o texto [que pode ser acessado clicando aqui], “com um conselho indicado pelo presidente, a TV pode já nascer sem autonomia e independência, objetivo maior de uma emissora que se pretende pública. Não é a mera existência de um órgão gestor que confere à emissora este caráter. É preciso que ele seja plural e representativo, preservando a independência em relação a governos e ao mercado, funcionando com base na gestão democrática e participativa”.
O conselho da nova empresa terá 19 membros e um presidente, sendo 15 deles indicados pelo presidente da República, quatro membros natos dos ministérios da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Secom, e um representante dos funcionários da empresa. Ainda não estão claras quais serão as atribuições do conselho e se o órgão terá realmente poder para interferir na gestão da empresa. Segundo assessores da Secom, a partir da primeira renovação do conselho haverá um mecanismo de "consulta pública ", mas ainda não está decidido como esta consulta será feita e se seus resultados serão meramente indicativos ou se terão incidência real na indicação dos novos membros do conselho.
Já a gestão cotidiana da empresa será exercida por uma diretoria operacional, indicada pelo diretor-presidente e pelo diretor-geral, estes, por sua vez, escolhidos pelo presidente da República. A diretoria será composta por até seis membros, dentre eles um diretor de conteúdo, um de jornalismo e um administrativo-financeiro. A sede da empresa será no Rio de Janeiro, com emissoras também em São Paulo, Maranhão e Brasília.
Repercussão negativa
Algumas das principais organizações da sociedade civil criticam duramente o anúncio de que a gestão da nova empresa será feita exclusivamente por pessoas indicadas pelo Executivo federal. Para o FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), o modelo de gestão compromete a essência da TV pública, além de ser uma ruptura com a Carta de Brasília aprovada no Fórum de TVs Públicas. “Não quer dizer que a iniciativa não seja importante e que não possa vir a ser uma alternativa às TVs comerciais, mas compromete a adoção de uma gestão verdadeiramente democrática. Um conselho de ‘notáveis’ vai contra a história recente da esquerda que é de inclusão dos movimentos nos espaços institucionais. As ‘personalidades’ podem até ser pessoas íntegras, mas a proposta reproduz uma lógica negativa”, afirma o coordenador da entidade, Celso Schröder.
Para o Intervozes, a adoção de um conselho de notáveis indicado pelo presidente da República consolida a percepção de que a TV Brasil está se tornando uma reforma do sistema estatal, e não a efetiva promoção do embrião de um sistema público, autônomo em relação ao governo. “Não é a existência de um órgão curador o que confere à emissora um caráter público. É preciso que ele seja plural e representativo. A idéia de um governo que indica, em nome da sociedade, quem a representa, é paternalista e anti-democrática, independentemente de quem sejam estes indicados”, afirma João Brant, um dos coordenadores da organização.
A Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais) foi a única a manifestar apoio à proposta do governo. Por meio de sua página na Internet, a entidade afirma que seus representantes no encontro “receberam com satisfação o resultado de todo o processo de consultas e a estrutura jurídica e conceitual da nova televisão pública nacional”.
Já os representantes da ABTU (Associação Brasileira de Televisão Universitária) e da Astral (Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas), afirmam não estarem satisfeitos tanto com a proposta do governo quanto com a forma como foi conduzido o processo pela Secom. Ambas as organizações dizem que não foi possível discutir com o governo as questões essenciais da criação da nova empresa. Segundo os dirigentes das entidades, somente questões de menor importância foram colocadas em debate pela Secom, como a possível remuneração dos conselheiros e a presença de um representante do conselho curador no conselho administrativo.
Segundo o presidente da ABTU, Gabriel Priolli, em mensagem enviada ao blog de Jorge da Cunha Lima, “o processo foi limitado, falho e meramente referendatório de decisões tomadas intra-Governo. E a estrutura [da TV Brasil], embora tenha avanços, está longe de atender aos anseios por uma efetiva televisão pública”. Já o vice-presidente da entidade, Cláudio Magalhães, contesta a ausência, no conselho gestor, das entidades representativas e “o número excessivo de indicados pelo próprio governo”. Segundo Magalhães, “o formato original do Fórum [de TVs Públicas] tinha a fórmula híbrida de entidades e profissionais e, pelo seu sucesso, não havia motivo para não ser repetida”. Rodrigo Lucena, presidente da Astral, é ainda mais enfático: “o que desanima é a sensação de termos sido usados para respaldar a criação da TV do Lula, por meio do Fórum de TVs Públicas”.
Cruvinel na Presidência
Não foi só o anúncio do modelo de gestão que deixou as organizações da sociedade civil com a impressão de que os rumos do projeto iniciado com a realização do Fórum Nacional de TVs Públicas estão sendo desprezados pelo governo federal. A escolha pelo presidente Lula de Tereza Cruvinel, colunista de O Globo e comentarista da Globonews, segundo as organizações, simboliza que a intenção da Secom não é criar uma empresa de comunicação que implemente um projeto diferenciado em relação às emissoras comerciais.
De acordo com Brant, do Intervozes, “não é possível de antemão dizer o que será a gestão de Tereza Cruvinel à frente da empresa, mas dá para dizer o que essa escolha simboliza. O governo demonstra não ter a menor intenção de que a TV pública rompa com um modelo consolidado pela mídia comercial, e busca referências num modelo de jornalismo que é muito diferente do que acreditávamos que poderia ser adotado”. Ainda segundo Brant, “o fato de a nova presidente da TV pública ser uma jornalista que por vinte anos trabalhou nas Organizações Globo nos parece muito representativo do que pretende o governo com a nova TV pública”.
Schröder, do FNDC, classifica a escolha de Cruvinel como lamentável, “não pelo nome em si e apesar de seu possível alinhamento político com as Organizações Globo, mas em função da origem da proposta, centralizada e vertical”. Segundo ele, “é ruim a escolha de profissionais da grande mídia, não por motivos ideológicos, mas pelos vícios que trazem. A escolha deveria contar com outros critérios, não só a notoriedade”.